fevereiro 17, 2017

What's my name?

 
"Pois é, gentlemen, esta nossa maldita libido!-disse. - É claro que os senhores ainda tiram o vosso partido destas coisas, ainda as acham divertidas. Vesicular. Mas um chefe de sanatório como eu está farto de tudo isto, disso podem os senhores... Som abafado... disso podem os senhores ter certeza. Que culpa tenho eu que a tísica atraia uma certa concupiscência? Sopro ligeiramente rouco? Não fui eu quem dispôs as coisas desta maneira, mas enquanto o diabo esfrega um olho, já uma pessoa se vê à frente de uma casa de prazer. Menos audível debaixo da axila esquerda. Temos a análise, temos o aconselhamento psicológico - mas qual quê! Quanto mais esta malta desabafa, mais lasciva fica. Eu defendo a matemática. Aqui está melhor, o som desapareceu. O estudo da matemática, digo eu, é o melhor remédio para a cupidez. O procurador Paravant, que andava muito atacado por essa doença, dedicou-se à matemática, ocupando-se de momento da quadratura do círculo, o que lhe traz grande alívio. Mas a maior parte é demasiado estúpida ou preguiçosa para seguir o conselho, Deus lhes perdoe. Vesicular. Vejam, eu sei perfeitamente que a juventude aqui não tem muita dificuldade em se deixar corromper e depravar. "

Thomas Mann (1924) | A montanha mágica | Dom Quixote | 2009

fevereiro 16, 2017

fevereiro 13, 2017

©raquelsav | Montes | Fevereiro 2017


PLAY Chico Buarque | Construção

E, no entanto, a mão que fixo não é a que ergues.
@raquelsav
"A Sarah Payne, no dia em que nos disse que escrevêssemos sem fazer juízos de valor, lembrou-nos que nunca sabemos, e que nunca saberemos, o que é compreender inteiramente outra pessoa. Parece uma ideia simples, mas, à medida que vou ficando mais velha, vejo cada vez mais que ela precisava de dizer aquilo. Achamos, achamos sempre: O que há na outra pessoa que nos faz desprezá-la, que nos faz sentirmo-nos superiores? "

Elizabeth Strout | O meu nome é Lucy Barton| Alfaguara | 2016
"- (...) Queres dizer com isso dizer que ele é pedante? Achas que nós, alemães, somos todos pedantes- nós, alemães?
- Era do seu primo que estávamos a falar. Mas é verdade, vocês são um pouco burgueses. Amam mais a ordem do que a liberdade, toda a Europa sabe disso."

Thomas Mann (1924) | A montanha mágica | Dom Quixote | 2009
"- Então voltarás?
- Isso fica em aberto. E quando, é outra incógnita. Quanto a mim, sabes, amo a liberdade acima de todas as coisas, em particular a liberdade de escolher o meu domicílio. Tu não podes compreender o que significa estar obcecado pela independência. Talvez seja um traço da minha raça, não sei.
- E o teu marido em Daghestan concede-ta- a tua liberdade?
- Ela é-me dada pela doença. É a terceira vez que me encontro neste lugar. Desta vez, passei um ano aqui. É possível que volte um dia. Mas nessa altura tu já terás partido há muito tempo. "

Thomas Mann (1924) | A montanha mágica | Dom Quixote | 2009

fevereiro 10, 2017

amar-te tem a forma de exílio sem reino

 PLAY Nick Cave & The Bad Seeds | Push the sky away

fevereiro 05, 2017

palimpsesto [2.1]

Acto Primeiro (Versão 2.1)
[Os dois corpos celestes permanecem deitados em decúbito ventral. Nada se moveu. A Terra continua suspensa, mas a tocar o chão, prostrada, também, como os corpos. A esfera achatada que a compõe aparenta ter perdido volume, aparenta mais achatada que nunca, mantém o seu formato frouxamente. É visível, ao longe, a tabuleta improvisada que a identifica.
 <---- TERRA
Essa tabuleta é útil a quem passa. Os dois corpos celestes, adormecidos, balbuciam alternadamente, materializando os frutos de pesadelos, em tom crescente]

[quase inaudivelmente]:
@: Aos 64 anos, Bruna Lombardi, de biquíni, reúne elogios.
π: Trump proíbe entrada de muçulmanos nos EUA.

