janeiro 25, 2015

©Archip Kuinji (1842-1910) Mar e Luar
PLAY Stephan Micus Adela

O velho pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling erravam pelas estradas do reino de Han.
Avançavam devagar, pois Wang-Fô parava de noite para contemplar os astros, de dia, para olhar as libélulas. Iam pouco carregados, pois Wang-Fô amava a imagem das coisas e não as próprias coisas, e nenhum objecto do mundo lhe parecia digno de ser adquirido, excepto pincéis, boiões de laca e de tintas-da-china, rolos de seda e papel de arroz. Eram pobres, pois Wang-Fô trocava as suas pinturas por um caldo de milho-miúdo e desprezava as moedas de prata. O seu discípulo Ling, vergado ao peso de um saco cheio de esboços, curvava respeitosamente as costas como se carregasse a abóbada celeste, pois aquele saco, aos olhos de Ling, ia cheio de montanhas sob a neve, de rios pela Primavera e do rosto da lua no Verão.
(...)
Certa noite, numa taberna, teve Wang-Fô por companheiro de mesa. O velho bebera para ficar em condições de pintar mais capazmente um bêbado; a cabeça pendia-lhe de lado, como se procurasse medir a distância que separava a sua mão da chávena. A aguardente de arroz soltava a língua daquele artesão taciturno, e nessa noite Wang falava como se o silêncio fosse um muro e as palavras cores destinadas a cobri-lo. Graças a ele, Ling conheceu a beleza das caras dos bebedores esbatidas pelo vapor das bebidas quentes, o moreno esplendor das carnes desigualmente acariciadas pela língua das chamas e o delicado rosicler das nódoas de vinho que salpicavam as toalhas como pétalas murchas. Uma rabanada de vento rompeu a janela; a tempestade entrou pela sala. Wang-Fô esgueirou-se para dar a contemplar a Ling o lívido zebrado do relâmpago, e Ling, maravilhado, perdeu o medo à trovoada.
(...)
Um dia, pelo sol poente, alcançaram os arrabaldes da cidade imperial, e Ling procurou uma estalagem onde Wang-Fô passasse a noite. O velho embrulhou-se nuns trapos e Ling deitou-se colado a ele para o aquecer, pois a Primavera mal rompera e o chão de terra batida estava ainda gelado. Pela madrugada, ecoaram pesados passos nos corredores da pousada; ouviram-se os aterrados sussurros do hospedeiro e ordens vociferadas numa língua bárbara. Ling estremeceu, lembrando-se que na véspera roubara um pastel de arroz para a refeição do mestre. Sem duvidar de que vinham para o prender, perguntou-se quem ajudaria Wang-Fô a atravessar a vau o próximo rio.
Entraram soldados com lanternas. Filtrada pelo papel sarapintado, a chama lançava-lhes clarões vermelhos ou azuis nos capacetes de couro. Vibrava-lhes ao ombro a corda de um arco e os mais ferozes atiravam súbitos rugidos descabidos. Assentaram pesadamente a mão na nuca de Wang-Fô, que não pôde deixar de reparar que as mangas das suas vestes não condiziam com a cor do manto.
Amparado pelo seu discípulo, Wang-Fô acompanhou os soldados tropeçando por caminhos acidentados. Aos magotes, o populacho troçava daqueles dois criminosos que levavam certamente a decapitar. A todas as perguntas de Wang, os soldados respondiam com um esgar selvagem. As suas mãos agrilhoadas sofriam, e Ling, desesperado, olhava o mestre, sorrindo, o que, para ele, era uma maneira mais terna de chorar.
(...)
Era uma sala desprovida de paredes, sustentada por sólidas colunas de pedra azul. Para além dos fustes de mármore desabrochava um jardim, e cada flor contida no arvoredo pertencia a alguma espécie rara trazida de além-mar. Mas nenhuma delas tinha perfume, não fosse a doçura dos aromas alterar a meditação do Dragão Celeste. Por respeito ao silêncio em que mergulhavam os seus pensamentos, nenhuma ave fora admitida no interior do recinto e até as abelhas haviam sido escorraçadas. Um muro altíssimo separava o jardim do resto do mundo, para que o vento, que sopra sobre os cães mortos e os cadáveres dos campos de batalha, se não permitisse aflorar a manga do Imperador.
(...)
– Dragão Celeste – disse Wang-Fô prosternado –, sou velho, sou pobre, sou fraco. Tu és como o Verão; eu sou como o Inverno. Tu tens Dez Mil Vidas; eu tenho uma só, prestes a acabar. Que te fiz eu? Ataram-me as mãos, que jamais te prejudicaram.
– Perguntas-me que foi que me fizeste, velho Wang-Fô? – disse o Imperador.
A sua voz era tão melodiosa que dava vontade de chorar. Ergueu a mão direita, que os reflexos do chão de jade faziam mostrar-se glauca como planta submarina, e Wang-Fô, maravilhado pelo comprimento daqueles dedos esguios, procurou nas suas recordações se acaso não fizera do Imperador ou dos seus ascendentes algum retrato medíocre que merecesse a morte. Mas era pouco provável, porquanto, até então, Wang-Fô pouco frequentara a corte dos imperadores, preferindo as cabanas dos camponeses ou, nas cidades, os bairros das cortesãs e as tabernas junto aos cais onde brigam os carrejões.
