fevereiro 15, 2015

PLAY Debussy Arabesque

com a palavra apago a tua face, ou afasto-a
palavra a palavra até ser estranho
o som deste resíduo

redescubro-te num lugar exposto ao desencontro
na luz retecida pelo vento

Rui Nunes, Ofício de Vésperas,  Relógio D'Água, 2007

fevereiro 14, 2015

PLAY Patti Smith Gloria

ABANDONADOS

Abandonados
os espaços em que chegam as respostas, quando
as paredes desabam e desfiladeiros, das árvores
voam as sombras, quando se abandona
a erva debaixo dos pés,
solas brancas pisam o vento - 

a sarça chameja,
ouço-lhe a voz,
onde não havia perguntas águas
passam, mas eu não tenho sede.

Johannes Bobrowski, Sinais de Tempo in Como um Respirar- Antologia poética, Edições Cotovia, 1990
PLAY Tindersticks A Night In 

A NOMEAR, SEMPRE

A nomear, sempre:
a árvore, o pássaro em voo,
o rochedo avermelhado por onde passa
o rio, verde, e o peixe
no fundo branco, quando desce a noite 
sobre as florestas.

Sinais, cores, é 

um jogo, receio
que o resultado possa ser in-
justo.

E quem me ensina 

o que esqueci? - O sono
das pedras, o sono
dos pássaros em voo, o sono
das árvores, a sua fala
anda pelo escuro - 

Houvesse aí um deus

e incarnado,
e que me pudesse chamar, eu andaria
por aí, eu esperaria
um pouco.

Johannes Bobrowski Terra de Sombras. Rios in Como um Respirar- Antologia poética, Edições Cotovia, 1990

#1 Livrário

São Os passos em Volta do Ofício de Viver, em Busca do Tempo Perdido, puzzles de sete ou mais actos. É a corrida pela Utopia, uma espécie de construção entre O Exílio e o Reino, quando mais não atingimos que uma Morte a Crédito, um cativeiro de Servidões. E nesta Viagem ao Fim da Noite carregamos um nome que não sabemos cumprir, O Inominável nome em pele de desconhecido ou d' O Estrangeiro que vagueia de abismo em abismo perante A Queda iminente. É errante a Metamorfose em que eclodimos, mas quem sabe se, num qualquer Outono Transfigurado, nos transformemos em Bom Aprendiz e as nossAs Flores do Mal floresçam vibrantes numa tentativa de Morte aos Feios quistos superficiais que não morrem mas matam. Sim, A Morte é como uma Flor e a vida é mais Como um Respirar dessa flor, mas nada mudará, e a Previsão de Tempo para Utopia e Arredores é de chuva intensa e permanente, porque a verdade é que Não sabemos mesmo O Que Importa.
©Christopher Anderson VENEZUELA. Caracas. 2006.
Reflection in window in Altamira
AS DANÇAS DA NOITE

Um sorriso caiu na relva.
Irrecuperavelmente!

E como irão perder-se
As tuas danças nocturnas. Na matemática?

Tão puros saltos e espirais-
Certamente viajam

Eternamente pelo mundo, não hei-de ficar 
Despida de belezas, o dom

Do pequeno sopro, o cheiro
A terra molhada, lírios, lírios.

A sua carne não aguenta aproximações.
Frios vincos de um ego, o narciso,

E o tigre que se embeleza a si próprio-
Sinais e uma chuva de pétalas de fogo.

Os cometas
Têm um espaço tão grande a atravessar

Tanta frieza, esquecimento,
Assim se esfumam teus gestos -

Calorosos e humanos, depois a sua luz rosa
A sangrar e a pelar

Entre as negras amnésias do céu.
Por que me dão

Estas luzes, estes planetas
Caindo como bênçãos, como línguas de luz

De seis pontas, brancas
Nos meus olhos, lábios, cabelo

Ao tocarem desfazem-se.
Em lugar nenhum.