[entre-dentes e vagarosamente] 
@: Após separação de Angelina Jolie, Brad Pitt terá engravidado Kate Hudson.
π: Cartazes em manifestação em Chicago anotam: "Rise up".

[sussurrando] 
@: Salvem a Melania.
π: Rússia financia campanha de Le Pen.

[ciciando]
@: Casa Branca enganou-se a escrever Theresa May e esta ficou com nome de atriz porno.
π: Madeleine Albright admite registar-se como muçulmana.

[aumentando o volume e o ritmo mas ainda baixinho e vagaroso]
π: Hitler eleito democraticamente.
@: Melania (o)usada na capa da Vanity Fair mexicana.

π: [conservando o volume mas em ritmo crescente, denunciador de nervosismo, ainda deitado, mas por pouco tempo] Impressora 3D imprime pele humana, 100% funcional. 
Cientistas criam embrião híbrido metade porco, metade humano.
"1984" de Orwell esgota no Amazon.
Impressora 3D imprime pele humana, 100% funcional. 
Cientistas criam embrião híbrido metade porco, metade humano.
"1984" de Orwell esgota no Amazon.
repeat
repeat

@: [em volume idêntico mas tom conformado e suspirante] Valter Hugo Mãe não matou o Pai Natal mas disse umas verdades sobre os orifícios da tia de alguém.

[π levanta-se energicamente, em sobressalto e em volume e ritmo crescente, nervoso]

π: "Todas as criaturas que caminham sobre duas pernas são nossas inimigas"*
"Todos os hábitos do Homem são perversos"* 
"Nenhum animal usará roupas"* 
"E vou poder continuar a usar laçarotes na crina?"*
[gesticulando com um movimento de rotação da cabeça em torno do pescoço, 90º e -90º, 90º e -90ºe 90º e -90º]
Não, não, não! Não vamos simplificar os 7 mandamentos! 
 
@: [Ainda deitada, em tom suspirante, tapando os ouvidos com cada uma das mãos, respectivamente]
Vintage, Gourmet
Vintage, Gourmet
Vintage, Gourmet

π: [Abanando a cabeça lentamente, olhos fixos no chão, em tom de resignação]
"Quatro patas bom, duas pernas mau."*

π: [Ganhando fôlego, timidamente] Spiegelman retrata os nazis como gatos, os judeus como ratos, os polacos como porcos e os americanos como cães. Todos são terrivelmente humanos"**

@: [Tirando as mãos e dando bofetada a si própria] Rússia aprova "lei da bofetada".

π: [Em ritmo novamente crescente] Porque maior do que toda a vergonha da guerra é a vergonha de os homens já nada quererem saber dela, suportando que haja guerra, mas não que a tenha havido.***

@: [Abrindo os olhos lentamente]Pedro Chagas Freitas.

π:[Gritando] "(17) "Vem! Vou mostrar-te como será julgada a grande prostituta, que está sentada à beira de muitas águas. Os reis da terra prostituíram-se com ela. Os habitantes da terra ficaram bêbados com o vinho da sua prostituição" (20) O fim dos tempos já começou- Depois disto vi um Anjo descer o céu. (...) Vi então tronos, e os que se sentaram nos tronos receberam o poder de julgar."****  

@: [Acorda sobressaltada, senta-se ortogonalmente à superfície e grita] Um dia vai arder tudo. Tudo o que vês, irá arder um dia.

π: [No mesmo tom aflito] Escathon, Escathon...

@:[A chorar e soluçar] Um dia irá arder tudo!

[Os corpos celestes voltam a cair no chão, exaustos, como corpos cilíndricos e invertebrados. Após a queda segue-se um momento de silêncio interrompido pelo movimento enérgico de @, que se levanta a correr. π continua imóvel e deitado.]

@: A música. A música. A música. Espera, a música. O nosso produtor de som abandonou-nos. Espera.

