julho 11, 2018

Anónimo | Selfie | 1839(?)
"Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles que perdemos estão cativas em algum ser inferior, num animal, num vegetal, numa coisa inanimada, efectivamente perdidas para nós até ao dia, que para muitos não chega nunca, em que acontece passarmos junto da árvore, ou entrar na posse do objecto que é sua prisão. Então elas estremecem, chamam por nós e, mal as reconhecemos, quebra-se o encanto. Libertadas para nós, venceram a morte e tornam a viver connosco.
    O mesmo acontece com o nosso passado. É trabalho baldado procurarmos evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido, fora do seu domínio e do seu alcance, em algum objecto material (na sensação que esse objecto material nos daria) de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objecto antes de morrermos, ou não o encontrarmos."

Marcel Proust (1871 -1922) | Em busca do tempo perdido - Do lado de Swann | 3ª Ed. | Relógio D'Água | Trad. Pedro Tamen | pp.51
raquelsav | Julho 2018 | Museu Arte Popular Lisboa

julho 09, 2018

Leonard Freed | New York City, USA | Little Italy | 1955

"Mas, mesmo do ponto de vista das coisas mais insignificantes da vida, nós não somos um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de quem cada um apenas tenha de tomar conhecimento, como de um caderno de encargos ou de um testamento; a nossa personalidade social é uma criação do pensamento dos outros. Mesmo o acto tão simples a que chamamos "ver uma pessoa conhecida" é em parte um acto intelectual. Preenchemos a aparência física do ser que vemos com todas as noções que temos sobre ele e, na figura total que imaginamos, essas noções possuem certamente um importante papel. Elas acabam por inchar as faces tão perfeitamente, por acompanhar numa aderência de tal modo exacta a linha do nariz, tratam tão bem de graduar a sonoridade da voz como se esta não passasse de um transparente invólucro, que, de cada vez que vemos este rosto e que ouvimos esta voz, são essas as noções que reencontramos, são elas que escutamos."

Marcel Proust (1871 -1922) | Em busca do tempo perdido - Do lado de Swann | 3ª Ed. | Relógio D'Água | Trad. Pedro Tamen | pp. 25-26

julho 04, 2018


A trick photograph of a man holding his own head | 1875 |  via George Eastman House Collection
“Quando estiveres cansado de olhar uma flor, uma criança, uma pedra, quando estiveres cansado ou distraído de ouvir um pássaro a explicar o ser, quando te não intrigar o existirem coisas e numa noite de céu limpo nenhuma estrela te dirigir a palavra, quando estiveres farto de saberes que existes e não souberes que existes, quando não reparares que nunca reparaste no azul do mar, quando estiveres farto de querer saber o que nunca saberás, se nunca o amanhecer amanheceu em ti ou já não, se nunca amaste a luz e só o que ela ilumina, se nunca nasceste por ti e não apenas pelos que te fizeram nascer, se nunca soubeste que existias mas apenas o que exististe com esse existir, quando, se –, porque temes então a morte, se já estás morto?"
Vergílio Ferreira | Pensar | Amadora, Bertrand | 1992 | p.263

junho 19, 2018


Sabemos do mundo, eu e tu.
Procuramos esquecê-lo-
e esquecemo(nos), cada um de si.

maio 26, 2018


maio 21, 2018

©raquelsav | 20maio2018
PLAY Pink Floyd | A Saucerful of Secrets

maio 17, 2018


maio 16, 2018

©Josef Koudelka | Still Life (Newspaper) | France | 1976 | Gelatin
PLAY Linda Martini | Se me agiganto

quebramos o gesso
arma de arremesso
fractura exposta
posta a posta
sem fim
sem começo



maio 09, 2018

PLAY Lankum | The Granite Gaze 

É a dor, moribunda, a renascer,
como quem faz viver,
a pintar o sonho inominável:
de trincha matriz-esparsa
e crivo de zeros em punho.