Sylvia Plath, Ariel,  Relógio D'Água, 1996

fevereiro 10, 2015

PLAY Ayud Ogada, Kothbiro

"Por que hei-de amar o que amo? Odiar o que odeio? 
A quem não apetece derrubar a mesa dos seus desejos e dos seus ascos? Mudar o sentido dos seus movimentos instintivos?
Como é possível que ao mesmo tempo eu seja ponteiro de imã e corpo indiferente?"


Extractos do Log-Book do Senhor Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985

fevereiro 09, 2015

©raquelsav. Tomar
PLAY Mercedes Sosa Gracias a la vida

Procuro o lento cimo da transformação 
Um som intenso. O vento na árvore fechada 
A árvore parada que não vem ao meu encontro. 
Chamo-a com assobios, convoco os pássaros 
E amo a lenta floração dos bandos. 
Procuro o cimo de um voo, um planalto 
Muito extenso. E amo tanto 
A árvore que abre a flor em silêncio.
Daniel Faria, Poesia, Quasi, 2006


@raquelsav
PLAY Rafael Toral Liberte (Touch)

Procuro um todo que me liberte dessa massa de incontinência insana que me assalta informe. Só vale uma liberdade escrita em verso branco e que entre poema adentro, num adensar de pintura dos dias raros. Procuro e nado, como nada o tempo musical no traço do pincel. Procuro e fundo-me, em queda livre, e livro o tempo de cair profusamente esparso num acaso. Parto e paro de parir porque o tempo não conta, se for a contar. Porque o poema não vale, se for a valer. Porque a liberdade não se agarra, se for de agarrar. Se me é próximo não me é acessível.

Procuro e fujo, como quem foge e deixa fugir, para agarrar de longe, para lá do poema e para além da pintura. Sei da força que me ateia ao sorvê-la num só trago. Renascerei, por isso,  inteira num baptismo de retorno infinito e natal mas, sem a dor de ver o mundo debaixo- não há novamente no talhar do cordão umbilical.

fevereiro 08, 2015

©Martine.Franck


PLAY
 
La espiral eterna played by Leo Brouwer


E UM SORRISO

A noite nunca acaba
Há sempre pois que o digo
Pois que o afirmo
No extremo da mágoa uma janela aberta
Uma janela iluminada
Há sempre um sonho de guarda
Um desejo a cumular
Fome a satisfazer
Um coração generoso
Uma mão estendida uma mão aberta
Uns olhos atentos
Uma vida a se repartir a vida.

Paul Éluard Últimos Poemas de Amor,  Relógio d'Água, 2002
©Daniel Blaufuks
PLAY Linda Martini Lição de Voo N.º1
Eu sei que não porque sim e, no entanto, cansa-me a transpiração de permanecer. Sei o que vejo quando as nuvens se movem em fuga motora e arrastam esta tontura de pés fixos. Mais não serei que a incerteza aberta à máscara que se me emplastra à cara. E o rosto está feito nisto: um conjunto de músculos presos de olhar de cima, em sorriso viciado e mecânico. Seria mais justo deixar cair as máscaras, ou admiti-las singular, afinal, e descer do palco em expressão definitiva e una. Mas eis, então, perante ele- o rosto - o que apresentaria ele nu? Uma tontura? Um devaneio? Uma ilusão? Rostos nus são nuvens em fuga-  perfeitas e inalcançáveis as formas. Longe, será sempre longe, a medida da distância entre rostos nus que se reconhecem. Efémero será o tempo que mede o encontro das nuvens em metamorfose. Mas o cansaço nasce, mesmo, na transpiração de permanecer em céu limpo.

fevereiro 01, 2015

©Erich Lessing
The Austrian conductor Herbert von KARAJAN inspecting a new jet trainer built by the Pilatus works near Lucerne. The conductor is a passionate pilot. SWITZERLAND. Lucerne. 1957
PLAY Dvořák: Symphony No. 9 "From The New World" / Herbert von Karajan (cond.)

[#2] Manual de desistência

©Daniel Blaufuks. Mulher deitada, da série "O ofício de viver", 2010


   "Não há dúvida de que é inútil e prejudicial lamentarmo-nos perante o mundo. Resta saber se não é igualmente inútil e prejudicial lamentarmo-nos perante nós próprios. Evidentemente."
Cesare Pavese,  O Ofício de Viver. Cotovia
PLAY Pere UbuGolden Surf II

Emprestar o corpo à realidade
que não o despe.
Entreter as horas
e inventar unidades de tempo:
torná-lo mais curto.