– Perguntas-me que foi que me fizeste, velho Wang-Fô? – tornou o Imperador, inclinando o pescoço delicado para o velho que o escutava. – Vou-to dizer. Mas como o veneno dos outros apenas pode penetrar em nós pelas nossas nove aberturas, para te conduzir à presença dos teus erros tenho de passear-te pelos corredores da minha memória e contar-te toda a minha vida. Meu pai reunira uma colecção das tuas pinturas no aposento mais secreto do palácio, pois entendia que as personagens dos quadros devem ser subtraídas à vista dos profanos, na presença dos quais não podem baixar os olhos. Foi nestas salas que fui criado, velho Wang-Fô, pois haviam organizado a solidão à minha volta para me permitirem crescer nela. Para evitar à minha candura o contágio das almas humanas, haviam afastado de mim a agitada torrente dos meus futuros súbditos, e não era permitido a ninguém passar à soleira da minha porta, não fosse a sombra desse homem ou dessa mulher estender-se até mim. Os poucos velhos servos que me haviam destinado mostravam-se o menos possível; as horas giravam em círculo; as cores das tuas pinturas acendiam-se com a alvorada e empalideciam ao crepúsculo. De noite, quando não conseguia dormir, olhava-as e, durante cerca de dez anos, olhei-as todas as noites. De dia, sentado num tapete cujo desenho conhecia de cor, repousando as minhas mãos vazias nos meus joelhos de seda amarela, sonhava com as alegrias que o futuro me traria. Imaginava o mundo, com o país de Han ao meio, semelhante à cava e monótona planície da mão sulcada pelas linhas fatais dos Cinco Rios. A toda a volta, o mar onde nascem os monstros e, mais longe ainda, as montanhas que sustentam o céu. E para me ajudar a imaginar todas estas coisas, servia-me das tuas pinturas. Levaste-me a crer que o mar era semelhante à imensa toalha de água desdobrada nas tuas telas, tão azul que pedra que nele caísse só em safira se podia tornar, que as mulheres se abriam e fechavam como flores, iguais às criaturas que avançam, levadas pelo vento, nas áleas dos teus jardins, e que os jovens guerreiros de corpo esguio postados nas fortalezas das fronteiras eram flechas capazes de trespassar corações. Aos dezasseis anos vi abrirem-se as portas que me separavam do mundo: subi ao terraço do palácio para olhar as nuvens, mas eram menos belas do que as dos teus crepúsculos. Mandei vir a minha liteira: sacudido por estradas de cuja lama e de cujas pedras não suspeitava, percorri as províncias do Império sem encontrar os teus jardins cheios de mulheres como vaga-lumes, dessas tuas mulheres cujo corpo é em si mesmo um jardim. Os seixos das praias aborreceram-me dos oceanos; o sangue dos supliciados é menos vermelho que a romã figurada nas tuas telas; a escória das aldeias impede-me de ver a beleza dos arrozais; a carne das mulheres vivas repugna-me como a carne morta que pende dos ganchos dos açougueiros e o riso espesso dos meus soldados dá-me volta ao coração. Mentiste-me, Wang-Fô, velho impostor: o mundo mais não é do que um amontoado de manchas confusas, lançadas no vazio por um pintor insensato, que as nossas lágrimas apagam sem cessar. O reino de Han não é o mais belo dos reinos, e eu não sou o Imperador. O único império sobre o qual valha a pena reinar é aquele em que tu penetras, velho Wang, pelo caminho das Mil Curvas e das Dez Mil Cores. Só tu reinas em paz sobre montanhas cobertas de uma neve que jamais fundirá e sobre campos de narcisos que jamais hão-de morrer. Por isso mesmo, Wang-Fô, procurei que suplício te houvera de reservar, a ti cujos sortilégios me desgostaram daquilo que possuía e me deram o desejo daquilo que não possuirei nunca. E para te encerrar na única masmorra donde não pudesses sair, decidi que haviam de queimar-te os olhos, porque os teus olhos, Wang-Fô, são as duas portas mágicas que te abrem o teu reino. E porque as tuas mãos são as duas estradas de dez caminhos que te conduzem ao coração do teu império, decidi que haviam de cortar-te as mãos. Compreendeste, velho Wang-Fô?
(...)
Ao ouvir semelhante sentença, o discípulo Ling arrancou da cintura uma faca embotada e precipitou-se sobre o Imperador. Dois guardas o detiveram. O Filho do Céu sorriu e acrescentou num suspiro:
– E também te odeio, velho Wang-Fô, porque soubeste fazer-te amar. Matem esse cão.
Ling deu um salto em frente, não fosse o seu sangue manchar as vestes do mestre. Um dos soldados ergueu o sabre e a cabeça de Ling desprendeu-se da nuca como flor ceifada. Os servos retiraram os despojos, e Wang-Fô, desesperado, admirou a bela mancha escarlate que o sangue do discípulo desenhava no pavimento de pedra verde.