Esta dor maior
que esmorece as inúteis dores.
Esta dor-lição
que ensina a cair,
do chão,
como no poema.

E o sonho em água plana,
difuso, de luz refractado,
sempre inominável,
por cumprir,
parasita
na mama da dor.

Entre vidros e espelhos,
da dor ou do sonho
que há-de vir,
escolhemos a dor:

nada nos torna mais famintos
do que um sonho saciado.

março 18, 2018

2
maravilhar-te as insónias
com o paciente crepúsculo da idade
acordar fora do corpo esquecer o olhar
sobre o pêlo ruivo dos animais beber
o fulgor das estrelas no esplendor da alba
nomear-te
para recomeçarmos juntos a vida toda

ensinar-te o segredo dos alquímicos minerais
acender-te um pouco de culpa
na imatura paisagem do coração

eis a travessia que te proponho
amanhecer sem querermos possuir o mundo
e no orvalho da noite saciar o desejo adiado
respirar a músca inaudível das galáxias
sentir o tremeluzir da água no medo da boca

o amor
deve ser esta perseguição de sombras
esta cabeça de mármore decepada
ou este deserto
onde o receio de te perder permanece oculto
na sujidade antiga dos dias

Al Berto | O medo | Assírio&Alvim | 1997

março 08, 2018

 


março 07, 2018

PLAY Linda Martini | Boca de sal

Não me dou ao luto.
Da taça ergo,
em dois.

fevereiro 28, 2018

PLAY Ornatos Violeta | Chuva

Porque há sempre obras na casa,
a destruir a poesia dos lugares.

fevereiro 22, 2018

fevereiro 20, 2018

©Bruno Barbey | 1979 | PORTUGAL. Minho region. Town of Trofa, near Barcelos. Catholic pilgrimage

PLAY Madredeus | Canção do Tempo

"Pergunto-me então o que vem a ser o tempo, e descubro que não passa do consolo que nos resta por não durarmos sempre."

"Estou, afinal, perto do mar e da sua ciência. Ninguém pode exigir ao mar que traga todos os barcos, ou ao vento que encha todas as velas."

PLAY Sitiados | Amanhã

janeiro 20, 2018

PLAY Conan Osíris | Ein Engel

Parece que o bem
Nem beija a mãe de quem não merece
Parece uma prece

Parece que o bem
Nem beija a mãe a quem mais carece
Merece quermesse

E a fome cai da exo, rompe a termo
Fura a meso, rasga a estratosfera

E a fera acorda atroz e vem veloz
Sem paz na voz e morde a troposfera

E eu feito otário à espera
De um anjo
'Pa me levar ao kebab

Eu 'tou à espera dum beijo

Até que a terra se acabe

Eu 'tou à espera dum anjo
Eu acho que ninguém sabe

Eu 'tou à espera dum anjo

'Pa me levar ao kebab

Mete molho
Aplica mais molho
Coloca molho pai
Aplica mais molho

novembro 03, 2017

A arte de simplificar

A arte de simplificar ou quantas voltas dá "1+2" para ser "3"!

outubro 25, 2017

outubro 24, 2017

PLAY Bernardo Sassetti | Canço Nr. VI & Historia de Amor

De pedra em pedra
Te peço

Não morras de sede

Ou de luz


Daniel Faria (1971 -1999) | Poesia | Edições Quasi | 2006
©Martine.Franck | Paris | 1977

Explicação do poeta

Pousa devagar a enxada sobre o ombro
Já cavou muito silêncio

Como punhal brilha em suas costas
A lâmina contra o cansaço

Daniel Faria (1971 -1999) | Poesia | Edições Quasi | 2006

outubro 23, 2017

 

"Representation of the ordinal numbers up to ωω. Each turn of the spiral represents one power of ω. Transfinite induction requires proving a base case (used for 0), a successor case (used for those ordinals which have a predecessor), and a limit case (used for ordinals which don't have a predecessor)."



