outubro 29, 2022

Funchal, década de 60
Padre João Vieira (15.02.1927 - 24.10.2022)


Ao homem leve, sobram coisas às coisas,
faltam adjetivos aos nomes
e assomam os verbos fora do tempo,
entre um passado por vir 
e um futuro que passou.

O homem leve não tira os pés do chão,
para conduzir os passos no ar,
perfila-os bem assentes na terra,
 equilibrados sem agravo
e sem tropeço.
Quando caminha, 
impele ao corpo a dança,
constante, decidida,
casta e lídima.
Não se eleva nem levita,
porque ao redor do homem leve
tudo gira, 
tudo orla,
tudo rima
e gravita.

outubro 09, 2022

 


outubro 01, 2022


 © Elliott_Erwitt | Paris. 1998. 

Eu era lume sobre sede e tu procuravas dar-me a beber, gomo a gomo, laranja-cor-de-sangue de Simic. Demoravas repetidas vezes:

- A laranja parte-se em silêncio à entrada de noites fabulosas.

E eu ouvia cada sílaba, na cadência dos teus lábios secos. Não entendia. Sempre ouvira dizer que de manhã é ouro, à tarde prata mas que, à noite, a laranja mata. E era noite. Demasiadamente noite.

Desesperada, repeti, em fuga, baixo contínuo, o que me pareceu uma troca justa.

|| Um gomo por uma nota de Bach. Uma sílaba tua por uma nota de Bach:||

Tu recusaste. Disseste que eu não tinha a cabeça de vidro.

- Não és transparente e não se come laranja com a boca suja. Não distinguirias o doce da laranja do amargo da palavra. Nunca, para ti, o gomo secreto de Al Berto. Não és do lado de fora da cidade.

Ficámos em silêncio. 

Impusemos a despedida.

________________________

Hoje, ainda te oiço:

- Tu não tens como matar a sede.

Concordo. Nunca possuirei a transparência louca e ácida de quem compreende a laranja. Mas releio-me na "alta solidão que nem pode ser nossa de tão pura". 

E eu sei que

não há sede que a palavra, nos teus lábios, não (me) mate.