(...)
Wang começou por tingir de rosa a ponta da asa de uma nuvem pousada numa montanha. Depois acrescentou à superfície do mar pequenas rugas que tornavam ainda mais profundo o sentimento da sua serenidade. O pavimento de jade tornava-se singularmente húmido, mas Wang-Fô, absorto na sua pintura, não se apercebia de que trabalhava sentado na água.
(...)
Wang-Fô disse-lhe baixinho, continuando a pintar: 
– Julgava-te morto. 
– Vivendo vós – disse Ling respeitosamente –, como poderia eu morrer? 
E ajudou o mestre a subir para o barco. O tecto de jade reflectia-se na água, de tal modo que Ling parecia navegar no interior de uma gruta. As tranças dos corte- sãos submersos ondulavam à superfície como serpentes, e a pálida cabeça do Imperador flutuava como um lótus.
- Olha, meu discípulo – disse Wang-Fô com melancolia. – Estes desgraçados vão perecer, se acaso não pereceram já. Não supunha que houvesse água bastante no mar para afogar um Imperador. Que faremos nós?
– Nada temas, Mestre – murmurou o discípulo. – Breve se encontrarão em seco e nem sequer se recordarão que alguma vez se lhes molhou a manga. Só o Imperador há-de guardar no coração um resto de marinha amargura. Esta gente não foi feita para se perder no interior de uma pintura.
E acrescentou:
- É belo o mar, e o vento é bom, as aves marinhas fazem ninhos. Partamos, Mestre, rumo ao país para além das vagas.
-Partamos- disse o velho pintor.
(...)
e  o pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling desapareceram para sempre naquele mar de jade azul que Wang-Fô ali mesmo inventara."

Marguerite Yourcenar  Contos Orientais (A salvação de Wang-Fô), Dom Quixote: 2002
 Archip Kuinji (1842-1910) Fishing_at_the_Back_Sea_1900

janeiro 24, 2015

©Abbas.
G.B. NORTHERN IRELAND. Belfast.
A wall crumbles down after having been set on fire, presumably by the IRA
PLAY Mehliana (Brad Mehldau & Mark Guiliana) - Just Call Me Nige (Live)

COMO COISAS CAINDO
Tudo parece ter outra vez começado. quando
- a cabeça encostada à morte que a perder de vista
crescia- este homem estancado reconheceu o seu nome
pelo vento desenhado com os gravetos pobres
naquela que julgara ser a última parede do labirinto:
Já ali estivera. Ouvia outra vez a linguagem:
a montanha; desde sempre a linguagem- e era um mar
nascendo no visível do outro lado: o som verde.