Aguardar o próximo encontro:
do corpo
com outro corpo
(que, já nu, o saiba despir).

©Ferdinando Scianna. ITALY. Sicily. Palermo. Argentinian writer Jorge Luis BORGES. 1984
Poema


ANVERSO
Dormias. Eu acordo-te.
A manhã imensa oferece-nos a ilusão de um princípio.
Esqueceras-te de Virgílio. Aqui estão os hexâmetros.
Trago-te muitas coisas.
As quatro raízes dos gregos: a terra, a água, o fogo, o ar.
Um só nome de mulher. A amizade da lua.
As claras cores do atlas.
O esquecimento, que purifica.
A memória que escolhe e redescobre.
O hábito, que nos ajuda a sentir que somos imortais.
A esfera e as agulhas que dividem o intangível tempo.
A fragrância do sândalo.
As dúvidas a que chamamos, não sem vaidade, metafísica.
A curva do bastão que a tua mão aguarda.
O sabor das uvas e do mel.

REVERSO
Recordar quem dorme
é um acto vulgar e quotidiano
que poderia fazer-nos tremer.
Recordar quem dorme
é impor ao outro a interminável
prisão do universo
do seu tempo sem ocaso nem aurora.
É revelar-lhe que é alguém ou algo
que está sujeito a um nome que o expõe
e a um acervo de ontens.
É inquietar a sua eternidade.
É carregá-lo de séculos e estrelas.
É devolver a tempo um outro Lázaro
carregado de memória.
É desonrar a água do Letes.

Jorge Luís Borges, A Cifra in Obras Completas III (1975-1985), Teorema, 2010

[#1] Manual de desistência


©Martine Franck. FRANCE. Languedoc-Roussillon region. Nimes. 1989. 

Deixar-me despir (e roubar) por partes
e não lamentar os fragmentos
perdidos&achados.
Em silêncio,
desprender uns dez gritos do mundo
e, pé ante pé, espalhá-los ao vento:
não deixá-los morrer sonantes.

Pensar, só para achar que existo,
e rasgar umas cem fotos à memória.
Dar-me à sombra para simular a raiz ao tronco
e, como árvore que não sabe partir,
não ter como chegar.

janeiro 30, 2015

"Em diante. Dizer em diante. Ser dito em diante. Dalgum modo em diante. Até de modo nenhum em diante. Dito de modo nenhum em diante.

Dizer por ser dito. Desdito. De ora em diante dizer por ser desdito.

Dizer um corpo. Onde nenhum. Mente nenhuma. Onde nenhuma. Ao menos isso. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar lá dentro. Mover-se lá dentro. E sair. E voltar lá para dentro. Estar lá dentro. Não. Sair nenhum. Voltar nenhum. Só entrar. Ficar lá dentro. Em diante lá dentro. Parado.

Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor."

Samuel Beckett Últimos trabalhos de Samuel Beckett, Assírio e Alvim/ Independente, 

janeiro 28, 2015

©Christopher Anderson, AFGHANISTAN. Abdulgan region of northern Afghanistan, 2001
PLAY Unkle When Things Explode

Vivemos entre meias palavras, na ilusão de as poder somar para as fazer inteiras.
[Mas elas mais não serão que fragmentos: elas e nós, de nós]


«A tolice não é o meu forte. Vi muitos indivíduos; visitei várias nações; tomei parte em cometimentos vários de que não gostei; quase todos os dias comi; e de mulheres também tenho que contar. Revejo agora umas centenas de caras, dois ou três espectáculos, e talvez a substância de vinte livros. Não retive o melhor nem o pior destas coisas: ficou como pôde.

Esta aritmética poupa-me o espanto de envelhecer. Poderia igualmente contar os vitoriosos momentos do meu espírito, imaginá-los juntos e isolados, a formarem uma vida feliz… No entanto estou em crer que me julguei sempre bem julgado. Raramente me perdi de vista; detestei-me, adorei-me; — depois envelhecemos juntos.

