abril 29, 2015

Dia Mundial da Dança


Svetlana Zakharova

PLAY Svetlana Zakharova A morte do cisne

Antropofagias- Texto 3
Afinal a ideia é sempre a mesma o bailarino a pôr o pé
no sítio uma coisa muito forte
na cabeça no coração nos intestinos no nosso próprio pé
pode imaginar-se a ventania quer dizer
«o que acontece ao ar» é a dança
pois vejam o que está a fazer o bailarino que desata por aí fora
(por «aí dentro» seria melhor) ele varre o espaço
se me permitem varre-o com muita evidência
somos obrigados a «ver isso»
que faz o pé forte no sítio forte o pé leve no sítio leve
o sítio rítmico no pé rítmico?
e digo assim porque se trata do princípio «de cima para baixo
de baixo para cima»
que faz? que fazem? oh apenas um pouco de geometria
em termos de tempo um pouco de velocidade
em termos de espaço dentro de tempo
«vamos lá encher o tempo com rapidez de espaço»
pensam os pés dele quando o ar está pronto
o «problema» do bailarino é coisa que não interessa por aí além
mas são chegados os tempos de agonia
estamos «exaltados» com este pensamento de morte
é preciso pensar no «ritmo» é uma das nossas congeminações exaltadas
na realidade algo se transformou desde que ele começou a dançar
sem qualquer auxílio excepto
não haver ainda nomes para «isso» e haver os ingredientes
do espectáculo i. e. a qualidade «forte» do sítio
e pés
esperem pela abertura de negociações entre «não» e «sim»
hão-de ver como coisas dessas se passam
não vai ser fácil os recursos de designações as acomodações várias
já se não encontram às ordens de vossências
comecem a aperceber-se da «energia» como «instrumento»
de criar «situações cheias de novidade»
vai haver muito nevoeiro nessas cabeças
e ainda «coração caiu-lhe aos pés» o banal
a contas com o inesperado talvez então se tenha a ideia de murmurar
«os pés subiram-lhe ao coração»
pois vão dizendo que exagero logo se verá
também Jorge Luís Borges escreveu esta coisa um nadinha espantosa
«a lua da qual tinha caído um leão» nunca se pode saber
maçãs caem Newton cai na armadilha
quedas não faltam umas por causa das outras
os impérios caem etc. o assunto do bailarino cai
mas sempre em cima da cabeça e estamos para ver
Cristo a andar sobre as águas é ainda o caso do bailarino
«o estilo»
claro que «isto» apavora
a dança faz parte do medo se assim me posso exprimir

herberto helder
Ofício Cantante, Assírio&Alvim, 2009

abril 28, 2015

"Ele espera que reapareçam as árvores, o passeio molhado, os carros com o tejadilho cheio de folhas, o som do violoncelo, para recomeçar, ganhando a cada passo a força para o passo seguinte, dobrado para o chão, atirado para a frente, em passadas trôpegas e rápidas, que acabam numa breve hesitação. É preciso reconhecer um destino em cada passo, reconhecer que o destino de cada passo é o passo seguinte."

Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, Relógio d'Água, 2009


©Ferdinando Scianna. ITALY. Sicily. Province of Messina. Capizzi. 1982
INFÂNCIA
I
Terra
sem uma gota 
de céu.


II
Tão pequenas
a infância, a terra.
Com tão pouco
mistério.

Chamo às estrelas
rosas.

E a terra, a infância
crescem
no seu jardim 
aéreo.


III
Transmutação
do sol em oiro.

Cai em gotas,
das folhas,
a manhã deslumbrada.


IV
Chamo
a cada ramo
de árvore
uma asa.

E as árvores voam.

Mas tornam-se mais fundas
as raízes da casa,
mais densa
a terra sobre a infância.

É o outro lado
da magia.


E a nuvem
no céu há tantas horas,
água suspensa
porque eu quis,
desmorona-se e cai.

Caem com ela
as árvores voadoras.


VI
Céu
sem uma gota
de terra.