Recomeçou: retrocedendo, internou-se outra vez
no poema, tropeçando no rumor que escurecia o sangue
em ondas nas paredes lentas. Ouvia cada vez mais longe
a boca do mar que repetia: - uma onda uma praia outra onda,
nas margens do mundo. Lá: o aberto de um leque bateria o ar
como as pétalas de uma borboleta perene; e aqui ele confiava-se
aos passos de quem por ali seguira, os seus ou os de outrem - 
não sabia; mas alguém passara já por ali, sempre à beira de cair. 
(...)
Manuel Gusmão, Migrações do fogo, 2004, Caminho
©Nikos Economopoulos
GREECE. Peloponnese region. Town of Kalamata. 1981.
During the election campain

janeiro 23, 2015


©Nikos Economopoulos. Olympia, Greece, 2012

(...)
Quem disse
Que há horas e momentos p´ra se amar
(...)
{as memórias são
Como livros escondidos no pó
As lembranças são
Os sorrisos que queremos rever, devagar}
Queria viver tudo numa noite
Sem perder a procurar
O tempo, ou o espaço
Que é indiferente p´ra poder sonhar
Quem foi que provocou vontades
E atiçou as tempestades
E amarrou o barco ao cais
Quem foi, que matou o desejo
E arrancou o lábio ao beijo
E amainou os vendavais
©HU - untitled, 2011 mixed media on mdf 80x60 cm
http://huportfolio.weebly.com/painting.html


são pés que não sabem do lugar,
são braços desconjuntados do tronco,
são roupas que vestem um corpo sem lugar.
©HU. 2010
http://huportfolio.weebly.com/
PLAY Rui Veloso - Não queiras saber de mim

No Exílio

Está triste explora
A dúvida que tem sobre a sua realidade aos olhos de um outro
Planta maior no banho
Vegetal elaborado trigueira ou loura
Na extrema flor da cabeça
A sua permanente nudez

Os seus seios de favores recusados
Um riso nos cabelos de cítiso

Entre as árvores
A tempestade que protege os seus

Quebra os caules da luz

É ela é também a tempestade
Que distribui armas desastradas
Às ervas aos insectos
Aos últimos calores
Os fumos do outono
As cinzas do inverno

Deixou de ser rara a pérola negra
O desejo e o tédio fraternizam
Carrossel das manias
Tudo é esquecido
Nada é sacrificado
O odor dos escombros persiste

De olhos fechados é ela toda inteira.

Paul Éluard Últimos poemas de amor, Relógio D'Água, 2002
(Trad. Maria Gabriela Llansol)



janeiro 18, 2015

©Martine Franck JORDAN. Governorate of Al 'Aqaba. Petra. 2001
PLAY Philippe Manoury, Melencolia, third string quartet

Também os pingos unos caem, chuva, em poça de água imprecisa. E uma massa comum disforme cresce sem imaginação. Só o passo firme e sonoro os fará renascer- um salpico, um momento- para voltarem a ser (nova) poça de água em massa indefinida.


©Mark Freedom

1
o sol ensina o único caminho
a voz da memória irrompe lodosa
ainda não partimos e já tudo esquecemos
caminhamos envoltos num alvéolo de ouro fosforescente
os corpos diluem-se na delicada pele das pedras

falam os rios deste regresso e pelas margens ressoam passos
os poços onde nos debruçámos aproximam-se perigosamente
da ausência e da sede procurámos os rostos na água
conseguimos não esquecer a fome que nos isolou
de oásis em oásis

hoje
é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar
o peso de súbitas cassiopeias nos olhos
quando o veludo da noite vem roer a pouco e pouco a planície

caminhamos ainda
sabemos que deixou de haver tempo para nos olharmos
a fuga só é possível para dentro dos fragmentados corpos
um dia... quem sabe?
chegaremos