[@ mexe no telemóvel e faz soar as colunas. Coloca um gancho no cachaço de π e no seu. Enquanto ouvem a música PLAY
Kraftwerk | News, os dois corpos celestes são elevados de mão dada, ficam suspensos. Todo o cenário escurece. Há leves luzes que imitam estrelas. Há espelhos que multiplicam essas luzes de estrelas. E outros espelhos que multiplicam as imagens dos espelhos. Há difusão de imagens. Dificuldade em identificar objectos. Os nossos corpos celestes são luzes incapazes de gerar imagens nos espelhos. Observam que a Terra também não reproduz imagem no jogo de espelhos. Olham-na com tristeza. Choram e chove. Há um espelho no chão. Confundem-se os pingos da chuva, reproduzidos pelos espelhos em movimentos ascendentes e descendentes, como se desaguassem numa nascente. Princípio e fim unidos. Os corpos continuam a subir muito lentamente e só param quando alcançam as tabuletas que os identificam
 <---- π       <---- @   
Continuam a olhar para a Terra]

@: Um dia vai arder tudo.
π: Como eu gostava que concordássemos em discordar! 
@: Parecem formigas.
π: As formigas não destroem os seus próprios carreiros.

[Observam novamente a Terra, em silêncio]

π: [retoma conversa]Os sobreviventes do "11 de Setembro", os que estavam dentro do edifício não se aperceberam do que se passava, ao contrário do resto do mundo.
@: "Há que sair da ilha para ver a ilha".
π:[vira-se surpreendido] Saramago?
@: Hoje já não seria assim. Nas redes sociais apareceria, sordidamente, cada pormenor, na perspectiva de cada vítima.
π: Houvesse rede.

π: [em tom profundo-cavernoso]"Vi então tronos, e os que se sentaram nos tronos receberam o poder de julgar."****
@: Um dia será assim.
π: Assim, como?
@: Uma espécie de purgatório digital.
π: E não precisaremos de ninguém para nos julgar - apunhalados pela nossa consciência, qual Samurai.
@: Olha o talhante.
π: Que fará a entrar no W.C. público?
@: Não quero imaginar. Mas estou contente por ser vegetariana.
π: Deves pensar que o Miso é mais higiénico.
@: [dirigindo olhar sedutor] Tu sabes, em questões de comida, prezo a higiene acima de tudo.
π: Olha o fanático do Benfica a contornar o Café Central, na sua lambreta icónica.
@: E o espalhador de folhas? Haverá profissão mais inútil?
π: Conheço uma.
@: Eu também. A tua.
π: Nunca serei capaz de te dar poesia, pois não?
@: Sabes o que penso da poesia. E não faço questão de mudar de opinião.
π: Sempre imaginei que o amor nos salvasse.
@: O amor? Achas? Achas mesmo? Inocência! O amor é a forma de egoísmo mais pura que conheço. Preferimos amar a ser amados. Somos felizes quando nos sabemos capazes de amar. E não é para dar a mão a quem amamos, mas para conhecermos os limites da nossa. 
π: Então por que sobrevivemos?
@: Porque tudo o que nos garante a sobrevivência dá-nos prazer: comer e foder.
π: E sobreviveremos?
@: Não sei, passamos a vida a contabilizar calorias e doenças venéreas.
π: Talvez sinta algum medo.
@: O medo salva-nos.
π: E tolda-nos. Inibe-nos. Não nos deixa sermos o que gostaríamos de ser.
@:  Na maioria das vezes, é uma bênção. Se cada ser humano fosse na medida em que gostaria de ser, verdadeiramente, talvez já não existisse mundo.
π: A maldição do homem é o que o distingue dos outros animais.
@: E ainda dizem que "nada é mais bonito que a inteligência"*****.
π: Crítica da razão Pura?
@: Não! Lidl- a campanha do creme Cien Aqua - "para mulheres mais do que bonitas".
π: O conhecimento é, cada vez mais, um lugar comum.
@: O que é verdadeiro acaba em clichet porque funciona.
π: Até não haver matéria de clichet que suporte os milhões. Irónica democracia. Não nos resta mais nada em que acreditar?
@: Eu acredito no Head & Shoulders e no Agroal, ajudam-me na psoríase.
π: Desculpa se te acordei, há pouco.
@: Eu nunca acordo- durmo desde que nasci.
π: E quando pretendes acordar?
@: Hoje não, com toda a certeza. Hoje é mau dia para acordar.
π: Por teres medo?
@: Claro. Medo, medo, medo é tudo o que tenho.
π: Não acredito. Além disso, o teu medo não é o meu medo.
@: Não basta haver nomes a mais ainda queres que sejam ambíguos?
π: Os conceitos nunca serão a mais. Aumentam os conceitos, aumenta a liberdade. 
@: E, no entanto, criá-los é dar oportunidade de nomear a estupidez, a inutilidade, a futilidade.
π: Nós somos diferentes. Não falamos a mesma língua.
@: Mas compreendemo-nos.
π: Às vezes tenho as minhas dúvidas.
@: Experimenta. 