TRILHOS Ponte Romana


outubro 22, 2017

outubro 17, 2017

©João_Diogo

outubro 16, 2017

©Paweł Kuczyński


outubro 12, 2017

PLAY Tindersticks |  A nigth in

"Não sou astrólogo nem bruxo.
Uma vaga impaciência na voz.
Se adivinhasse o futuro...
Sabes o futuro até certa altura. Não faças batota.
Identificas-me contigo e falas de batota abusivamente. Confundes duas ordens de sonhos, esqueces metamorfoses irremediáveis, unificas o tempo, não consultas ninguém. Em termos rigorosos: só sei o teu passado. Onde está a batota?"

Carlos de OliveiraFinisterra paisagem e povoamento | Sá da Costa Editora | 3a. Edição | 1979

outubro 11, 2017



PLAY Pēteris Vasks | Plainscapes (Lidzenuma ainavas) for choir, violin, and cello

Como fractais,
em terceira pessoa do plural.

Estrangeiros do tempo,
escravos rarefeitos,
errantes imortais, 
de carne no osso.

[#1] Diálogo

"- A razão não é o único meio de dois seres se entenderem."
Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades |Dom Quixote | 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)

*********************

"Uma coisa fiquei a saber: é falso que alguém se entenda falando." 
Adolfo Bioy Casares (1914 -1999) | Dormir ao sol | Editorial Estampa |1980

Karlheinz Stockhausen - Mikrophonie 1 - Film 1966


outubro 09, 2017

é.... (h)uma partida de crianças...

outubro 04, 2017

 O SENHOR
No entanto, ao menos os corsos servem para qualquer coisa. São carteiros. Quem nos traria o correio se não houvesse corsos?
 
A SENHORA
São um mal necessário

O SENHOR
O mal nunca é necessário

A SENHORA
Sim, isso também é verdade.

O SENHOR
Não julgue que eu desprezo a profissão de carteiro.

A SENHORA
Não há profissões mesquinhas!

O SENHOR, levantando-se
Minha senhora, acaba de dizer uma grande verdade! Merece a honra de um provérbio. Permita-me que a felicite... (Beija-lhe a mão.) Aqui tem a cruz de honra!

    Pendura no peito da senhora uma cruz de honra de escola primária.

A SENHORA
Oh, Senhor... não passo de uma mulher, apesar de tudo!... Mas se é sincero!

O SENHOR
Garanto-lhe, minha senhora. A verdade pode brotar de qualquer cérebro...

Ionesco | A menina casadoira | Editorial Presença | 1963  (Trad. Luísa Neto Jorge)
Kafka Desiste! e outras histórias ilustradas por Peter Kuper | Mundo Fantasma | 2003


outubro 03, 2017

"Umas vezes as palavras partem-se,
outras, inteiras rejubilam,
onde estão os cães que ladram em qualquer intimidade?
em que praia desembarcará o medo rastejante?
Em que toca o cimento engolirá algumas décadas
até não apodrecer?
O futuro onde estamos tem a iníqua alegria dos sacanas.

*

A palavra, hoje, mutila.
A palavra, hoje, mutila."

Rui Nunes (2014) | Nocturno Europeu | Relógio D'Água

outubro 02, 2017


Dar por certo e não ter como acertar.

PLAY Portishead | Roads

EINE ART VERLUST
Gemeinsam benutzt: Jahreszeiten, Bücher und eine Musik.
Die Schlüssel, die Teeschalen, den Brotkorb, Leintücher und ein Bett.
Eine Aussteuer von Worten, von Gesten, mitgebracht, verwendet, verbraucht.
Eine Hausordnung beachtet. Gesagt. Getan. Und immer die Hand gereicht.

In Winter, in ein Wiener Septett und in Sommer habe ich mich verliebt.
In Landkarten, in ein Bergnest, in einen Strand und ein Bett.
Einen Kult getrieben mit Daten, Versprechen für undkündbar erklärt,
angehimmelt ein Etwas und fromm gewesen vor einem Nichts,

(- der gefalteten Zeitung, der kalten Asche, dem Zettel mit einer Notiz)
furchtlos in der Religion, denn die Kirche war dieses Bett.