Al Berto Tentativas para um regresso à Terra, 1980, 
in O Medo, Assírio & Alvim, 1997
©Martine Franck. INDIA. State of Orissa. Town of Puri. 1980

eu sou um segredo que estremece
um livro aberto para crianças medrosas
sou o cemitério dos necessitados
mas não sou uma aparição
dizem
depois de eu ter adormecido no regaço de Rouhania
ele é filho da solidão
sabes
quando Nachoude, o velho pescador, morreu, levado
       pela espuma suja
fizeram-lhe um pomposo funeral
os gatos choraram
e o mar retirou-se a perder de vista e a lua velou muito tempo
       a sepultura

Tahar Ben Jelloun Arzila Estação de Espuma, Hiena Editora, 1987
(Trad. Al Berto)

janeiro 17, 2015

@Josef Koudelka. Last night, 
PLAY The Runaways Wild Thing

Como quem arranca a pele e descobre onde nasce a dor.
Como quem não nega a coisa selvagem de romper de si.
Como quem pinta a urgência em tons felinos.
Como quem arranha para escavar o novo dia.

PLAY Pela 7th and 17th
_______________________
Adulto: Pessoa que em tudo o que diz, fala primeiro dela mesma (Andrés Felipe Bedoya, 8 anos)
Ancião: É um homem que fica sentado o dia todo (Maryluz Arbeláez, 9 anos)
Água: Transparência que se pode beber (Tatiana Ramírez, 7 anos)
Branco: O branco é uma cor que não pinta (Jonathan Ramírez, 11 anos)
Camponês: um camponês não tem casa, nem dinheiro. Somente os seus filhos (Luis Alberto Ortiz, 8 anos)
Céu: De onde sai o dia (Duván Arnulfo Arango, 8 anos)
Dinheiro: Coisa de interesse para os outros com a qual se faz amigos e, sem ela, se faz inimigos (Ana María Noreña, 12 anos)
Deus: É o amor com cabelo grande e poderes (Ana Milena Hurtado, 5 anos)
Escuridão: É como o frescor da noite (Ana Cristina Henao, 8 anos)
Guerra: Gente que se mata por um pedaço de terra ou de paz (Juan Carlos Mejía, 11 anos)
Inveja: Atirar pedras nos amigos (Alejandro Tobón, 7 anos)
Igreja: Onde a pessoa vai perdoar Deus (Natalia Bueno, 7 anos)
Lua: É o que nos dá a noite (Leidy Johanna García, 8 anos)
Mãe: Mãe entende e depois vai dormir (Juan Alzate, 6 anos)
Paz: Quando a pessoa se perdoa (Juan Camilo Hurtado, 8 anos)
Sexo: É uma pessoa que se beija em cima da outra (Luisa Pates, 8 anos)
Solidão: Tristeza que dá na pessoa às vezes (Iván Darío López, 10 anos)
Tempo: Coisa que passa para lembrar (Jorge Armando, 8 anos)
Universo: Casa das estrelas (Carlos Gómez, 12 anos)
Violência: Parte má da paz (Sara Martínez, 7 anos)

De:
Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças, definições recolhidas pelo professor Javier Naranjo

janeiro 16, 2015

Talvez quando inaugurares um lugar saibas do que falo. Até lá, podes sempre  fechar os olhos e fingir que dormes e mergulhar em dor menor. Podes sempre ler, distraída, folhetos de publicidade pela manhã, com o olhar de que quem lê a mais autêntica lição de vida- aquela que irás pôr em prática depois de almoço. Tu sabes daquela pitada apensa a qualquer frase motivacional que te alegra os dias. E amanhã, na manhã, na tarde e na noite que se fundem num só tempo- continua a ser-te indiferente se ris ou choras. A medida da emoção é sempre a mesma, a expressão idêntica à que fizeste ontem enquanto fazias tantas outras coisas- inúteis aos teus olhos, e dos outros, como quem respira. Mas tu só sabes inspirar, e reténs todo o ar da vida em ti, com medo que não chegue para amanhã. Sim, esse hoje onde todos os períodos do dia se fundem em denominador comum. Expira, por favor, expira e sê, de uma vez por todas ou, então, desiste e não desperdices o ar que gastas- esse ao menos sempre é útil para fazer uma árvore crescer.
PLAY Portishead Wandering Star

Por mais é saber que existe e desconfiar que nada de mais sublime nos poderá assaltar. E depois fugimos, resvalamos, inventamos, cegamos, enganamo(-no)s, cansamo(-no)s, matamo(-no)s e ensaiamos despedidas bem antes de morrermos, só porque sabemos que existe, e que não temos como reinventar o nada.