Supus muitas vezes que tudo estivesse acabado para mim, eu estivesse a terminar-me com todas as forças, ansioso por me esgotar, esclarecer, qualquer dolorosa situação. Fez-me isto saber que apreciamos excessivamente o nosso pensamento, segundo a expressão do pensamento alheio! Desde aí, os biliões de palavras que andaram a zumbir-me nos ouvidos muito raro me abalaram por aquilo que se queria fazê-las dizer; e as que eu próprio disse a outros senti sempre que se faziam distintas, todas, do meu pensamento; - por ficarem invariáveis »


A noite com o Sr. Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985

janeiro 25, 2015

283.
A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade de dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.
Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego: Assírio&Alvim, 2009
©Archip Kuinji (1842-1910) Mar e Luar
PLAY Stephan Micus Adela

O velho pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling erravam pelas estradas do reino de Han.
Avançavam devagar, pois Wang-Fô parava de noite para contemplar os astros, de dia, para olhar as libélulas. Iam pouco carregados, pois Wang-Fô amava a imagem das coisas e não as próprias coisas, e nenhum objecto do mundo lhe parecia digno de ser adquirido, excepto pincéis, boiões de laca e de tintas-da-china, rolos de seda e papel de arroz. Eram pobres, pois Wang-Fô trocava as suas pinturas por um caldo de milho-miúdo e desprezava as moedas de prata. O seu discípulo Ling, vergado ao peso de um saco cheio de esboços, curvava respeitosamente as costas como se carregasse a abóbada celeste, pois aquele saco, aos olhos de Ling, ia cheio de montanhas sob a neve, de rios pela Primavera e do rosto da lua no Verão.
(...)
Certa noite, numa taberna, teve Wang-Fô por companheiro de mesa. O velho bebera para ficar em condições de pintar mais capazmente um bêbado; a cabeça pendia-lhe de lado, como se procurasse medir a distância que separava a sua mão da chávena. A aguardente de arroz soltava a língua daquele artesão taciturno, e nessa noite Wang falava como se o silêncio fosse um muro e as palavras cores destinadas a cobri-lo. Graças a ele, Ling conheceu a beleza das caras dos bebedores esbatidas pelo vapor das bebidas quentes, o moreno esplendor das carnes desigualmente acariciadas pela língua das chamas e o delicado rosicler das nódoas de vinho que salpicavam as toalhas como pétalas murchas. Uma rabanada de vento rompeu a janela; a tempestade entrou pela sala. Wang-Fô esgueirou-se para dar a contemplar a Ling o lívido zebrado do relâmpago, e Ling, maravilhado, perdeu o medo à trovoada.
(...)
Um dia, pelo sol poente, alcançaram os arrabaldes da cidade imperial, e Ling procurou uma estalagem onde Wang-Fô passasse a noite. O velho embrulhou-se nuns trapos e Ling deitou-se colado a ele para o aquecer, pois a Primavera mal rompera e o chão de terra batida estava ainda gelado. Pela madrugada, ecoaram pesados passos nos corredores da pousada; ouviram-se os aterrados sussurros do hospedeiro e ordens vociferadas numa língua bárbara. Ling estremeceu, lembrando-se que na véspera roubara um pastel de arroz para a refeição do mestre. Sem duvidar de que vinham para o prender, perguntou-se quem ajudaria Wang-Fô a atravessar a vau o próximo rio.
Entraram soldados com lanternas. Filtrada pelo papel sarapintado, a chama lançava-lhes clarões vermelhos ou azuis nos capacetes de couro. Vibrava-lhes ao ombro a corda de um arco e os mais ferozes atiravam súbitos rugidos descabidos. Assentaram pesadamente a mão na nuca de Wang-Fô, que não pôde deixar de reparar que as mangas das suas vestes não condiziam com a cor do manto.
Amparado pelo seu discípulo, Wang-Fô acompanhou os soldados tropeçando por caminhos acidentados. Aos magotes, o populacho troçava daqueles dois criminosos que levavam certamente a decapitar. A todas as perguntas de Wang, os soldados respondiam com um esgar selvagem. As suas mãos agrilhoadas sofriam, e Ling, desesperado, olhava o mestre, sorrindo, o que, para ele, era uma maneira mais terna de chorar.
(...)
Era uma sala desprovida de paredes, sustentada por sólidas colunas de pedra azul. Para além dos fustes de mármore desabrochava um jardim, e cada flor contida no arvoredo pertencia a alguma espécie rara trazida de além-mar. Mas nenhuma delas tinha perfume, não fosse a doçura dos aromas alterar a meditação do Dragão Celeste. Por respeito ao silêncio em que mergulhavam os seus pensamentos, nenhuma ave fora admitida no interior do recinto e até as abelhas haviam sido escorraçadas. Um muro altíssimo separava o jardim do resto do mundo, para que o vento, que sopra sobre os cães mortos e os cadáveres dos campos de batalha, se não permitisse aflorar a manga do Imperador.
(...)
– Dragão Celeste – disse Wang-Fô prosternado –, sou velho, sou pobre, sou fraco. Tu és como o Verão; eu sou como o Inverno. Tu tens Dez Mil Vidas; eu tenho uma só, prestes a acabar. Que te fiz eu? Ataram-me as mãos, que jamais te prejudicaram.
– Perguntas-me que foi que me fizeste, velho Wang-Fô? – disse o Imperador.
