janeiro 17, 2015

@Josef Koudelka. Last night, 
PLAY The Runaways Wild Thing

Como quem arranca a pele e descobre onde nasce a dor.
Como quem não nega a coisa selvagem de romper de si.
Como quem pinta a urgência em tons felinos.
Como quem arranha para escavar o novo dia.

PLAY Pela 7th and 17th
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Adulto: Pessoa que em tudo o que diz, fala primeiro dela mesma (Andrés Felipe Bedoya, 8 anos)
Ancião: É um homem que fica sentado o dia todo (Maryluz Arbeláez, 9 anos)
Água: Transparência que se pode beber (Tatiana Ramírez, 7 anos)
Branco: O branco é uma cor que não pinta (Jonathan Ramírez, 11 anos)
Camponês: um camponês não tem casa, nem dinheiro. Somente os seus filhos (Luis Alberto Ortiz, 8 anos)
Céu: De onde sai o dia (Duván Arnulfo Arango, 8 anos)
Dinheiro: Coisa de interesse para os outros com a qual se faz amigos e, sem ela, se faz inimigos (Ana María Noreña, 12 anos)
Deus: É o amor com cabelo grande e poderes (Ana Milena Hurtado, 5 anos)
Escuridão: É como o frescor da noite (Ana Cristina Henao, 8 anos)
Guerra: Gente que se mata por um pedaço de terra ou de paz (Juan Carlos Mejía, 11 anos)
Inveja: Atirar pedras nos amigos (Alejandro Tobón, 7 anos)
Igreja: Onde a pessoa vai perdoar Deus (Natalia Bueno, 7 anos)
Lua: É o que nos dá a noite (Leidy Johanna García, 8 anos)
Mãe: Mãe entende e depois vai dormir (Juan Alzate, 6 anos)
Paz: Quando a pessoa se perdoa (Juan Camilo Hurtado, 8 anos)
Sexo: É uma pessoa que se beija em cima da outra (Luisa Pates, 8 anos)
Solidão: Tristeza que dá na pessoa às vezes (Iván Darío López, 10 anos)
Tempo: Coisa que passa para lembrar (Jorge Armando, 8 anos)
Universo: Casa das estrelas (Carlos Gómez, 12 anos)
Violência: Parte má da paz (Sara Martínez, 7 anos)

De:
Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças, definições recolhidas pelo professor Javier Naranjo

janeiro 16, 2015

Talvez quando inaugurares um lugar saibas do que falo. Até lá, podes sempre  fechar os olhos e fingir que dormes e mergulhar em dor menor. Podes sempre ler, distraída, folhetos de publicidade pela manhã, com o olhar de que quem lê a mais autêntica lição de vida- aquela que irás pôr em prática depois de almoço. Tu sabes daquela pitada apensa a qualquer frase motivacional que te alegra os dias. E amanhã, na manhã, na tarde e na noite que se fundem num só tempo- continua a ser-te indiferente se ris ou choras. A medida da emoção é sempre a mesma, a expressão idêntica à que fizeste ontem enquanto fazias tantas outras coisas- inúteis aos teus olhos, e dos outros, como quem respira. Mas tu só sabes inspirar, e reténs todo o ar da vida em ti, com medo que não chegue para amanhã. Sim, esse hoje onde todos os períodos do dia se fundem em denominador comum. Expira, por favor, expira e sê, de uma vez por todas ou, então, desiste e não desperdices o ar que gastas- esse ao menos sempre é útil para fazer uma árvore crescer.
PLAY Portishead Wandering Star

Por mais é saber que existe e desconfiar que nada de mais sublime nos poderá assaltar. E depois fugimos, resvalamos, inventamos, cegamos, enganamo(-no)s, cansamo(-no)s, matamo(-no)s e ensaiamos despedidas bem antes de morrermos, só porque sabemos que existe, e que não temos como reinventar o nada.


Roads
Ohh, can't anybody see
We've got a war to fight?
Never found our way?
Regardless of what they say

How can it feel, this wrong?
From this moment
How can it feel, this wrong?