Roads
Ohh, can't anybody see
We've got a war to fight?
Never found our way?
Regardless of what they say

How can it feel, this wrong?
From this moment
How can it feel, this wrong?

Storm... In the morning light
I feel
No more can I say
Frozen to myself

I got nobody on my side
And surely that ain't right
And surely that ain't right

Ohh, can't anybody see
We've got a war to fight?
Never found our way?
Regardless of what they say


PLAY Portishead Roads
©raquelsav. Versailles
"Com as palavras todo o cuidado é pouco, têm um ar inofensivo, as palavras, de forma alguma um ar perigoso, antes de aragem leve, de suaves sons de boca nem quentes nem frios e facilmente captados se nos chegam pelo ouvido, pelo enorme tédio cerebral cinzento e mole. Não desconfiamos delas, das palavras, e a desgraça acontece.
Palavras há que se escondem entre as outras como calhaus. Nada de especial as distingue, mas no entanto aí estão elas a fazer tremer toda a vida que temos, inteira, no auge e no declínio... Então é o pânico.... Uma derrocada... Por lá ficamos como enforcados, acima das emoções... Foi uma tempestade o que chegou, o que passou, demasiado forte para nós, tão violenta que nunca a julgaríamos possível só com sentimentos..... Com palavras todo o cuidado é pouco, concluo eu."

"A viagem é a procura desse nada de nada, dessa pequena vertigem para lorpas..."

Louis-Ferdinand Céline Viagem ao fim da noite, Ulisseia, 2010

[um livro ou uma espécie de tratado, um manual de (não) sobrevivência...]

janeiro 15, 2015

aqui estou eu entre demónios e paredes lisas
solicitando certificados bulas para viver melhor à sexta-feira
vale-me não ser ninguém: faziam-me a vida negra
assim basta o cinzento fato completo silencioso em lugar para os olhos 
levantar cedo ver passar os carros
estar certo que o que digo já foi dito e selado
agora não me resta poesia alguns dias mais oscilando a cabeça
fazendo que sim

dá vontade de fugir vomitando tudo em volta mas o preço é preciso
se ao menos inventasse a cura do ar podia secar tranquilamente
agora espero pelo meio do escuro para gritar errei! errei! desmanchando o 
                                                                                                               [cabelo

nada disto é a minha vida!
para que ninguém ouça nas coloridas salas do inferno terceira repartição
onde somos, mas todos, contínuos de comer por fora
Melhor seria ter ficado de lado entregue à simplicidade dos caminhos
sabendo que em nenhum lugar está a minha parte

Ao atravessar as ruas há outros como eu
a jeito para enfiar uma navalha ao fim da tarde
Aqueles para quem o mundo ia ser outro de mãos lavadas
e ficou tudo igual com mais ausentes à mistura
Um dia destes dou baixa dos infernos por motivo de cegueira interna
ou mando-me de um sítio alto
depois não sei se voltarei feito demónio de província
ou ficarei eterno como um exemplo a não seguir  
       
António Franco Alexandre, Poemas, 
Assírio & Alvim, 1996
Hoje chove como eu
cada um chove como pode: em morte lenta.

janeiro 14, 2015

I
Onde habite o esquecimento,
Nos vastos jardins sem madrugada;
Onde eu seja somente
Lembrança de uma pedra sepultada entre urtigas
Sobre a qual o vento foge à sua insónia.

Onde o meu nome deixe
O corpo que ele aponta entre os braços dos séculos,
Onde o desejo não exista.

Nessa grande região onde o mar, anjo terrível,
Não esconda como espada
Sua asa em meu peito,
Sorrindo cheio de graça etérea enquanto cresce a dor

Além onde termine este anseio que exige um dono à sua imagem,

Submetendo a sua vida a outra vida
Sem mais horizonte que outros olhos frente a frente.

