outubro 01, 2021

 

©raquelsav|  2021


Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos. Construímos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até à cova com palavras. (...)

Se nos detivéssemos com palavras, se avançássemos, todos ao mesmo tempo, esquecendo o que é inútil, para esta coisa que nos devora, subjugávamo-la. Conquistávamo-la por uma vez, por maior que ela fosse. Mas nenhum de nós se atreve e passamos a vida a fingir que não existe "      

Raul Brandão (1917) Húmus | Relógio d'Água | 2015

Enquanto espero resposta, envio nova carta 

branca.

Prefiro que me respondas em silêncio

também.

Ninguém vive no que escreve:

apenas reescreve o presente num passado

triste.


PLAY 




setembro 19, 2021

 

Fotograma de "O homem que viu o infinito"

julho 16, 2021


 1.

Mas tu existes.
Os dias somam ruína à ruína
E o a vir multiplicará
A miséria.
Apodreço não adubando a terra
E cada dia somado a cada hora
Não completa o tempo.
Sei que existes e multiplicarás
A tua falta.
Somarei a tua ausência à minha escuta
E tu redobrarás a minha vida.

Daniel Faria | Poesia, Quasi, 2006 

junho 03, 2021

 

©Elliott Erwitt | North Carolina | 1950

A Coluna Poética
Versos
em lugar de soldados,
oliveiras em lugar de mastros,
festas, não trincheiras,
não fuzis,
estrofes,
flores em lugar de bandeiras,
jardins,
não cercos, não chekas,
não uniformes,
poemas,
ingénuos no lugar de espias,
liberdade, não vitória,
verso livre em lugar de regras,
moinhos em lugar de gigantes,
crianças com pele de homem,
não assassinos
com pele de justiceiros,
romances em lugar de estratégias,
asas
para mentes, não grades,
aventuras
em lugar de tácticas,
liras, não tambores,
pessoas curvas, não pessoas rectas,
não intriga,
música
sonhos em lugar de radares
coplas, não discursos e arengas,
viagens, não desfiles,
licenças poéticas,
não recrutamentos,
não fronteiras,
sonhadores,
não dominantes e dominados,
a conquista da inocência
não a conquista do mundo,
nocturnos, não dianas,
não seitas, não máfias,
únicos e companheiros,
não grandes parlamentos,
pequenas assembleias,
odes,
cânticos,
não julgamentos, não trompetas,
ideia ao serviço das vidas,
não vidas
escravas das ideias,
dos seus profetas,
românticos,
não chefes e subalternos
(praga
de chefes e subalternos!),
líricos,
não fanáticos,
contemplação,
não ordeno e mando.
Como?
Quando?
Adiante a Coluna Poética!
Jesús Lizano | Mundo Real Poético

abril 18, 2021

 




abril 08, 2021

 

Fotograma da série "Shtisel"

abril 07, 2021

©raquelsav | abril 2021


As mães não caçam os ovos com os filhos porque é Primavera e os pássaros já nasceram. Os ninhos são teias de cabelos de mãe, que aquecem os ovos, que afagam os filhos. E os ramos das árvores são os altos braços das mães que seguram os ninhos. Mas os braços secam, porque as árvores também choram, e os ninhos caem para os filhos terem de voar. Na queda, as mães são as madrinhas de voo do baptismo dos filhos. E os seus dedos de fada são varinhas de condão que não concedem desejos. As mães sabem que por cada desejo realizado morre um sonho antigo. Por isso, são inábeis caçadoras de sonhos dos filhos, preferem deixá-los voar. 

 As mães são gotas de água na frágil teia dos filhos, nascem no orvalho da manhã e secam no estio das suas vidas. As teias desfazem-se e as gotas das mães são o mar, que é salgado com as lágrimas dos lutos dos filhos. Elas bebem o mar, por inteiro, para dar pé aos filhos. E eles caminham até aos braços salgados das suas mães. O abraço das mães é a casa sagrada dos filhos - é por isso que os filhos transportam a chave do coração das mães.

março 29, 2021

“ - eu e as minhas paixões não coincidimos,

- mana, o seu corpo tem uma paixão que não lhe pertence.

(vai até onde a estranheza 

te acompanha. Ela é o cão 

da tua sombra)”

Rui Nunes | A boca na cinza | Relógio D’Agua | 2003

março 26, 2021

fevereiro 11, 2021

                    
PLAY Kurt Schwitters| Ursonate |1932

janeiro 22, 2021

©raquelsav | 2020

Há palavras que não dizemos
e que pomos sem dizê-las nas coisas.
E as coisas guardam-nas,
e um dia respondem-nos com elas
e salvam-nos o mundo,
como um amor secreto
em cujos dois extremos
há uma só entrada.
Não haverá uma palavra
dessas que não dizemos
que tenhamos colocado
sem querer no nada?

******************************
O ser começa entre as minhas mãos de homem.
O ser,
todas as mãos,
qualquer palavra que se diga no mundo,
o trabalho da tua morte,
Deus, que não trabalha.

Mas o não ser também começa entre as minhas mãos de homem.

O não-ser,
todas as mãos,
a palavra que se diz fora do mundo, 
as férias da tua morte,
a fadiga de Deus,
a mãe que nunca terá filho,
meu não morrer ontem.

Mas as minhas mãos de homem onde começam?

Roberto Juarroz | Poesia Vertical | Campo das letras| 1998


******************************

A PALAVRA HOMEM
A palavra Homem, como vocábulo
no lugar que é o seu
no dicionário Morais:
entre hombridade e homenagem.

A cidade
velha e nova,
muito animada, com árvores
também
e carros, aqui

ouço a palavra, o vocábulo
ouço-o muitas vezes aqui, podia
dizer em que bocas, podia começar
a contá-las.

Onde não há amor
não pronuncies essa palavra.
Johannes Bobrowski | Sinais de tempo in Como um Respirar- Antologia poética | Edições Cotovia| 1990


janeiro 21, 2021

 

©raquelsav | 2021

A guilhotina do dia
decapita
a nomenclatura triste das coisas
e tudo passa a ter um só nome,
pressentido, vertiginoso, impronunciável.
Tudo joga o grande jogo:
desfilar,
transitar como um gesto de adeus,
tremer, saltar, pensar ou não pensar,
sentir, cair, calar o nome.
Calar o nome,
dizê-lo
sem a palavra agreste de uma linguagem.
Toda a realidade é afinal isto:
dizer um nome do outro modo.

Roberto Juarroz | Poesia Vertical | Campo das letras| 1998

janeiro 06, 2021

Kenji Mizoguchi | Contos da Lua Vaga | 1953 | Japão

"Quem me dá certezas que o livro não tem?"


Letra: Mário Cláudio
Música: Bernardo Sassetti
Intérpretes: Carlos do Carmo & Bernardo Sassetti

Retrato
Quando a tarde passa, abre-se outra porta
Se o morcego voa, a estrela desponta
Ser de hoje ou de sempre, nada disso importa
Todo o tempo corre só por nossa conta

Sei de praias brancas, de velas queimadas
Se perdi meus passos em longa carreira
Tive pais e filhos, tive namoradas
E encontrei-me logo aqui mesmo à beira

Jogo minhas cartas na mesa da vida
Recolho moedas e penas também
Alma incandescente, de frio transida
Quem me dá certezas que o livro não tem

O vinho bebido ao sangue juntei
E os frutos da terra descobri em mim
Que ninguém me diga que morreu sem lei
Que ninguém me diga que morreu assim.