|Assim repito o nome e sinto ainda o incêndio no rosto :|| paul celan |Porque é com nomes que alguém sabe | onde estar um corpo| por uma ideia, onde um pensamento | faz a vez da língua.| herberto helder
dezembro 23, 2020
dezembro 20, 2020
O rosto da voz
ALLERSEELEN
(TODOS-OS-SANTOS)
Que fiz
eu?
Inseminei a noite, como se outras
pudessem vir, mais nocturnas que
esta.
Voo de ave, voo de pedra, mil
trajectórias descritas. Olhares,
pilhados e colhidos. O mar,
provado, sorvido, absorto. Uma hora,
obscurecida de almas. A seguinte, uma luz outonal,
ofertada a um sentimento
cego, que tomou o caminho. Outras, muitas,
sem lugar e pesadas de si mesmas: avistadas e contornadas.
Rochas erráticas, estrelas,
negras e plenas de linguagem: nomeadas
por jura de silêncio rasgado.
E certa vez (quando? também isto se esqueceu):
o pulso sentiu o gancho,
quando ousava desprender-se.
Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que importa, Relógio D'Água, 2014
dezembro 19, 2020
novembro 21, 2020
novembro 06, 2020
([#1] Resposta de ninguém)
1
ligeiramente suspenso, pensei: nunca mais
poderei esquecê-lo. as longas, secas
estradas; os passos na água, nus,
e a perfeita esfera dos versos;
o instante em que o céu é redondo e
inútil,
são-me memória deste chãos, deste cuspo
espantado, no silêncio aberto das coisas.
mudo de rosto para ver-te. nenhum deus
te possui. o caule
do vento te cobre.
e descemos a luz, a transparência
os corredores solenes da lembrança
onde dormidas fúrias anoitecem.
confio na muda boa, ó gume fulvo
de ninguém!
as palavras existem no intervalo das palavras.
nenhuma imagem é o permanente futuro dos corpos
quando se enlaçam, quando se sonham
a colina e a água,
a cidade e o rosto
móvel da multidão apaixonada,
que se afasta correndo para o lado da terra
onde jamais arderam.
António Franco Alexandre | Poemas | Assírio&Alvim
outubro 28, 2020
outubro 05, 2020
outubro 01, 2020
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©Robert Mapplethorpe |
"Ingeborg,
Este ano chego "indefinidamente"e tarde. Mas talvez só seja assim porque não quero que ninguém além de ti esteja presente quando eu puser papoilas, muitas papoilas, e memória, também muita memória, dois ramos grandes e brilhantes na tua mesa de aniversário. Há semanas que antecipo com alegria esse momento.
Paul"
(Paris, 20 de Junho de 1949)
julho 31, 2020
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©raquelsav |
que lançámos à terra,
em ato polinizador acidental.
Errámos na estação:
- quem colhe,
aguarda em silêncio pela flor.
Escolhe, com exactidão,
o segundo de semear.
Mas nós despimos do grão o tegumento
e, no estio dos dias longos,
a semente secou.
Não cuidámos da espera,
sucumbimos,
na ânsia de a ver florir.
Antes de eclodir, dormimos,
para, depois, morrer.
E assim morremos sempre,
a cada Primavera.
julho 30, 2020
julho 28, 2020
julho 24, 2020
PLAY António Fragoso (1897-1918) | Prelúdio "Petite Suite"
13
explicar com palavras deste mundo
que partiu de mim um barco levando-me
julho 20, 2020
junho 09, 2020
"- Odeio gente que se mete com a literatura e depois não a sofre.
(...)
Acha que se as pessoas vivessem segundo os livros maiores estavam vivas?
- Os melhores não sobrevivem."
Maria Velho da Costa | Myra
maio 21, 2020
abril 12, 2020
abril 11, 2020
Não caibo nesta tarde que me desfolhas
sobre o coração. Renovam-se sob os passos
todos os caminhos e o dia é uma página que lida
e soletrada descubro inatingível como o vento a rua e a vida
As mesmas mãos que antes desfraldavam
domésticas insígnias baixo dos beirais
emprestam novos pássaros às árvores
Pétala a pétala chego à corola desta minha hora
Roubo o meu ser a qualquer outro tempo
não há em mim memória de alguma morte
em nenhum outro lugar me edifiquei
Arredondas à minha volta os lábios para me dizer
recuo de repente àquele princípio que em tua boca tive
Eu sei que só tu sabes o meu nome
tentar sabê-lo foi afinal o único
esforço importante da minha vida
Sinto-me olhado e não tenho mais ser
que ser visto por ti. Há no meu ombro lugar
para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida
Ruy Belo | Todos os poemas | Assírio & Alvim
"O medonho sentimento de incompletude de que nasce um antagonismo entre nós e o mundo talvez pudesse desaparecer, desde que um dos dois se modificasse: ou o mundo, ou nós; quimeras de insensatos, que eu execrava. No entanto, tendo chegado depois de uma longa introspecção a essa convicção de que, se o mundo se modificasse, eu deixaria de existir, e reciprocamente, descobri aí de modo bastante paradoxal uma reconciliação, uma possibilidade de compromisso. No sentido em que a coexistência era possível entre o mundo, por um lado, e por outro o pensamento de que não poderiam amar-me tal como eu era. A armadilha na qual o enfermo acaba sempre por cair não é a de resolver o antagonismo que o opõe ao mundo mas assumir integralmente esse antagonismo. E é por isso que o enfermo é incurável... incurável..."
Yukio Mishima | O templo dourado | Assírio & Alvim | p.84
abril 09, 2020
"283. A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ser alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas de espírito, todas da alma; és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. (...) Nascer liberto é a maior grandeza do homem."
Fernando Pessoa (Bernardo Soares) | Livro do desassossego |Assírio & Alvim
janeiro 29, 2020
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©Thomas Dworzak | KYRGYZSTAN | Bishkek | March 2005. |
A língua foge para tocar a dor.
Às vezes, é bom doer.
A dor,
espécie de carta registada,
com aviso de recepção:
em jeito de nos fazer vivos,
assim, como quem adia a morte,
por extenso.
janeiro 28, 2020
Vida suspensa
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raquelsav2020 |
Se ao corpo, que dói, cortarmos a raiz
o que sobra,
depois?:
- Corjas de folhas secas em voo rasante?
- Troncos verdes de rachar em lenha?
- Punhados de terra, em húmus,
prontos a alimentar a dor?
É quase um regresso em coisa pouca:
nem a terra é tudo,
nem do osso renasce a pele.