dezembro 31, 2016


"cada recomeço é um nó. Natacha envelheceu, Pedro envelheceu. É o fim do livro. Prolongá-lo até à morte de Pedro e Natacha, até ao casamento dos seus filhos, depois escrever uma nova guerra. E de súbito a cabeça de Tolstoi, desamparada, bate na folha de papel, e o aparo da caneta espirra, ou o tinteiro vira-se e rios de azul enraízam o desamparo dessa cabeça, encobrem letras, palavras, matam-nas, partem-nas. E a história acaba.
Acaba?

não sei acabar: sei prolongar o massacre.
O meu.
Repito. Repito?
porque qualquer repetição inicia
um pequeno e fascinante desvio."

Rui Nunes (2014)Nocturno Europeu | Relógio D'Água

dezembro 30, 2016

©raquelsav | Tapada de Mafra | Dezembro 2016
"Mas será possível ser-se soberano espiritual de determinada força e ao mesmo tempo seu escravo? Poderá o servo libertar?"

Thomas Mann (1924) | A montanha mágica | Dom Quixote | 2009

dezembro 29, 2016

"(...) quem quiser falar de estupidez ou tirar algum benefício de tais intenções deve partir da hipótese de que ele próprio não é estúpido; quer dizer, proclamar que se julga inteligente, ainda que isso passe geralmente por um sinal de estupidez!"           
Robert Musil (1937) | Da Estupidez | Relógio D´Água |1994

dezembro 28, 2016

©raquelsav | Tomar sem filtros | Dezembro 2016
PLAY Lhasa De Sela | El Desierto

Perseguiremos o rasto das casas-mãe
e caminharemos na boca da espuma,
entre esquinas e recortes de um mapa-mar.
Fixaremos paredes,
onde adivinharemos imagens
e entregaremos a mão à sombra,
em metamorfoses de aves e outros animais.

Seremos esses animais.
Seremos essas sombras,
que havemos de pintar na cor do espanto,
para deixarmos de ser.
10
apenas um instante e as coisas mudam-se
umas nas outras enlaçadas,
então ocorre perguntar: porque não começa
a vida? noite após noite, os vastos
entrepostos alcatroados permanecem vazios,
e é possível, de longe, avistar as fogueiras
que a chuva ateia, e debaixo do lodo os corpos
abandonados pela guerra.

o universo, dirás, expande-se
e contrai... mas entretanto
já a folha corrói o desejado,
e a doença do verme anima o verso.
como esperar? são pálidas as bocas
a vídeo no vinil e na placenta,
e se perdeu a vaga parecença
da paisagem.

vamos por aí fora, ao deus dará, vertidos
em rima tosca,
serão sempre horas de partir, de beijar,
de voltar a casa para um jantar de madrugada,
de ir ao cinema pra esquecer, de ficar
solto numa esquina, esquecido,
depois basta deitar fora toda a água parada
e será verão.              

António Franco Alexandre | Segundas moradas in Poemas | Assírio & Alvim |1996
Enki Bilal | Encontro em Paris 3º. Acto

dezembro 24, 2016

dezembro 23, 2016

18
e no detalhe
habita um deus: partilho
essa convicção simples, dura como um seixo.
de todas as palavras, só uma irá bater 
à porta do desconhecido,
entrar no coração, dar as boas-vindas,
e todas poderão ruir, e ela ficará latejando
no sangue das primeiras núpcias.

eu calculo a passagem do estorninho e da poupa, vejo
a exacta emoção da inexacta curva,
o rastro, facilmente luminoso.
a terra cresce para todos nós, tão rápida nos ramos,
só o vento a detém. um dia       
seremos úteis e preciosos como a erva e a cabra,
e ricos de virtude saberemos
o que fazer para morrer, não morrer, entretanto

ela lateja na núpcia do sangue, inteiramente ignorante
do grande sentido de tudo isto,
egoísta como a primeira mão
que nos tocou,
um destino leviano, sensível, pacato,
depois o sulco deixado reparte as colinas
e o pequeno piano repete
a criação do mundo.
    
António Franco Alexandre | Segundas moradas in Poemas | Assírio & Alvim |1996


"Saga Vol. Um" | Brian K. Vaughan & Fiona Staples | 2014

dezembro 22, 2016

©Elliott Erwitt | SPAIN. Madrid | 1995.
PLAY Peggy Lee | Fever

dezembro 21, 2016

PLAY The Pogues | P.S. I love you till the end

dezembro 20, 2016

é no meu corpo que morreste, agora
temos o tempo todo
ao nosso lado, como
um lodo onde dormiram as

conhecidas maneiras.
algumas nuvens se aproximam, e depois
se afastam, numa duvidosa
manifestação de imperícia;

os animais falantes
atravessam corredores iluminados,
embarcam na

sossegada lembrança dos sonetos,
o leve sono que pesou no dia.
é no meu corpo que morreste, agora.      