A sua voz era tão melodiosa que dava vontade de chorar. Ergueu a mão direita, que os reflexos do chão de jade faziam mostrar-se glauca como planta submarina, e Wang-Fô, maravilhado pelo comprimento daqueles dedos esguios, procurou nas suas recordações se acaso não fizera do Imperador ou dos seus ascendentes algum retrato medíocre que merecesse a morte. Mas era pouco provável, porquanto, até então, Wang-Fô pouco frequentara a corte dos imperadores, preferindo as cabanas dos camponeses ou, nas cidades, os bairros das cortesãs e as tabernas junto aos cais onde brigam os carrejões.
– Perguntas-me que foi que me fizeste, velho Wang-Fô? – tornou o Imperador, inclinando o pescoço delicado para o velho que o escutava. – Vou-to dizer. Mas como o veneno dos outros apenas pode penetrar em nós pelas nossas nove aberturas, para te conduzir à presença dos teus erros tenho de passear-te pelos corredores da minha memória e contar-te toda a minha vida. Meu pai reunira uma colecção das tuas pinturas no aposento mais secreto do palácio, pois entendia que as personagens dos quadros devem ser subtraídas à vista dos profanos, na presença dos quais não podem baixar os olhos. Foi nestas salas que fui criado, velho Wang-Fô, pois haviam organizado a solidão à minha volta para me permitirem crescer nela. Para evitar à minha candura o contágio das almas humanas, haviam afastado de mim a agitada torrente dos meus futuros súbditos, e não era permitido a ninguém passar à soleira da minha porta, não fosse a sombra desse homem ou dessa mulher estender-se até mim. Os poucos velhos servos que me haviam destinado mostravam-se o menos possível; as horas giravam em círculo; as cores das tuas pinturas acendiam-se com a alvorada e empalideciam ao crepúsculo. De noite, quando não conseguia dormir, olhava-as e, durante cerca de dez anos, olhei-as todas as noites. De dia, sentado num tapete cujo desenho conhecia de cor, repousando as minhas mãos vazias nos meus joelhos de seda amarela, sonhava com as alegrias que o futuro me traria. Imaginava o mundo, com o país de Han ao meio, semelhante à cava e monótona planície da mão sulcada pelas linhas fatais dos Cinco Rios. A toda a volta, o mar onde nascem os monstros e, mais longe ainda, as montanhas que sustentam o céu. E para me ajudar a imaginar todas estas coisas, servia-me das tuas pinturas. Levaste-me a crer que o mar era semelhante à imensa toalha de água desdobrada nas tuas telas, tão azul que pedra que nele caísse só em safira se podia tornar, que as mulheres se abriam e fechavam como flores, iguais às criaturas que avançam, levadas pelo vento, nas áleas dos teus jardins, e que os jovens guerreiros de corpo esguio postados nas fortalezas das fronteiras eram flechas capazes de trespassar corações. Aos dezasseis anos vi abrirem-se as portas que me separavam do mundo: subi ao terraço do palácio para olhar as nuvens, mas eram menos belas do que as dos teus crepúsculos. Mandei vir a minha liteira: sacudido por estradas de cuja lama e de cujas pedras não suspeitava, percorri as províncias do Império sem encontrar os teus jardins cheios de mulheres como vaga-lumes, dessas tuas mulheres cujo corpo é em si mesmo um jardim. Os seixos das praias aborreceram-me dos oceanos; o sangue dos supliciados é menos vermelho que a romã figurada nas tuas telas; a escória das aldeias impede-me de ver a beleza dos arrozais; a carne das mulheres vivas repugna-me como a carne morta que pende dos ganchos dos açougueiros e o riso espesso dos meus soldados dá-me volta ao coração. Mentiste-me, Wang-Fô, velho impostor: o mundo mais não é do que um amontoado de manchas confusas, lançadas no vazio por um pintor insensato, que as nossas lágrimas apagam sem cessar. O reino de Han não é o mais belo dos reinos, e eu não sou o Imperador. O único império sobre o qual valha a pena reinar é aquele em que tu penetras, velho Wang, pelo caminho das Mil Curvas e das Dez Mil Cores. Só tu reinas em paz sobre montanhas cobertas de uma neve que jamais fundirá e sobre campos de narcisos que jamais hão-de morrer. Por isso mesmo, Wang-Fô, procurei que suplício te houvera de reservar, a ti cujos sortilégios me desgostaram daquilo que possuía e me deram o desejo daquilo que não possuirei nunca. E para te encerrar na única masmorra donde não pudesses sair, decidi que haviam de queimar-te os olhos, porque os teus olhos, Wang-Fô, são as duas portas mágicas que te abrem o teu reino. E porque as tuas mãos são as duas estradas de dez caminhos que te conduzem ao coração do teu império, decidi que haviam de cortar-te as mãos. Compreendeste, velho Wang-Fô?
(...)
Ao ouvir semelhante sentença, o discípulo Ling arrancou da cintura uma faca embotada e precipitou-se sobre o Imperador. Dois guardas o detiveram. O Filho do Céu sorriu e acrescentou num suspiro:
– E também te odeio, velho Wang-Fô, porque soubeste fazer-te amar. Matem esse cão.
Ling deu um salto em frente, não fosse o seu sangue manchar as vestes do mestre. Um dos soldados ergueu o sabre e a cabeça de Ling desprendeu-se da nuca como flor ceifada. Os servos retiraram os despojos, e Wang-Fô, desesperado, admirou a bela mancha escarlate que o sangue do discípulo desenhava no pavimento de pedra verde.