Storm... In the morning light
I feel
No more can I say
Frozen to myself

I got nobody on my side
And surely that ain't right
And surely that ain't right

Ohh, can't anybody see
We've got a war to fight?
Never found our way?
Regardless of what they say


PLAY Portishead Roads
©raquelsav. Versailles
"Com as palavras todo o cuidado é pouco, têm um ar inofensivo, as palavras, de forma alguma um ar perigoso, antes de aragem leve, de suaves sons de boca nem quentes nem frios e facilmente captados se nos chegam pelo ouvido, pelo enorme tédio cerebral cinzento e mole. Não desconfiamos delas, das palavras, e a desgraça acontece.
Palavras há que se escondem entre as outras como calhaus. Nada de especial as distingue, mas no entanto aí estão elas a fazer tremer toda a vida que temos, inteira, no auge e no declínio... Então é o pânico.... Uma derrocada... Por lá ficamos como enforcados, acima das emoções... Foi uma tempestade o que chegou, o que passou, demasiado forte para nós, tão violenta que nunca a julgaríamos possível só com sentimentos..... Com palavras todo o cuidado é pouco, concluo eu."

"A viagem é a procura desse nada de nada, dessa pequena vertigem para lorpas..."

Louis-Ferdinand Céline Viagem ao fim da noite, Ulisseia, 2010

[um livro ou uma espécie de tratado, um manual de (não) sobrevivência...]

janeiro 15, 2015

aqui estou eu entre demónios e paredes lisas
solicitando certificados bulas para viver melhor à sexta-feira
vale-me não ser ninguém: faziam-me a vida negra
assim basta o cinzento fato completo silencioso em lugar para os olhos 
levantar cedo ver passar os carros
estar certo que o que digo já foi dito e selado
agora não me resta poesia alguns dias mais oscilando a cabeça
fazendo que sim

dá vontade de fugir vomitando tudo em volta mas o preço é preciso
se ao menos inventasse a cura do ar podia secar tranquilamente
agora espero pelo meio do escuro para gritar errei! errei! desmanchando o 
                                                                                                               [cabelo

nada disto é a minha vida!
para que ninguém ouça nas coloridas salas do inferno terceira repartição
onde somos, mas todos, contínuos de comer por fora
Melhor seria ter ficado de lado entregue à simplicidade dos caminhos
sabendo que em nenhum lugar está a minha parte

Ao atravessar as ruas há outros como eu
a jeito para enfiar uma navalha ao fim da tarde
Aqueles para quem o mundo ia ser outro de mãos lavadas
e ficou tudo igual com mais ausentes à mistura
Um dia destes dou baixa dos infernos por motivo de cegueira interna
ou mando-me de um sítio alto
depois não sei se voltarei feito demónio de província
ou ficarei eterno como um exemplo a não seguir  
       
António Franco Alexandre, Poemas, 
Assírio & Alvim, 1996
Hoje chove como eu
cada um chove como pode: em morte lenta.

janeiro 14, 2015

I
Onde habite o esquecimento,
Nos vastos jardins sem madrugada;
Onde eu seja somente
Lembrança de uma pedra sepultada entre urtigas
Sobre a qual o vento foge à sua insónia.

Onde o meu nome deixe
O corpo que ele aponta entre os braços dos séculos,
Onde o desejo não exista.

Nessa grande região onde o mar, anjo terrível,
Não esconda como espada
Sua asa em meu peito,
Sorrindo cheio de graça etérea enquanto cresce a dor

Além onde termine este anseio que exige um dono à sua imagem,

Submetendo a sua vida a outra vida
Sem mais horizonte que outros olhos frente a frente.

Onde dores e alegrias não sejam mais que nomes,
Céu e terra nativos em redor de uma lembrança;
Onde ao fim fique livre sem eu mesmo o saber,
Dissolvido em névoa, ausência,
Ausência leve como carne de uma criança.

Além, além, longe;
Onde habite o esquecimento.

Luis Cernuda Antologia Poética Edições Cotovia, 1990
Fosse tudo uma questão de navalha:
essa afia-se e leva-se ao corte-
firme sem vacilar - e
a cada um o seu quinhão.
Mas a loucura não se divide a meio,
nem se faz sã, de caminho ao dono,
a loucura prende-se às pernas e anda,
faz-se coisa de amar - que a navalha não corta.