Carlos de Oliveira
Trabalho Poético, 2003, Assírio& Alvim

abril 27, 2015


4.
Desço 
para o centro da terra,
atravessando o sono inicial
dos fetos líquidos dos lagos.

E passando, levemente acordo
os profundíssimos olhos verdes, vagos,
das águas esperando
o calor filial dos peixes.

No dorso destes espírito dorido
que flutua pelas eternas penumbras,
cavalgo devassando as fontes da vida
donde goteja um leite amargo e turvo.

5
(E descendo
é como se descesse dentro de mim
nas cobardias-detritos das águas,
nos heroísmos-resíduos das fráguas.

E seja por que for
no suor anónimo das mágoas):
Carlos de Oliveira
Trabalho Poético, 2003, Assírio& Alvim


VIANDANTE
Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.

Carlos de Oliveira
Trabalho Poético, 2003, Assírio & Alvim

abril 26, 2015

©Stuart Franklin. INDIA. Near Cochin, Kerala. Preparing coconut oil. 1998

PLAY Madrugada Strange Colour Blue

"tenho sempre os dedos frios, enrugados, como se me tivesse fugido o sangue e eu fosse um saco quase vazio, nem sei se é o polegar que sente o indicador, se o indicador que sente o polegar, tudo se transtorna, até as palavras, digo-as e elas estranham a minha boca, talvez seja melhor escrevê-las. Letra a letra, silenciá-las, para que assim desapareçam, Mãe, que está a tentar escrever, no tampo da mesa? que nome é esse?
um nome é uma dor que nos escolhe. Ultimamente, porém é sempre a mesma dor, o mesmo nome, perseguido pela luz, devorado pela luz, 
Não se fixa esta cegueira,
não se fixa a tua cabeça, mãe."

"a luz do rio atravessou as vidraças e cintila na parede, o gato saltou pela janela e aconchegou-se no colo da minha mãe que lhe começa a fazer festas, a mão desenha o gato com o vagar da ternura, e os lábios movem-se: bichaninho meu, bichaninho querido, ou: mitzi mitzi: murmuram, rezam: diria a freira se aqui estivesse, mas eu sei que não rezam, nunca rezaram, embora no abandono todas as palavras se assemelhem a uma oração e se dirijam a mortos ou deuses"

Rui Nunes
Os olhos de Himmler, Relógio D'Água

abril 25, 2015

Cantos de trabalho - 1972 - Cava da manta


Cantar 
é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras
fique embora mais breve a nossa vida.

Carlos de Oliveira
Trabalho Poético, 2003, Assírio & Alvim
NÃO TE ESCREVAS
entre os mundos,

ergue-te contra
a variedade dos sentidos,

confia no rasto das lágrimas
e aprende a viver.

(23/24 -Abril- 1966)
Paul Celan, A morte é uma flor, Edições Cotovia, 1998

Canção 
(Nahuas)

Não sei se estiveste ausente.
Deito-me contigo, e levanto-me contigo.
Durante os sonhos estás sempre ao meu lado.
Se tremem as arrecadas nas minhas orelhas,
és tu que te moves no meu coração.

Poemas Ameríndios (Poemas mudados para português por Herberto Helder)
1997, Assírio&Alvim
©Thomas Hoepker. USA. Utah. 1995. Antelope Canyon near Page

Canção 
(Tlinkites)

Se eu pudesse morrer como quisesse,
era fácil morrer com um mulher-loba.
Era doce.

Poemas Ameríndios (Poemas mudados para português por Herberto Helder)
1997, Assírio&Alvim


abril 20, 2015

PLAY Maria João e Mário Laginha Lobos, raposas e coites

Na noite, envelhecemos com vergonha.
©Daniel Blaufuks - Mão com espelho, da série "O ofício de viver", 2010
PLAY dEUS Keep you close

"(...) Mas ele ama uma ilha, avista-a
cada noite ao adormecer, sonha com ela
muito, seus fatigados membros cedem
uma dor forte quando apaga os olhos.
Um dia partirá da velha aldeia
e num estranho barco, sem pensar,
navegará. Sem emoção a casa
será abandonada e depois os cantos húmidos
com a flor do limo, a vinha murcha;
os livros, amarelos. Ninguém nunca
saberá quando morreu, a fechadura
ir-se-á cobrindo de um longínquo pó."