Aus dem Seeblick hervor ging meine unerschöpfliche Malerei.
Vom dem Balkon herab waren die Völker, meine Nachbarn, zu grüßen.

Am Kaminfeuer, in der Sicherheit, hatte mein Haar seine äußerste Farbe.
Das Klingeln an der Tür war de Alarm für meine Freude.

Nicht dich habe ich verloren,
sondern die Welt.

Ingeborg Bachmann (1953) | O tempo aprazado | Assírio&Alvim | 1992 

Alfredo Marceneiro - É tão bom ser pequenino


fotograma de "Cavalo de Turim" | Béla Tarr
PLAY Charlotte Gainsbourg | Beauty Mark

"Paro diante de cada ameaça de ruína para me examinar tal como sou. Justamente o que queria evitar. Mas trata-se sem dúvida de uma única maneira. Depois deste banho de lama conseguirei admitir melhor um mundo onde não seja uma nódoa. Que maneira de pensar a minha. Abrirei os olhos, ver-me-ei tremer, engolirei a minha sopa, olharei para o pequeno amontoado dos meus haveres, darei ao meu corpo as velhas ordens que o sei incapaz de cumprir, consultarei a minha consciência caducada, estragarei a minha agonia para a viver melhor, já longe do mundo que por fim se dilata e me deixa passar."
(...)

"E talvez esteja nesse ponto do seu instante em que viver é errar só e vivo no fundo de um instante sem limites, onde a luz não muda e onde os destroços são todos semelhantes. "
(...)

"Ou então é preciso termos toda a noite à nossa frente, para seguirmos as lentas quedas e ascensões do outros mundos, quando as há, ou para ficarmos à espera dos meteoros, e eu não tenho a noite toda à minha frente."

Samuel Beckett | Malone está a morrer | Dom Quixote

julho 31, 2017

julho 20, 2017

#Paradoxos



legenda:  S  A  U  D  A  D  E   é o somatório de  infinitas S  A  U  D  A  D  E  S



julho 04, 2017

©Gerard Castello-Lopes
A OUTRA CIDADE
Há muitas solidões cruzadas - diz - em cima e em baixo
e outras no meio; diferentes e semelhantes, forçadas e impostas
ou como que escolhidas, como que livres - mas sempre cruzadas.
Mas no fundo, no centro, há apenas uma solidão - diz; 
uma cidade vazia, quase esférica, sem quaisquer
anúncios luminosos multicores, sem lojas, sem motocicletas,
com uma luz branca, vazia, brumosa, interrompida
por centelhas de desconhecidos semáforos. NEsta cidade
habitam desde há anos os poetas. Caminham silenciosos de braços cruzados,
recordam factos imprecisos, esquecidos, palavras, paisagens,
estes consoladores do mundo, sempre inconsolados, perseguidos
pelos cães, pelos homens, pelos vermes, pelos ratos, pelas estrelas,
perseguidos até pelas suas próprias palavras, ditas ou não ditas.

Giánnis Ritsos (1972) | Antologia | Fora do Texto | 1993

junho 10, 2017

©Ema Spencer | Kitten's Party (Child Study) | 1899 (ca)
PLAY Dido and Aeneas | Purcell

Escolhemos o segredo dos lamentos,
das descidas cromáticas 
que adensam a beleza de tudo o que nos dói.
Inventamos escalas 
que nos sustentam os sorrisos modelados,
enquanto nos distraimos em infinitos círculos.