Fosse tudo uma questão de liberdade:
essa fia-se e eleva-se à vida
sem hora nem regresso
e sempre só.

MANDO O SONHO ATRAVÉS DO CRIVO VIBRANTE,
tu apanha-lo em pratos
da alma
e junta-lo à refeição
que nós, os que ajoelham um dentro do outro,
temos de
desprezar.

Paul Celan, A morte é uma flor, Edições Cotovia, 1998
cansa(&)aço
eis pois aqui e agora
a ausência
o vazio
o fim
o princípio
a espiral
a depuração
a não palavra: (des)ponte

próximo
vicinal

e
eu
caminho

eis pois
uma vez mais

desmedo

eis pois aqui e agora
o vento
e eu
e só
vou


janeiro 13, 2015

(em)quanto vivo o nome
para lá do vento
o sopro da metamorfose
(de larva a pupa) 

SOrriso -> SEMriso
PARA LONGE

Mudez, outra vez, espaçosa, uma casa -:
vem, deves habitar.

Horas, bem escalonadas por maldição: alcançável
o refúgio.

Nunca tão cortante o ar que restou: deves respirar,
respirar e ser tu.


Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014
@raquelsav

enquanto bastar, e só,
na sombra
o limite incauto

o vento e a água
sem fermento
tendem na farinha
o sonho ázimo

duas cores e uma luz para o intervalo:
assim se preservam
as coisas que não existem

que podemos nós
saber delas?

que podemos nós,
nós nelas?


DIANTE DE TEU ROSTO TARDIO
so-
litário entre
noites que também me transformam,
algo que outrora já entre nós estivera,
se instalou, in-
tocado por pensamentos.


Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014

janeiro 11, 2015

PELO INSONHADO corroída,
a terra do pão insonemente percorrida atira
o monte da vida ao ar.

Da sua migalha
amassas de novo nossos nomes, 
que eu, um olho
semelhante 
ao teu em cada dedo,
tacteio em busca
de um ponto, pelo qual
possa despertar para ti, 
a luzente
vela da fome na boca.

Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014
A PALAVRA DE IR-A-PIQUE
que lemos.
Os anos, as palavras desde então.
Ainda o somos.

Sabes, o espaço é infinito,
sabes, não precisas de voar,
sabes, o que em teu olho se gravou
aprofunda-nos a profundeza.


Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014

janeiro 10, 2015

#1

"Deus é um pobre diabo"
TODOS-OS-SANTOS

Que fiz
eu?
Inseminei a noite, como se outras
pudessem vir, mais nocturnas que
esta.

Voo de ave, voo de pedra, mil
trajectórias descritas. Olhares,
pilhados e colhidos. O mar,
provado, sorvido, absorto. Uma hora,
obscurecida de almas. A seguinte, uma luz outonal,
ofertada a um sentimento
cego, que tomou o caminho. Outras, muitas,
sem lugar e pesadas de si mesmas: avistadas e contornadas.
Rochas erráticas, estrelas,
negras e plenas de linguagem: nomeadas
por jura de silêncio rasgado.

E certa vez (quando? também isto se esqueceu):
o pulso sentiu o gancho,
quando ousava desprender-se.


Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014

janeiro 09, 2015

©raquelsav. Ponte das três entradas
PLAY Wim Martens -Gerausch

ESTAR, à sombra
da chaga no ar.

Estar-para-ninguém-e-nada.
Incógnito,
só 
para ti.

Com tudo o que nisso tem lugar,
também sem
linguagem.

Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014

janeiro 04, 2015

-(...) a flor está triste.
- a sério? e por que será?
- porque não tem amigas.
@raquelsav. Paris

PLAY Carlos Paredes Mudar de Vida


Carlos Paredes: O voo da guitarra

O mundo
às vezes
é somente
uma ferida sobre
outra ferida - a luminosa
coincidência
duma asa desprendida
e o voo
duma guitarra.