(...)
Wang começou por tingir de rosa a ponta da asa de uma nuvem pousada numa montanha. Depois acrescentou à superfície do mar pequenas rugas que tornavam ainda mais profundo o sentimento da sua serenidade. O pavimento de jade tornava-se singularmente húmido, mas Wang-Fô, absorto na sua pintura, não se apercebia de que trabalhava sentado na água.
(...)
Wang-Fô disse-lhe baixinho, continuando a pintar: 
– Julgava-te morto. 
– Vivendo vós – disse Ling respeitosamente –, como poderia eu morrer? 
E ajudou o mestre a subir para o barco. O tecto de jade reflectia-se na água, de tal modo que Ling parecia navegar no interior de uma gruta. As tranças dos corte- sãos submersos ondulavam à superfície como serpentes, e a pálida cabeça do Imperador flutuava como um lótus.
- Olha, meu discípulo – disse Wang-Fô com melancolia. – Estes desgraçados vão perecer, se acaso não pereceram já. Não supunha que houvesse água bastante no mar para afogar um Imperador. Que faremos nós?
– Nada temas, Mestre – murmurou o discípulo. – Breve se encontrarão em seco e nem sequer se recordarão que alguma vez se lhes molhou a manga. Só o Imperador há-de guardar no coração um resto de marinha amargura. Esta gente não foi feita para se perder no interior de uma pintura.
E acrescentou:
- É belo o mar, e o vento é bom, as aves marinhas fazem ninhos. Partamos, Mestre, rumo ao país para além das vagas.
-Partamos- disse o velho pintor.
(...)
e  o pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling desapareceram para sempre naquele mar de jade azul que Wang-Fô ali mesmo inventara."

