julho 03, 2024

©Hans_Baumgartner | Limmatquai in Zürich | 1938

"E lá fomos audazes por passeios tardios 
Vadiando o asfalto, cruzando outras pontes de mares que são rios"
Fausto Bordalo Dias
HUMANO
Com o homem começa o invisível.
O que se diz é o que se esconde, os olhos
giram para bem longe da sua fome.
O homem enche a sua fome de poemas,
os seus poemas de sonhos de amor,
os seus sonhos de amor de coisas impossíveis,
como a eternidade ou o lugar perfeito
onde nos deitaremos a ouvir o pensamento
dos pássaros, a água que corre aflita
com medo de ser pouca no chão tanto,
com a loucura do mundo a crescer no 
nosso sexo, no nosso pensamento,
com o mundo a crescer vibrante a cada instante,
por dentro de nós, em nós, por fora de nós,
sem parar, sem memória, sempre,
sem fim, sem infinito, para lá das coisas que nos vencem,
para lá do sonho, nesse lugar além de tudo quanto
pode ser dito, de tudo quanto foi dito, além da história
do que somos, da vida que vivemos, todos, incluindo os mortos,
os que ainda não nasceram, os que se vendem, por dinheiro
ou excesso de tristeza, os que acreditam na vida, na beleza, 
na utilidade prática da arte, na invencibilidade do amor,
na irmandade dos homens que constroem um mundo melhor,
homens e mulheres que estão aqui, ou que porventura
chegarão amanhã, quando nós e eles formos outros,
maiores que o dia que passou, que a noite que nos guarda,
quando o invisível for mais perto do braço que nos toca,
dos olhos onde revemos a história do mundo,
deste momentos onde parimos a luz

Rui Costa (1972 - 2012) Mike Tyson para principiantes: antologia poética | 2022 | Assírio & Alvim

julho 02, 2024

©Edouard Adelot | 1906 | Léffort

PLAY Fausto Bordalo Dias | A memória dos dias

"Deixo-te uma palavrinha 
Para te lembrares de mim"
Fausto Bordalo Dias
O PÃO
Há pessoas que amam
com os dedos todos sobre a mesa.
Aquecem o pão com o suor do rosto
e quando as perdemos estão sempre
ao nosso lado.
Por enquanto não nos tocam:
a lua encontra o pão caiado que comemos
enquanto o riso das promessas destila
na solidão da erva.
Estas pessoas são o chão
onde erguemos o sol que nos falhou os dedos
e pôs um fruto negro no lugar do coração.
Estas pessoas são o chão
que não precisa de voar.

Rui Costa (1972 - 2012) | Mike Tyson para principiantes: antologia poética | 2022 | Assírio & Alvim

Queda de um grave

  - CVI -

O pão
só mata a fome
com o sal da mão

julho 01, 2024

 

©raquelsav | 2007 | Ponte das 3 Entradas

PLAY Fausto: Aproximação à Terra + E Fomos Pela Água do Rio

creio-nos em almas escancaradas
de jangada que toma de assalto as ternuras e delícias que flutuam na desconjuntada periferia do tempo

como se ali estivessem estado sempre,
as ternuras e delícias,
revistas no tempo de sempre
em escassos cinco minutos 
                    (dos nossos)
mas não! 
terão passado quatro. ou teriam sido cinco mil? 
daquela unidade de tempo maior 
medida pela dança da Terra à volta do Sol
     [sim, confirmei no Google a definição de um ano 
                                           (dos homens)]
o tempo é-nos sempre tão confuso 
a memória comum e a arqueologia dos dias de agora estão guardadas na magia de um clique
talvez à matéria das almas escancaradas não lhe assista factos tão perfeitamente inúteis

mas só podem ter sido quatro, ou teriam sido cinco mil?
unidades de tempo maior, condensadas num minuto 
                                         (do nosso encontro)

preciso-nos em almas escancaradas de gigante
sem garantir que o trajeto da nossa luz ao vazio se faça em porções de 1/299792458 de segundo ou em qualquer outra fração

perfeitamente maiores, seremos, pois,
nos passos do nosso encontro
à razão de sermos próximos das coisas que não se tocam,
feitos em pormenores do reflexo das árvores concretas
que flutuam e descansam nas águas do rio
na perfeita liberdade de ser-plano
                         (à tona do mundo de Edwin Abbott)

creio-nos em almas escancaradas
tão claras e distintas de detalhes
na complexidade que se esbate nas coisas planas e mágicas
em plena liberdade de existência

foge-nos o vício 
da morbidez 
         (da que os homens se habituaram a querer viver)
e escolhemos a matéria etérea e fugaz para existir
em almas escancaradas ao sabor e aroma do perfume das chuvas

esgueiramo-nos, sensíveis, aos toques ímpios na água 
                 (os que dissolvem a magia da revelação)
e somos de tal infinitas maneiras
que só o poema nos poderá eternizar.

sim, creio-nos em poesia! 
sim, creio!

PLAY Fausto: O perfume das Chuvas

(Raquel, 1.março.2014)

Aceno ao barco que vai rio acima

 

©raquelsav | 20 novembro 2022 | Aula Magna

PLAY Fausto Bordalo Dias | Quando eu morrer

Quem esteve na Aula Magna em 2022, sabe que a despedida física, ao homem, começou, se não antes, ali. Uma luta desleal entre um homem frágil e a sua obra imensa, uma luta titânica. O choro foi colectivo, entre a emoção e eco da obra e a saudade de um homem que embora não tivesse partido, já se abeirava de um barco em saída. Mas fomos todos, rio acima, com ele nessa celebração, nesse embalo.
O barco, que saiu rio abaixo, chegou hoje ao mar, para navegar, navegar, sempre à vista, discretamente como sempre, mas à vista.


Quando eu morrer 
Não me deem rosas 
Mas ventos 
Quero as ânsias do mar 
Quero beber a espuma branca
De uma onda a quebrar 
E vogar  
Quando eu morrer
Não me deem rosas (x)
Ah, a rosa dos ventos 
A correrem na ponta dos meus dedos 
A correrem, a correrem sem parar 
Onda sobre onda infinita como o mar 
Como o mar inquieto 
Num jeito de nunca mais parar 
Por isso eu quero o mar 
Morrer, ficar quieto, não  
Ó, sentir sempre no peito 
O tumulto do mundo 
Da vida e de mim 
E eu e o mundo 
E a vida Ó mar 
O meu coração fica para ti 
Para ter a ilusão 
De nunca mais parar”  
Fausto Bordalo Dias