António Franco Alexandre | Poemas | Assírio & Alvim |1996
"Que felicidade sentirmo-nos irritados e sermos forçados a amar ao mesmo tempo..."

Thomas Mann (1924) | A montanha mágica | Dom Quixote | 2009

dezembro 17, 2016

CUIDADOS INTENSIVOS
Como se flores me saíssem das veias:
um molho de amarílis em chamas. Ligado a tubos -
um comprimido para o medo debaixo da língua - sonho com uma dor
vermelha: (flor saindo de mim como uma bela ferida;
mulher de uma brancura lunar de carnes, de lingerie negra
e cabedal de verniz, ajoelha à minha frente e morde) um afrodisíaco

A minha máscara de oxigénio e a sua cor de carne macerada.
Sons de coisa a bombear. No meu cérebro, música soltando
a tampa ao boião do sono. Sorvos:
o sangue sabe a doce e ri como prometido,
o andar das coisas anda.

Dêem-me massagem tailandesa, demão grega e blow job.
(Que sobra de mim? Um livrinho a negro
o amor amor amor
do ghettoblaster  do meu coração.)
Dêem-me a definição da morte.

Peter Verhelst (1962-) | Uma migalha na saia do universo - Antologia da poesia Neerlandesa do Século Vinte | Assírio & Alvim | 1996
Martine Franck | FRANCE Paris | 1977.

COM A TUA VOZ
Com a tua voz
fala pela noite
adentro o salgueiro, luzes
voam em seu redor.
No alto, uma flor-de-água
atravessa a escuridão.
Com os seus animais
respira o rio.

Levo para os cálamos
a minha casa entrançada.
O caracol
inaudível passa pelo meu telhado.
Gravado
na palma das minhas mãos
encontro o teu rosto.

MIT DEINER STIMME
Mit deiner Stimme
bis in die Nacht
redet der Weidenbusch, Lichter
fliegen um ihn.
Hoch, eine Wasserblume
fährt durch die Finsternis.
Mit seine Tieren
atmet der Fluß.

In den Kalmus
trage ich mein geflochtenes Haus.
Die Schnecke
unhörbar
geht über mein Dach.
Eingeszeichnet
in meine Handflächen
finde ich dein Gesicht.              

        
Johannes Bobrowski (1917 - 1965) | Como um respirar - antologia poética | 1990 | Edições Cotovia |Tradução João Barrento



Kafka Desiste! e outras histórias ilustradas por Peter Kuper | Mundo Fantasma | 2003

EU PODIA ESCOLHER.
Não tinha ideia.
Escolhi a paz.

A verdade e a beleza deixei-as ir,
e também a sageza e a nostalgia -
até o amor,
que tão embevecido me olhava,
negras nuvens com ele se deslocavam.

Paz, era paz.
E nos recônditos da minha alma
dançavam seres
de que nunca tinha sequer ouvido!

E no céu pendia um outro sol.

Toon Tellegen (1941-) | Uma migalha na saia do universo - Antologia da poesia Neerlandesa do Século Vinte | Assírio & Alvim | 1996

dezembro 07, 2016

©Antoine D'Agata | Braga PT | 2002

PLAY Elis Regina | Tatuagem
"Perpetuar-me como tua escrava"
----DIANTE DO TEU ROSTO TARDIO 
so-
litário entre
noites que também me transformam,
algo se imobilizou
que já outrora estivera connosco, in-
tocado por pensamentos. 


----ESTAR À SOMBRA
da chaga no ar.

Não-estar-por-nada-nem -ninguém.
Incógnito,
para ti
somente.

Com tudo o que cabe lá dentro,
também sem
fala.


---- VON DEIN SPÄTES GESICHT
allein-
gägerisch zwischen
auch mich verwandelnden Nächten,
kam etwas zu stehn,
das schon einmal bei uns war, un-
berührt von Gedanken.



---- STEHEN, IM SCHATTEN
des Wundenmals in der Luft.

Für-niemand-und-nichts-Stehn.
Unerkannt,
für dich
allein.

Mit allem, was darin Raum hat,
auch ohne
Sprache. 
  
Paul Celan (1955) | Sete Rosas Mais Tarde | Cotovia | 1996