Marguerite Yourcenar  Contos Orientais (A salvação de Wang-Fô), Dom Quixote: 2002
 Archip Kuinji (1842-1910) Fishing_at_the_Back_Sea_1900

janeiro 24, 2015

©Abbas.
G.B. NORTHERN IRELAND. Belfast.
A wall crumbles down after having been set on fire, presumably by the IRA
PLAY Mehliana (Brad Mehldau & Mark Guiliana) - Just Call Me Nige (Live)

COMO COISAS CAINDO
Tudo parece ter outra vez começado. quando
- a cabeça encostada à morte que a perder de vista
crescia- este homem estancado reconheceu o seu nome
pelo vento desenhado com os gravetos pobres
naquela que julgara ser a última parede do labirinto:
Já ali estivera. Ouvia outra vez a linguagem:
a montanha; desde sempre a linguagem- e era um mar
nascendo no visível do outro lado: o som verde.

Recomeçou: retrocedendo, internou-se outra vez
no poema, tropeçando no rumor que escurecia o sangue
em ondas nas paredes lentas. Ouvia cada vez mais longe
a boca do mar que repetia: - uma onda uma praia outra onda,
nas margens do mundo. Lá: o aberto de um leque bateria o ar
como as pétalas de uma borboleta perene; e aqui ele confiava-se
aos passos de quem por ali seguira, os seus ou os de outrem - 
não sabia; mas alguém passara já por ali, sempre à beira de cair. 
(...)
Manuel Gusmão, Migrações do fogo, 2004, Caminho
©Nikos Economopoulos
GREECE. Peloponnese region. Town of Kalamata. 1981.
During the election campain

janeiro 23, 2015


©Nikos Economopoulos. Olympia, Greece, 2012

(...)
Quem disse
Que há horas e momentos p´ra se amar
(...)
{as memórias são
Como livros escondidos no pó
As lembranças são
Os sorrisos que queremos rever, devagar}
Queria viver tudo numa noite
Sem perder a procurar
O tempo, ou o espaço
Que é indiferente p´ra poder sonhar
Quem foi que provocou vontades
E atiçou as tempestades
E amarrou o barco ao cais
Quem foi, que matou o desejo
E arrancou o lábio ao beijo
E amainou os vendavais
©HU - untitled, 2011 mixed media on mdf 80x60 cm
http://huportfolio.weebly.com/painting.html


são pés que não sabem do lugar,
são braços desconjuntados do tronco,
são roupas que vestem um corpo sem lugar.
©HU. 2010
http://huportfolio.weebly.com/
PLAY Rui Veloso - Não queiras saber de mim

No Exílio

Está triste explora
A dúvida que tem sobre a sua realidade aos olhos de um outro
Planta maior no banho
Vegetal elaborado trigueira ou loura
Na extrema flor da cabeça
A sua permanente nudez

Os seus seios de favores recusados
Um riso nos cabelos de cítiso

Entre as árvores
A tempestade que protege os seus

Quebra os caules da luz

É ela é também a tempestade
Que distribui armas desastradas
Às ervas aos insectos
Aos últimos calores
Os fumos do outono
As cinzas do inverno

Deixou de ser rara a pérola negra
O desejo e o tédio fraternizam
Carrossel das manias
Tudo é esquecido
Nada é sacrificado
O odor dos escombros persiste

De olhos fechados é ela toda inteira.

Paul Éluard Últimos poemas de amor, Relógio D'Água, 2002
(Trad. Maria Gabriela Llansol)