Francisco Brines (Trad. José Bento)
Antologia da poesia espanhola Contemporânia, Assírio & Alvim, 1986

abril 19, 2015


A   P   A   R   Ê  N   C   I    A

rima com

D   E   S   I   S   T   Ê  N   C   I    A

foto © Angela Bacon Kidwell Somewhere down the roads                            PLAY Bat for Lashes Trophy

abril 18, 2015

PLAY Encontro entre Steiner e António Lobo Antunes

"L.A.: Sabe, é talvez demasiado íntimo falar disto, mas o suicídio é uma coisa que está sempre em mim desde tenra idade. Tive uma série de doenças gravísssimas, em criança, mas sempre houve uma grande tendência auto-destrutiva em mim. Será que eu o podia ter impedido, será que eu o podia ter adivinhado? É o desejo de escrever. A sensação, muito estranha, que não posso explicar de forma racional: eu tenho de escrever, deram-me isto e devo transmiti-lo, não me pertence. E isto sempre me salvou da morte e das ideais de auto-destruição que são constantes em mim, sobretudo entre dois livros, como agora, em que tudo me parece desprovido de sentido.

S.: Hegel, que podia ser muito mau, como todos os grandes pensadores, tinha a seguinte piada: "Por que é que o judeu nunca se mata? Porque quer ler o jornal do dia seguinte." Isto é muito profundo. Já passei por momentos, como todo o ser humano, de terrível depressão: o sentido da mediocridade, a grande decepção, queria ter sido como você, escritor e não um crítico, não um professor. Vivi momentos muito negros, mas, de facto, sempre quis ler o jornal do dia. Sou um apaixonado pela realidade, pelo movimento da realidade, pelo élan, como diria Bergson, o élan da duração. Ora, matar-me significaria não mais ler o jornal. E isso é muito..."

abril 15, 2015

©Angela Bacon-Kidwell | Fade to Black 

                     
                  3
Fica dentro de mim, como se fosse
eterno o movimento do teu corpo,
e na carne rasgada ainda pudesse
a noite escura iluminar-te o rosto.
No teu suor é que adivinho rastro
das palavras de amor que não disseste,
e no teu dorso nu escrevo o verso
em pura solidão acontecido.
Transformo-me nas coisas que tocaste,
crescem-me seios com que te alimente
o coração demente e mal fingido;
depois serei a forma que deixaste
gravada a lume com sabor a cio
na carícia de um gesto fugidio.

António Franco Alexandre,
Duende, Assírio & Alvim, 2002

abril 11, 2015

©Angela Bacon-Kidwell | Yangzhou Chimera
SEM BRILHO, LEVADO
todo para dentro, o olhar:

A sombra
dupla que um dia fui
divide-se
em duas, erguem-se
as alas da noite - agora vai,
palavra que estiveste tempo de mais no mundo, rola,
sai -

Com os olhos de uma criança, com
os olhos da sua mãe
encontro eu a minha segunda,
a minha primeira
janela.

Paul Celan, A morte é uma flor, Edições Cotovia, 1998

abril 10, 2015


©Angela Bacon-Kidwell | Traveling Dream


QUANDO A DISTANTE
prata, rondada
também pelo voo dos homens, sem
chegar entrava,
redonda,
e nos olhava com olhos de olhar:

então
a palavra dor era uma taça de onde
subia ao nosso encontro a palavra
alegria - subia,
subia e passava por nós, subia
até nós dois, sob
o telhado,
até à cama onde a noite, 
mestra
dos nossos corpos, esperava silenciosa, o seu
fundo, negro como o coração, cheio
da manhã.

Paul Celan, A morte é uma flor, Edições Cotovia, 1998

abril 09, 2015

©Hans Bellmer

CONVERSAS COM CASCAS DE ÁRVORE. TU,
tira a casca, anda,
tira-me, feito casca, da minha palavra.

É tarde já, mas nós
queremos estar nus e à beira
da navalha.