[π faz um pequeno compasso de espera e ataca]
π: Jogos de linguagem.
@: "Cada cabeça sua sentença".
π: Cinética filosófica.
@: "Onde vai um português vão dois ou três".
π: Imperativo categórico.
@: "Quem tem cu tem medo" 
π: Imanentização escatológica.
@: "A esperança é a última a morrer".

[π, ainda suspenso e cintilante, olha para a Terra. A Terra vai-se enchendo de luz. Aparenta mais volume mas pode ser uma mera ilusão óptica. Os dois corpos suspensos bamboleiam em direcção à Terra, imitando o movimento de voo. Espetam as suas tabuletas na Terra, pela seguinte ordem: 
  <---- TERRA     <---- π     <---- @   
Nenhuma das tabuletas gera imagem nos espelhos. Os corpos e a Terra também não. Deitam-se sobre ela em decúbito ventral, acompanhando a sua forma esférica-informe, reservando aos braços a posição lassa que lhes é habitual.]  

π: Achas que ainda há esperança?
@: Para nós? Que importa? Somos personagens de ficção.
π: [ri desalmadamente] Nós? ahahahah? O quê?
@: [séria] Sim. Há quem queira fazer de nós super-heróis da BD.
π: Tipo Dog Mendonça e Pizzaboy?
@: Eu disse-te que não estávamos sozinhos.
π: Assusta-te?
@: Sermos fruto da imaginação ou heróis em cuecas?
π: Não estarmos sozinhos.
@: Se formos fruto da imaginação, acabamos onde começamos e começamos onde acabamos. Ou não achaste estranho o espelho não reproduzir a tua imagem?
π: É por isso que este Acto continua a ser o Primeiro?
@: Não. Isso é um capricho matemático! Tal como o Nautilus Marinho e os coelhos, obedecemos à sucessão de Fibonacci. 

[Os dois corpos viram-se lentamente, sincronamente, posicionam-se em decúbito dorsal. Observam as estrelas e as imagens das estrelas. E as imagens das imagens. Até que adormecem, balbuciando]
  
π: Terra... Espelho... Ausência de imagem... Fruto da imaginação?... Terra?
 
[Ao longe ouve-se  PLAY Nick Cave& The Bad Seeds | Magneto
E o mistério não ficou desfeito: terá o produtor de som voltado a tempo do fim do segundo Acto Primeiro?]
<--- vasleuqaR <---
______
* George Orwell | A quinta dos animais | Antígona | 2013
** Revisão crítica de Maus de Art Spiegelman in The Times
***Karl Kraus | Os últimos dias da humanidade | Antígona | 2003
**** Bíblia Sagrada
***** Campanha publicitária do Lidl

NOTA: Neste texto, qualquer semelhança com factos verídicos não é pura coincidência.

janeiro 29, 2017

©Thomas Dworzak | GEORGIA | Sokhumi Monkey Laboratory | 2013

PLAY Placebo | Space Monkey
were sewn together  
she’s born to mesmerize  
beside I stride her  
I die inside her

janeiro 27, 2017

©Elliott_Erwitt | ENGLAND. Brighton | 1970

PLAY Glenn Branca | Spiritual Anarchy

"Lívio (off): O meu pai era um tipo melancólico.
Caçava moscas e lia Camilo.
Morreu.
A minha mãe olhava-me com desgosto.
Sem razão. Parece-me. Não sei.
Digamos que hesito entre o mundo grave e a gravidade do mundo.
Não podes perceber.
Talvez enlouqueça o suficiente para gritar ai ai.
Um dia destes vou-me embora.
Paris, Roma, Milano, London Town, Florença, a bela, Cesário Verde, São Pettersburgo - o Mundo.
Afinal os crimes são as coisas que se repetem, etc."

in quem espera por sapatos de defunto morre descalço
João César Monteiro (1969) | Obra Escrita 1 | Letra Livre | 2014

Chet Baker - Live in '64 & '79 - Jazz Icons


janeiro 25, 2017

Lisa Dwan in "Not I" by Samuel Beckett. (Photo by Sky Arts Justin Downing)

PLAY Nick Cave and the Bad Seeds | Jesus Alone

"Meu pai envergonha-me: ousa, numa reunião em que precisamente se encontravam os Pitoëff, declamar, de mão no bolso do colete: Ser ou não ser. Não sei onde me meter.
(...)
Não me deito com homens. Fascinado, estou-o, mas apenas por mim próprio. Época de narcisismo que vai prolongar-se por muito tempo.

