janeiro 30, 2016

A Repartição dos Pães

 PLAY António Fragoso: Prelúdio (de "Petite Suite"). (Miguel Henriques, piano)

"Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-lo na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem humidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado, ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.
Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogéneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.

Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparámos com a mesa. Não podia ser para nós...

Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas húmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse. Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. 'Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tomava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos."

Clarice Lispector (1964)
Legião Estrangeira in Contos, Relógio D'Água, 2006

janeiro 29, 2016

[#6] palimpsesto

--> - Então?
- Já disse que não!
- Como não?
- Apaguei. Rasguei tudo. Lixo!
- Ahahah. Então e o "Ontem, a distância que criámos entre o que fomos e o imaginário que passamos a ser. Ontem- a palavra que branqueia o tempo e faz vacilar a dúvida e o erro que somos..."?
- Queres parar?
- Ah! Só tu é que me podes humilhar, é isso?
- Não me interrompas! Estou farto de te ouvir. 
- É tão aborrecido quando a bola passa para o nosso lado, não é?
- Não é nada disso! 
- Então o que é? "Ontem, a distância que criámos entre o que fomos e o imaginário que passamos a ser". És tão prosaico! Tão bonitinho!
- Pouco me importa o que achas ou deixas de achar. Mas dispenso diminutivos!
- Então explica.
- Pensei que não fosse preciso.
- Tu é que sabes ler as pessoas, eu não. Sou uma perfeita egocêntrica, que não ouve ninguém a não ser a si própria!
- "ouve" com ou sem "h"?
- Olha é com "c" - couve!
- Era só para não cairmos no ridículo de nos pormos a escrever meta-textos.
- Como aquela música, la-la-la-la-la?
- Qual música?
- Uma dos The Gift.
- Lembras-te de cada cromo.
- Nem é das piores. Ainda é do tempo em que a Sónia Tavares não se resumia a uma Ágata Gourmet.
- Romana, queres tu dizer?
- Isso, isso.
- Vou pôr no YouTube, espera um segundo.
- Desde que não seja a Gaivota.
- PLAY
- O que raio tem esta música que ver com a nossa conversa?
- Schiuu.
- Ahh, já entendi. Às vezes fazes umas associações de ideias interessantes, reconheço.
- Somos tão banais, não somos?
- Sim, somos um lugar-comum tão medíocre: Graças a Deus.
- A sério? Acreditas em Deus?
- É um modo de dizer. Sou da opinião do Musil, a este respeito.
- Quem é esse?
- Esquece.
- Como se isso fosse possível. Se me conhecesses, "esquecer" seria um verbo que jamais usarias comigo. Saberias da sua inutilidade - consigo ser muito teimosa.
- Dá-me um minuto. Hum, está aqui, vou ler-te:
      "Até aí, "Sua Majestade" era para ele uma fórmula sem conteúdo mas ainda em uso, tal como se pode ser ateu e, apesar disso, dizer "Graças a Deus"."

- "Ontem, a distância que criámos entre o que fomos e o imaginário que passamos a ser".
- Queres parar com isso?
- Só quando me explicares.
- Foi e continua a ser o maior enigma da minha vida.
- Ficou sem solução? Foi um erro?
- Fiz o melhor que pude. O melhor que sabia.
- E chegou?
- Se tivesse chegado, não estaríamos a falar nisso agora, não achas?
- Há qualquer coisa de sádico na natureza do ser humano, não há?
- Chama-se amor.
- Além de prosaico és lírico? Então, fodemos ou ficamos?
- Nunca amaste?
- Amei uma vez.
- E foi um erro?
- Não! Foi uma utopia. Contente?
- Porque haveria de estar contente?
- Gostas de me humilhar.
- O amor é uma humilhação?
- O amor não, a utopia talvez.
- E fizeste o melhor que soubeste?
- Não! 
- Porquê?
- Porque nada fiz! 
- Chega de sermos óbvios?
- Qual é o teu número afinal?
- Pode ser o último!
- Porventura não serei assim tão chata!
- Tens mais de ridícula do que de chata. Tens noção quão absurdo é inventares estes diálogos, não tens?
- Esta espécie de meta-solilóquios? Heit! deixa a minha meta-cabeça em paz e vamos foder.
- Foder a mente?
- Não, a memória! Ou o que dela resta.
- Engana-me, então: PLAY   
- Tens noção que isso é jogo sujo, não tens?
- Tão ridícula, meu Deus. Já devias estar tão habituada! Ajoelhaste-te? Agora, já sabes como termina a história!

janeiro 28, 2016

fotograma de Full Metal Jacket (1987) de Stanley Kubrick

janeiro 27, 2016

 
fotograma de Daunbailó (1986) de Jim Jarmusch

       PLAY Tom Waits Take me home

janeiro 21, 2016

Hallelujah

R   A   D   I   O   H   E   A   D 


janeiro 20, 2016

esta esquisita prova me tentou
de tecer um rumor em muros de água
ossos de terra calcinada
o jugo

culpado me castigo com engenho
e da voz desenhada o artifício
restos de pele antiga
no laço da armadilha

em silêncio me muro e me demoro
no cálculo de rotas inexactas

um duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente.