Paul Celan, A morte é uma flor, Edições Cotovia, 1998

O   C   U   P   A   Ç   Ã   O

rima com

L   I   B   E   R   T   A   Ç   Ã   O

foto ©Henri Cartier-Bresson. MEXICO. Mexico City. 1934                               PLAY She Wants Revenge Red Flag

abril 07, 2015

©Josef Koudelka. CZECHOSLOVAKIA. Prague. 1966. Theatre Divadlo Za Branou (Beyond the Gate).
"The Three Sisters", a play written by CHEKHOV and directed by Otomar KREJCA
PLAY Goldfrapp Lovely Head

abril 06, 2015

"O Azar
     O senhor Henri disse: as maldições são cálculos matemáticos que acertam no futuro e esperam por nós.
     Entretanto, o senhor Henri baixou-se para apertar um sapato e, nesse momento, uma enorme pedra passou por cima da sua cabeça e caiu violentamente no chão.
     ... a minha sorte foi mais uma vez pontual - disse o senhor Henri, depois de se levantar.
     ... ou seja: a minha sorte está sempre sincronizada com o meu azar.
     ... se uma pedra me batesse na cabeça seria azar - disse o senhor Henri.     ... mas felizmente veio a sorte de me ter baixado no momento em que a pedra me queria abrir a cabeça.     ... as pessoas que têm azar não deixam de ter sorte.
     ... o que têm é sorte nos momentos errados - disse.     ... é como se no meio do deserto encontrassem um saco cheio de areia... - disse o senhor Henri." 
Gonçalo M. Tavares, O Senhor Henri, Caminho, 2003
poesia escreve-se com letra grande ou pequena?
CONTRA!

Hei-de construir-vos uma cidade de farrapos, eu!
Construir-vos-ei sem planta nem cimento
Um edifício que não destruireis,
E que uma espécie de evidência espumante
Há-de sustentar e inchar, há-de gritar-vos à cara,
E à cara gelada de todos os vossos Pártenons, as vossas artes árabes, e os vossos Mings.

Com fumo, com diluição de nevoeiro
E com o som de pele de tambor
Hei-de edificar-vos fortalezas esmagadoras e soberbas,
Fortalezas exclusivamente feitas de redemoinhos e solavancos,
Contra as quais a vossa ordem multimilenária e a vossa geometria
Ruirão em palermices e sofismas e pó de areia sem razão.

Dlão! Dlão! Dlão! Sobre todos vós, dobre de finados aos vivos!
Sim, creio em Deus! Está claro que ele não sabe de nada!
Fé, solas inúteis para quem não progride.
Ó mundo, mundo estrangulado, ventre frio!
Nem sequer símbolo, mas ausência, eu contra, eu contra,
Eu contra e atulho-te de cães esfaimados.
Às toneladas, estão-me a ouvir, às toneladas, hei-de arrancar-vos tudo aquilo que recusaram em gramas.

O veneno da serpente é o seu fiel companheiro,
É fiel e ela dá-lhe o justo valor.
Irmãos, meus irmãos malditos, segui-me com confiança.
Os dentes do lobo não se retraem do lobo
É a carne de carneiro que retrai.

No escuro veremos claro, meus irmãos.
No labirinto acharemos a via recta.
Carcaça, que fazes aqui, marafona, mijona, penico partido?
Como hás-de sentir, moitão rangente, os cordames tensos de quatro mundo!
Como te hei-de esquartejar!

Henri Michaux
Antologia, Relógio D'Água, 1999
habitámos um tempo infantil
habitamos, tão infantis, o tempo

[#3] Ainda o paradoxo

Fita de Möbius- (animação sobre desenho de M. C. Escher)
Contornamos a topologia das palavras difíceis sem que delas o interior e o exterior encontremos. É sempre à superfície, pela rama, como crentes que rezam de cor, inábeis de joelhos, perante o poema. E redimimo-nos do erro, escrevendo a palavra 70x7 vezes, mas tão perfeitamente incapazes de lê-la.

[#2] Ainda o paradoxo

[Depois de longo caminho percorrido a PALAVRA descobre o lugar. Mas vamos encontrá-la estremunhada num cenário em branco, em monólogo, uma vez mais.]

PALAVRA: Encontrei-me por te encontrar. Logo agora, que me perdi.