Descalço os sapatos e pedalo de pés nus, magoados, feliz.
(...) 
Descoberta dos banhos de água a escaldar. A cabeça anda à roda, a pele fica em carne viva, sofre-se. Limpo o vapor no espelho e masturbo-me.
(...)
Muito mais tarde voltaria a encontrar P. em Paris. Tinha acabado de casar com uma alemã, gorda, desajeitada. Abrira um consultório dentário.‹‹Estabelecia-se››.
(...)
No regresso de Breton, sou submetido ao exame do pequeno surrealista. ‹‹Qual preferes? Baudelaire ou Isidore Ducasse, conde de Lautréamont? - Baudelaire.›› Agravo o meu caso ao citar, entre os poetas contemporâneos que prefiro, Éluard e Tzara (esquecendo Breton). ‹‹Tzara! Quem aprecia os versos de um polícia pode bem ser polícia também››. Reprovado.
(...)
Paul Valéry num camarote, na companhia de uma dama elegantíssima, apupado pelos surrealistas. Entoam em coro: ‹‹Merda para Valéry››.
(...)
Irene masoquista, exibicionista. É sempre culpada, compraz-se na sua culpabilidade. Não me esconde que tem tido amantes desde que vivemos juntos. Diz-me os seus nomes (que de resto adivinhava), conta o que cada um queria dela, o que ela queria deles. Discorre com vagar sobre o seu ‹‹vício››: masturbar-se em frente dos homens, olhando-os fixamente. Mas fala-me também da ‹‹besta›› que a lançou por terra e depois possuiu. Não seria eu que faria o mesmo. As narrativas de Irene excitam-me e irritam-me ao mesmo tempo. Tão depressa murmuro: ‹‹Conta, vamos, conta mais››, como lhe faço cenas de ciúme idiotas.
(...)
É-me difícil dizer como se toldou e acabou o nosso amor, tanto quanto evocar o modo como nasceu e germinou.
(...)
Hugette, à chuva, sempre descalça. A minha boca contra os seus pés molhados; não os retira, mas com um olhar frio, sério, inquisidor, fixa-me.
(...)
Huguette decide sequestrar-me. Habito a mansarda do sexto andar que ela ocupa em casa dos pais, pequenos logistas de bijuterias na rue des Plantes. Toma conta de mim, traz-me de beber, comer, tabaco, não me falta nada, com uma condição: não devo sair. Peço a Huguette o que jamais teria ousado, nem sequer pensar, pedir a Irene: que mije em cima de mim. Aceito. Permaneço seu prisioneiro voluntário quase três semanas.
(...)
Sei o que vai fazer: levantar-se, aproximar-se, beijar-me, passar-me a sífilis. Acordo antes que se debruce sobre mim.

Janeiro de 1933. Meu pai - uma dívida de jogo, o medo do futuro sem saída? - envenena-se. Nessa noite, dormia no meu quarto, mesmo ao lado do seu, e não me apercebi de nada. Detestava o meu pai, portanto fui eu que o matei.
(...)
Terceira classe num navio brasileiro. Vai para Hamburgo, com escala no Havre. 
(...)
Pronuncio inadvertidamente uma palavra em francês, o criado do refeitório aproxima-se. ‹‹Se soubesse que falava francês, tinha-lhe arranjado lugar na mesa dos alemães.››. Raça superior, menu superior.
(...)
16 de Maio de 1941. Campo de concentração de Argèles. Calor sufocante. Em volta de uma fossa onde se amontam restos de legumes podres, seres siminus, descarnados, desdentados, empurram-se, quase lutam entre si.
(...)
1945. Paris. Tomamos conhecimento da existência dos campos de extermínio, dos fornos crematórios. (...) A partida do seu comboio para o campo. A gorda enfermeira alemã que na estação de Estrasburgo passava uma toalha pelos lábios das deportadas para lhes apagar a pintura, a vergonha.
(...)
Encontramos Artaud enfranquecido, aterrorizado. (...) No comboio de regresso, Marthe chora; juramos ambos tirar Artaud de Rodez. Conseguimo-lo, mediante uma caução de mais de um milhão de francos. Leilão conduzido por Pierre Brasseur. Doadores: Braque, Picasso, Giacometti, Sartre, Simone de Beauvoir... Sessão em benefício de Antonin Artaud. (...) Artaud, a cara percorrida por tiques, devastada, cheia de rugas, a boca desdentada, mas onde se escapava de súbito uma voz retumbante, como um uivo. Nós afogados nas suas palavras.
(...)
O suicídio de Antonin Artaud com cloral (a arma maciça).
(...) 
Também volto a ver Agathe: não mudou, continua calmamente à espera da morte. Mas agora tem uma filha, uma menina parecida com ela."