Albano Martins Castália e outros poemas Campo das Letras, 2001

janeiro 03, 2015



o prelúdio é fugaz
só quando dói, é em ostinato,
sem variação nem fuga
©Patrick Zachmann CHILE. June, 1999.
Atacama Desert. Along the Panamerican route n°5 between the towns of Arica and Huara
PLAY Arvo Pärt Salve Regina

fecho os olhos
e amo

de olhos fechados
nada me rouba desse lugar sem tempo
e sou

A grande beleza

fotograma de La Grande Bellezza 
PLAY Górecki Sinfonia Nº3

(filmes que vêm ter connosco e acontecem, inevitável e distraidamente, em nós)

"Termina sempre assim: com a morte. 
Mas primeiro havia a vida. 
Escondida sob o blá, blá, blá, blá. 
Está tudo sedimentado sob o falatório e os rumores. 
O silêncio e o sentimento. A emoção e o medo. 
Os insignificantes, inconstantes lampejos de beleza. 
Depois a miséria desgraçada e o homem miserável. 
Tudo sepultado sob a capa do embaraço de estar no mundo. 
Blá, blá, blá, blá
O outro lado é o outro lado.
Eu não vivo do outro lado.
Portanto que este romance comece.
No fundo é apenas uma ilusão.
Sim, é apenas uma ilusão.”

Do filme A grande Beleza (La grande bellezza) dirigido por Paolo Sorrentino (2013).

janeiro 02, 2015

Chuva

hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor/
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra/
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher/
entra em casa pela janela e não pela porta/
por uma porta entra-se em muitos sítios/
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo/
mas não no mundo/
nem numa mulher/ nem na alma
quer dizer/ nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim/
como hoje/ que chove muito
e me custa escrever a palavra amor/
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa/
e só a alma sabe onde as duas se encontram/
e quando/ e como 

mas que pode a alma explicar/

por isso o meu vizinho tem tempestades na boca/
palavras que naufragam/
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na 
mesma noite em que ele amou/
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá/
como o silêncio que existe entre duas rosas/
ou como eu/ que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva/
e à chuva/
ao meu coração desterrado



Juan Gelman, No avesso do mundo, Quetzal, 1998
e leva luz como quem rasga o peito
para mostrar o contrário

e pressente
e adivinha:
torna-se instante- antes de ser
história

e do avesso faz direito
respirando tudo o que há por respirar
do mundo-
                e vive
PLAY The Black Angels The Executioner

Abraço o tempo, e leva-me consigo,
assim faz o vento quando te respira
e parece respirar seu próprio sopro.
Consciência corroída da história,
sombra de gente que morreu sonhando,
mentira que te faz julgar que é a vida
e o nada que perpassa ao recordar,
paciência que do tempo é inimiga,
evanescente bafo sobre um espelho cego.
Ó luz, que quando a vemos é já sombra,
dor do ser como ária conhecida.
Olho e não olho, saboreio o silêncio,
reflexo do nada que faz o nada ouvir.

Franco Loi, Memória,  Quetzal Editores, 1993
©Martine Franck.IRELAND. Donegal. Tory Island. 1995

PLAY Depeche Mode Enjoy the Silence

não engolir letras ao que conhecemos só de nome
não negar o nome à coisa
não esclarecer o inominável
subir e descer o indomável

domesticar o silêncio em nós e na coisa:
ser tentativa-erro até que a coisa aconteça em nós.

©Gueorgui Pinkhassov INDIA. Rajasthan. Jaisalmer. 1995

Can you hear me
When I'm trapped behind the mirror?
A doppelgänger roaring
From my silent kind of furor?

If you're quiet, you can hear the monster breathing
Do you hear that gentle tapping?
My ugly creature's freezing

And now's he howling
But I'm muted by the horror
How he's everywhere and waiting
Now he's just around the corner

Paranoia
Backward whispering on my shoulder
Like a wasp is getting nervous
So if I shiver, man, it's over

janeiro 01, 2015

©raquelsav2015

Para que uma só coisa
vibre
na sua presença nua
para além da conjugação dos possíveis 

é preciso que o silêncio a dispa 
e o seu nome seja o seu próprio pudor 

António Ramos Rosa, Antologia Poética