Degrau a degrau,
corrigimos a sombra dos passos,
prevemos as quedas.
   [e escolhemos cair]
PLAY Fernando Lopes-Graça | Acordai

"Hoje, como ontem, continuamos discípulos obedientes das escolas e processos mais ou menos marcantes lá de fora. E muita sorte quando essas escolas e processos não são já velhos cinquenta anos! - o que sucede na maioria dos casos. Os poucos artistas que entre nós têm coragem de ser de hoje, de afirmar uma titubeante personalidade, aqueles que possuem, na realidade, alguma originalidade (e alguns há) não contam: o meio asfixia-os; e eles acabam ou por transigir, ou por renunciar, ou por se matar.
Depois, a verdade é esta: Em Portugal não existe o problema artístico. Pode existir o problema a existência ou da subsistência material do artista. Mas aquilo a que pròpriamente se pode chamar problema artístico, isto é: a investigação das condições, determinantes e possibilidades de criação e da contemplação artísticas, donde resulta a vida real da arte - não, esse problema não existe cá. É doloroso, mas é assim mesmo." 

Fernando Lopes-Graça (1935) | Cultura, educação, arte, etc.  in "Disto e Daquilo" | Edição Cosmos | Lisboa | 1973

PLAY Fernando Lopes-Graça | Três Esconjuros

maio 31, 2017

"Maio as traz, Maio as leva"

PLAY Bernardo Sassetti | Prelúdio para uma história invisível 
 
Não precisa de Maio para ser lembrado. Mas Maio lembra-o (mais e mais).
PLAY Lhasa de Sela | Who By Fire (Leonard Cohen)

 Who By Fire  
And who by fire, 
who by water, 
who in the sunshine, 
who in the night time, 
who by high ordeal, 
who by common trial, 
who in your merry merry month of may,
 who by very slow decay, 
and who shall I say is calling?

maio 18, 2017


maio 12, 2017

 
quando estar
L  O  N  G  E

não é sinónimo de 

N  à O    E  S  T  A  R    P  E  R  T  O

maio 08, 2017

@Paula Rego | Mulher-cão
PLAY Peter Murphy | Subway


(...)
Que nos resta senão linguagem para povoar o mundo?
E no momento em que a linguagem defina o mundo
esse mundo é recusado
que não cabe à linguagem achar a definição
nem ao objecto ser definível. A ausência
embeleza o ausente
e para teu mel de lábio a incerteza do sabor de cada gota,
um outro lábio que sofre
essa incerteza. Um insistente fim, o estudo próximo,
a reverberação da angústia;
alguma coisa de importante foi esquecida.
Um poema é: nunca me deixes sozinho comigo.
Um poema é: não pode ser de outra maneira.       

Daniel Jonas | Os fantasmas inquilinos | Cotovia | 2005

abril 28, 2017

SÃO TRISTES OS MEUS DIAS COM PEDRAS
em lugar de mãos
ou a cabeça funda na brancura
de través do travesseiro
e o corpo depresso em moles guindastes.
São dias de chorar por menos
ou teimar queixoso com um crânio polido,
batuque convexo
no muro demorado.

Ficar a ouvir o sangue,
o som tubular do sangue. Ao vale seco
da clavícula atrair a água, o sangue
e sorver a sopa intestina
ou se o líquido escapa à boca
tantálica, calar com argila
o que me pede água.

Ficar a palpar buracos
da ausência, as ligas
da ausência, as ribanceiras
a que caem os pensamentos, a cor
dióspiro que banha a enfermidade
e em seguida tomar o pulso
evadido, travar o touro, o soco da dor,
o infinito infinitivo presente.

Uma amálgama de alma
migra no fôlego do modorrento
pregão de dor, o condor
passa e anda andino e é uma
traça asfixiante: faço um céu rarefeito,
a dispneia é um felino
que arranha céus
e a boca rebuliço espúmeo
expele o sabor da morte
e o que mais consiga cuspir

por entre ovéns e enxárcias
e traves quebradas.

É uma desilusão com as coisas,
uma desilusão funda com as coisas,
com o vazio meio-cheio das coisas.
Meu fôlego um fólio cheio
de silêncio, uma catástrofe natural

um vulcão: no meu pulmão pôr lava
e no trovão treva. 