Arthur Adamov (1908 - 1969) | O homem e a Criança | Fenda | 1995
Art Spiegelman | Maus | Bertrand Editora | 2014



janeiro 19, 2017

janeiro 18, 2017

©Pedro_Luis_Raota | Argentina
PLAY Portishead | Roads

III
sente-se a lentidão, o peso,
minarem cada gesto; e antes
do gesto, a ideia de o fazer;
dançam agora dois a dois,
reconstituem a unidade
cindida ainda há pouco; os pares 
mortais; a vocação
de transformar o tempo em rostos;
somam-se duas mortes
e obtém-se uma criança; ela, sim:
resistirá, crecendo,
ao desgaste do dia,
procurará na outra noite
o corpo que define o seu;
protege-a a espuma, a máscara,
até de madrugada; e então,

IV
das duas uma: reproduz-se
também; ou extingue-se em si
o fluxo da dança;
não é a conjunção dos astros
que comanda tudo,
mas a cor do céu; indecifrável;
embora alguns estudos digam
que há mutações
um resíduo verde persistente;
e outros, um halo de metal,
quase cinzento, em que repousam;
ou donde se desprendem;
certas cores intermédias;
de qualquer modo, a noite
dificulta os tons, subverte-os
sem se dar por isso;

Carlos de Oliveira (1971)  | Entre duas memórias in Trabalho Poético | Assírio&Alvim | 2003

janeiro 12, 2017

   "Reduzo as medidas a uma unidade diferente: o meu próprio passo; e mecanizo-o, para encontrar equivalências na escala métrica (sem muitos erros). 
   Planifica estes elementos: preponderância de ângulos rectos na entrada e saída de cada divisão; inflexões menos sensíveis (à esquerda e à direita) no resto dos percursos: grau oscilante, segundo o sítio dos móveis (quase todos cadeiras). Certos ângulos, pode arredondá-los, tornando a marcha menos automática (melhor, suavizando-lhe o automatismo)."

Carlos de Oliveira (1978) Finisterra | 1979 | Sá da Costa

janeiro 10, 2017

 @Toni Schneiders | Germany born 1920 – 2006 |  Self portrait | 1952

PLAY The Cure | Killing an Arab

"Ficar aqui ou partir, vinha a dar na mesma. Ao fim de alguns instantes, voltei para a praia e comecei a andar.
(...)
Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha, e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo se principiou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. "

Albert Camus (1949) | O Estrangeiro | Bertrand | 2006

janeiro 07, 2017

palimpsesto [2.1]

                                 Acto Primeiro (Versão 2.1)

[dois corpos celestes em decúbito dorsal, naturalmente arqueados por esfera que simula o planeta Terra, suspensa dois metros acima do solo; braços afastados do tronco, naturalmente prostrados; ecoa, ao longe, a música:
                                                  Popol Vuh | Aguirre PLAY]

π: [em voz gutural-lassa] 
  No princípio era o verbo*...

@: [com fastio]
   Sempre me (en)salsanhei entre enigmas de ovo e de galinha.

π: [mantendo o mesmo tom cavernoso]
 (No início) não existia nem o existente nem o não-existente; não existia o espaço vazio nem o céu acima dele. O que havia então?**

@: Gente não é certamente e a chuva não bate assim. Fui ver, era o ovário.***

π:  És incapaz, não és?

@: Perfeitamente!