António Franco Alexandre,  

A Pequena Face,  Assírio&Alvim, 1983

Sobre a esperança

Queríamos
surpreender a esperança
quando ela se descontrolasse:
no momento da revolta.
Procurámo-nos
para uma grande viagem.
Resguardámo-nos
do frio e do calor.
O farnel
pesava-nos nos ombros:
História, educação,
a capacidade de suportar
o desespero, muita literatura.
Regressámos ontem.
Cansados,
como se pode imaginar,
e cheios de fome.

As fotografias
ainda não foram reveladas.
Daremos a conhecer
os resultados.

Michael Küger
De Costas Para a Janela: Poesia Alemã Contemporânea I, Colecção o Oiro do Dia, Vol. 70, 1981 (Tradução e Selecção: João Barrento)
fotogramas de "Volchok" (2009) de Vasiliy Sigarev

janeiro 19, 2016

"Ele [Stravinsky] disse-me uma vez:
         - Os intelectuais não têm bom gosto.
A partir daquele momento fiz de tudo para não me tornar intelectual e consegui."
"Youth (2015) de Paolo Sorrentino"
fotograma de "Youth" (2015) de Paolo Sorrentino

"-Podemos entender quase tudo pelo toque.
- Quem sabe por que as pessoas têm tanto medo do toque?
- Talvez porque achem que está ligado ao prazer.
- Mais uma boa razão para tocar ao invés de falar."


"Eu gosto de ironia. Mas quando ela vem mergulhada em veneno e ódio perde a piada. E revela outra coisa - frustração."

janeiro 17, 2016

"Ninguém mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada."
Cesare Pavese (1952)
O ofício de Viver, Relógio d'Água, 2004

janeiro 15, 2016





(...)
Mas seria amor ardente
o de uma fósfora e de um palito?
Pois muito literalmente
incendiou-se o pauzito.

Tim Burton (1997)
A morte melancólica do rapaz ostra & outras estórias, Antígona, 2007
fotograma de Viagem a Citera (1984)  de Theo Angelopoulos
"Esta fatia [de pão] é para a casa.
Esta é para o pai.
E esta para Alexander.
Para Voula.
Para nosso Nico que está no mar.
Para os nossos amigos
Para o forasteiro que bater à porta
Para a mãe"

janeiro 14, 2016

[#1] À distância de um teclado

©raquelsav2016. Work-in-Progress
PLAY Tchaikovsky Doll is ill, Op. 39 n.º7

Há gritos em corpos de abandono
e, constantemente, veias que arrebatam,
que cessam,
que despedem,
que lembram -
que existem para lembrar.

Há aromas, perfume do hábito,
impregnados nas veias que existem,
e lembram o abandono,
no corpo.

Há erros perenes e crónicos,
que insistem,
insistem,
que insistem
porque o corpo ama
porque o corpo cheira
mas não sabe abandonar.

Há tanto no corpo a querer amar,
amar a saudade de amar,
a saudade de ser em amar.

Há gritos em corpos de abandono,
amores subjectivos, adjectivos,
que não nasceram para crescer
que não nasceram para ser verbo
                                   [num grito].

Creditar,
um sorriso
no Exílio.
Colher,
no juro,
o Reino.

janeiro 13, 2016

fotograma de Ninfomaníaca (2013) de Lars von Trier
"- Negro não é uma palavra politicamente correcta.
- Cada vez que uma palavra se torna proibida, remove-se uma pedra da fundação da democracia.
- O politicamente correto é uma expressão da preocupação democrática pelas minorias.
- E eu digo que a sociedade é tão cobarde quanto as pessoas. Que, na minha opinião, são demasiado estúpidas para a democracia." 

“E definitivamente não sou igual a si (psicóloga). Essa empatia que clama é uma mentira porque tudo o que você é, é a vigília da moralidade da sociedade, cujo dever, é apagar a minha obscenidade da superfície da terra, para que a burguesia não se sinta doente.”

"Infelizmente, a estupidez tem qualquer coisa de extraordinariamente fascinante e natural. (...) um bom lugar-comum é sempre mais humano do que uma nova descoberta. Não há um único pensamento significativo de que a estupidez não saiba servir-se; tem uma grande ductilidade e pode vestir todas as roupas da verdade. Já a verdade tem apenas um vestido e um caminho, e está sempre em desvantagem."

"tudo o que é hoje essencial se passa em abstracto, e à realidade só resta o mais trivial."


Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)
fotograma de Sétimo Selo de Ingmar Bergman



janeiro 12, 2016

fotograma de "A festa de Babette" (1987) de Gabriel Axel

 "Crês que o resultado de muitos anos de vitórias e de êxitos pode ser uma derrota?"

janeiro 09, 2016



Encenamos despedidas,
enquanto falamos por línguas de fogo,
línguas da boca para dentro,
exercícios extremos de lugar
ou tão somente de silêncio.

Insistimos nessa espécie de tempo falado,
um tempo oral das coisas que não se dizem,
subindo, como quem resvala,
por degraus que se afunilam,
inclinados sobre si.
Somos cada degrau
e o peso do desenho do pé,
a marca incerta que calca o chão morto.
Por isso, tocamos a pintura na (im)perfeição do traço,
entre pormenores fractais e borrões tolhidos,
carimbo rudimentar de tinta chinesa e permanente.

Construímos o tempo na senda dos pronomes interrogativos,
mas abolimos pontos de interrogação.
Somos o quê da matéria que não fala,
que habita muito acima do porquê,
razão pura de hierarquia.
Por isso,
enquanto falamos por línguas de fogo, 
comungamos do nosso tempo - 
como extensas vítimas do silêncio.