Daniel Jonas | Os fantasmas inquilinos | Cotovia | 2005




abril 27, 2017


©Kafka’s own doodles
- Passas-me o livro que está em cima da mesa, por favor?
- Este?
- Não. Esse está em cima do sofá.
- Toma.
- Mas este é de BD e não estava em cima da mesa.
- Queres o Beckett?
- Não, não é o Beckett. O Beckett está na prateleira. Quero esse que está em cima da mesa, o Kafka.
- Mãe, eu ainda não sei ler.
- Estou a falar desse livro que está em cima da mesa grande, mesmo à tua frente. Não gozes comigo.
- Este?
- Sim. Irra, que estava difícil. Franz Kafka - o nome do autor.
- Ah, afinal sempre querias o Beckett! (risos)

©Beckett’s doodles from the “Watt” notebooks


abril 26, 2017


PLAY Pietro Mascagni | Cavalleria Rusticana - Intermezzo

Em quatro minutos,
elevar-me à dor

abril 22, 2017

©Thomas Hoepker |GERMANY. East Berlin. Fallen angels from facade of the Berlin cathedral in street | 1974

PLAY Massive Attack | Splitting the Atom
 
Nascemos para esse voo - infinito terrestre-
para a depuração de sinónimos,
com magia de códigos alpinos.

Enterramos a cabeça,
deixamos as pernas de fora,
esperamos que cresçam,
esperamos que andem.
Desperdiçamos quedas,
desperdiçamos abismos.

Fatalmente intoxicados,
por"se's" e "mas",
caímos, por terra, frouxos,
nestes corpos mínimos,
onde as asas não quiseram voar.

Agonizamos inscritos no epitáfio:
 «Aqui jazem,
infinitos indizíveis, por nascer».

abril 20, 2017

I cry in my sleep
Sometimes you stay
Sometimes you stay
You never know why
Please say my name
Don't turn away

[chorus]
The pain is black
The pain is bright
The pain is black
The pain is bright
The pain is bright

Then I awake
And in the half light
Watching my movements
Through half closed eyes
You're touching me
As a priest loves pornography
We played beneath the patterns[?]
Don't turn away

[chorus]

Kissed by the years
Caresses of time
Marking the lines
The lines of expression
The patterns of place
The patterns of youth
The patterns of love
Don't turn away
Say my name
Say my name

abril 14, 2017

©Leonard Freed | Wall Street |New York City. USA |1956
    
"Numa grande estrada não é raro vermos uma onda, uma onda solitária, onda fora do oceano.
     Não tem utilidade nenhuma, não constitui nenhum jogo.
     É um caso de espontaneidade mágica."

 *
*        *
     "Os Magos amam o escuro. Os principiantes não podem passar sem ele. Exercitam a mão, se assim pode dizer-se, em baús, roupeiros, guarda-fatos, cofres, caves, sótãos, caixas de escada.
     Não há dia em minha casa que não saia do armário qualquer coisa insólita, seja um sapo, um rato, aliás com cheiro a inépcia e que logo ali se esvai sem poder fugir.
     Até enforcados se encontravam, dos falsos claro está, onde nem a corda era verdadeira.
     Quem pode garantir que a gente se habitue com o tempo? Uma apreensão retinha-me sempre por um instante, com a mão indecisa no puxador. 
    Um dia rolou uma cabeça ensanguentada para cima do meu casaco acabado de estrear, sem lhe fazer, aliás, nenhuma nódoa.
     Depois de um instante - infecto - de nunca mais querermos viver outro igual - voltei a fechar a porta.
      Tinha que ser um noviço, este Mago, para não conseguir pôr uma nódoa num casaco tão claro.
    Mas a cabeça, o seu peso, o seu aspecto geral, tinham sido bem imitados. Pavorosamente, agoniado, eu já estava a senti-la a cair-me em cima quando desapareceu."

Henri Michaux (1967) | No País da Magia | Hiena Editora | 1987