Onde dores e alegrias não sejam mais que nomes,
Céu e terra nativos em redor de uma lembrança;
Onde ao fim fique livre sem eu mesmo o saber,
Dissolvido em névoa, ausência,
Ausência leve como carne de uma criança.

Além, além, longe;
Onde habite o esquecimento.

Luis Cernuda Antologia Poética Edições Cotovia, 1990
Fosse tudo uma questão de navalha:
essa afia-se e leva-se ao corte-
firme sem vacilar - e
a cada um o seu quinhão.
Mas a loucura não se divide a meio,
nem se faz sã, de caminho ao dono,
a loucura prende-se às pernas e anda,
faz-se coisa de amar - que a navalha não corta.

Fosse tudo uma questão de liberdade:
essa fia-se e eleva-se à vida
sem hora nem regresso
e sempre só.

MANDO O SONHO ATRAVÉS DO CRIVO VIBRANTE,
tu apanha-lo em pratos
da alma
e junta-lo à refeição
que nós, os que ajoelham um dentro do outro,
temos de
desprezar.

Paul Celan, A morte é uma flor, Edições Cotovia, 1998
cansa(&)aço
eis pois aqui e agora
a ausência
o vazio
o fim
o princípio
a espiral
a depuração
a não palavra: (des)ponte

próximo
vicinal

e
eu
caminho

eis pois
uma vez mais

desmedo

eis pois aqui e agora
o vento
e eu
e só
vou


janeiro 13, 2015

(em)quanto vivo o nome
para lá do vento
o sopro da metamorfose
(de larva a pupa) 

SOrriso -> SEMriso
PARA LONGE

Mudez, outra vez, espaçosa, uma casa -:
vem, deves habitar.

Horas, bem escalonadas por maldição: alcançável
o refúgio.

Nunca tão cortante o ar que restou: deves respirar,
respirar e ser tu.


Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014
@raquelsav

enquanto bastar, e só,
na sombra
o limite incauto

o vento e a água
sem fermento
tendem na farinha
o sonho ázimo

duas cores e uma luz para o intervalo:
assim se preservam
as coisas que não existem

que podemos nós
saber delas?

que podemos nós,
nós nelas?


DIANTE DE TEU ROSTO TARDIO
so-
litário entre
noites que também me transformam,
algo que outrora já entre nós estivera,
se instalou, in-
tocado por pensamentos.


Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014

janeiro 11, 2015

PELO INSONHADO corroída,
a terra do pão insonemente percorrida atira
o monte da vida ao ar.

Da sua migalha
amassas de novo nossos nomes, 
que eu, um olho
semelhante 
ao teu em cada dedo,
tacteio em busca
de um ponto, pelo qual
possa despertar para ti, 
a luzente
vela da fome na boca.

Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014
A PALAVRA DE IR-A-PIQUE
que lemos.
Os anos, as palavras desde então.
Ainda o somos.

Sabes, o espaço é infinito,
sabes, não precisas de voar,
sabes, o que em teu olho se gravou
aprofunda-nos a profundeza.


Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014

janeiro 10, 2015

#1

"Deus é um pobre diabo"
TODOS-OS-SANTOS

Que fiz
eu?
Inseminei a noite, como se outras
pudessem vir, mais nocturnas que
esta.

Voo de ave, voo de pedra, mil
trajectórias descritas. Olhares,
pilhados e colhidos. O mar,
provado, sorvido, absorto. Uma hora,
obscurecida de almas. A seguinte, uma luz outonal,
ofertada a um sentimento
cego, que tomou o caminho. Outras, muitas,
sem lugar e pesadas de si mesmas: avistadas e contornadas.
Rochas erráticas, estrelas,
negras e plenas de linguagem: nomeadas
por jura de silêncio rasgado.

E certa vez (quando? também isto se esqueceu):
o pulso sentiu o gancho,
quando ousava desprender-se.


Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014

janeiro 09, 2015

©raquelsav. Ponte das três entradas
PLAY Wim Martens -Gerausch

ESTAR, à sombra
da chaga no ar.

Estar-para-ninguém-e-nada.
Incógnito,
só 
para ti.

Com tudo o que nisso tem lugar,
também sem
linguagem.

Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa,  
Relógio D'Água, 2014

janeiro 04, 2015

-(...) a flor está triste.
- a sério? e por que será?
- porque não tem amigas.