π: Tu não tens noção. Não levas nada a sério!

@: Queres alguma coisa mais séria do que o ovário? Do ovário, nasceu o mundo. O universo é um Grande Ovário...

[entredentes, falando baixinho para não ser ouvida:]

    ...ainda por cima de uma puta que não se cansa de parir!

π: Disseste alguma coisa?

@: Não, não, esquece.

π: Mas a propósito, foi o ovo.

@: A sério?

π: Sim, houve ovos muito antes de haver galinhas, ovíparos que não eram aves.
    Queres que te faça um esquema?

@: Agora não me apetece, eu depois vou ao Google.
      Mas tu és um poço.

π: Tens razão, afundo-me com facilidade.

@: Devia levar-te mais a sério, não era?

π: A mim nem tanto, talvez a ti própria.

@: Xiuuu...

π: O que foi?

@: [sussurrando:]
  Cala-te, acho que não estamos sozinhos.

π: Como assim?

@: [tapando, a custo, cada boca com cada mão]
   Xiuuu....

[a esfera desce e os dois corpos resvalam para o solo frouxos, numa textura de lava, mantendo o decúbito supino.]

@: Esquece. Acho que estava enganada. Talvez fosse o vento.

π:  Ou Deus, ou o Grande Ovário.
    
 [π inspira profundamente, expira e aspira; senta-se, flectindo o corpo numa espécie de vénia desajeitada, e volta a deitar-se; o braço direito acompanha todo o movimento com movimentos de rotação sobre si próprio, como quem transforma uma meada de lã em novelo, mas em slow-motion]

π: Como foi a tua entrada no novo ano?

@: A mesma rotina de sempre.

π: Iniciar o ano a comer restos do ano anterior, com o estômago meio cheio, letargia total e cabeça a latejar por intoxicação de luzes, vozes e ruídos de foguetes?

@: Não. A recolher urina. Tenho uma colecção de mais de vinte exemplares das minhas primeiras urinas do ano.

π: Bem pensado, se recolhesses unhas dava-te mais trabalho.

@: Desde quando discutimos excedentes orgânicos?

π: É bom discuti-los. Fazem-nos lembrar quão igualmente limitados somos.

@: Gosto mais de ti a cagar erudição.

π: Sabes o que distingue Falar de Falhar?

@: O "H"?

π: Sim, uma simples letra: um H, de preferência mudo.

[e fez-se silêncio...  após 5 minutos de silêncio total:]

@: Estás a incomodar-me.

[π: encolhe os ombros, em silêncio, ainda]

@: A razão é mesmo uma puta que se vende por meia tuta, não é?

π: É por isso que gosto de poesia.

@: Eu detesto poesia. A tua poesia.

π: Eu sei.

@: Recita-me um poema.

[π sobe novamente para a esfera, em posição de Principezinho Saint Exusperiano, e declama profundamente]:

π:
Pintar o mundo é escrever o orto do elemento,
é fabricar o pigmento primário:
da textura da terra;
do aroma da água;
da aurora do fogo;
na distância do ar.

Pintar o mundo é erguer a essência da mão
ao fulgor do éter,
é pintar de branco e dar cor,
é lançar a vogal à terra e amanhá-la.

Pintar o mundo é beber do silêncio,
com que se desenha o poema e escreve a pintura.

Pintar o mundo é abrir a mão à paisagem
e confiar que tudo, nela, se transfigura.


@: Muito mau, mesmo!

π: Concordo, mas estavas a pedi-las. Foi por crer.

@: Agora confundes o verbo querer com crer?

π: Não!

[π escorrega novamente e junta-se a @]

π: Porquê a arroba?

@: Foi o símbolo mais próximo que encontrei para Rosapeixe.

π: Ninguém se chama assim.

@: Pois não, sou um mito da criação.
   E o teu pi?

π: De urso, então?
[os dois corpos celestes rebolam-se muito lentamente, síncronos e em uníssono, e ficam em decúbito ventral; por fim, adormecem no chão, sem ressonar]                                                <--- vasleuqaR <---
___________________________________

*Bíblia Sagrada, Evangelho Segundo S. João 1, 1

** Rgveda [10.129] Nãsadîya-Sukta "Hino da Criação" in Religiões, Edições Paulinas, 2006


***  PLAY Carlos Carrapiço - O poeta