julho 20, 2016

31.10.1951, Paris

Meine liebe Inge,
dieses Leben scheint nun einmal aus Versaumnissen gemacht, und man tut vielleicht besser daran, nicht allzu lange an diesen herum- zuraetseln, sonst will kein Wort von der Stelle. 
(...)
Lass mich alles wissen, was mitteilbar ist, und darueber hinaus vielleicht manchmal eines von den leiseren Worten, die sich einfinden, wenn man allein ist und nur in die Ferne sprechen kann. Ich tue dann dasselbe.
Das Lichtest dieser Stunde!
Paul


Ingeborg Bachmann & Paul Celan  | Herzzeit: Briefwechsel | 2015 | 4. Ed | Suhrkamp

[#3] manual de sobrevivência

@raquelsav | Algés | 8 Julho 2016

julho 05, 2016

"viver por conta própria e a sonhar por conta de alguém"

"(...) cor de minério púrpura, polidos em barros, saibos, humidade, por milénios de paciência geológica.
    Assisto (assistimos os dois) em silêncio à ressurreição das florestas, também silenciosa. Ralanti desfocado (imagem por imagem) e contudo nítido no conjunto. Examino a ideia (é-me imposta de fora: não fui eu a elaborá-la) duma catástrofe serena, planeada, às avessas, e isso assusta-me ainda mais. Exacerbando sentimentos comuns (espanto, medo), mas inserindo-se numa experiência nova (signos doutra lógica e doutra realidade), a ideia insinua que estou a viver por conta própria e a sonhar por conta de alguém."

Carlos de Oliveira (1978) Finisterra | 1979 | Sá da Costa


II
Desloca-a o frémito
do fogo: lava
explodindo lentamente;
afastando as águas
marginais; endurecendo-as
na raiz dos álamos;
enquanto ganha 
fluidez: transmutação?
paciência geológica?
fábula da terra com os seus módulos 
minerais? e líquida; liberta
irrompe, deixa
sobre os flancos 
uma espuma de chão.
       
Carlos de Oliveira (1921 - 1981)| Cristal em Sória in Trabalho Poético, 2003, Assírio&Alvim
VI
O pássaro; a sua anatomia
rápida: forma cheia de pressa,
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,
sem o ferir;
modelo doutros voos: nuvens;
e vento leve, folhas;
agora, atónito, abre as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum rumor e sumir-se.
       
Carlos de Oliveira (1921 - 1981)| Cristal em Sória in Trabalho Poético, 2003, Assírio&Alvim
  "As trovoadas não param. Raios que matam gente e gado, incendeiam casa, fendem pinhais inteiros. O inferno a mudar-se, com armas e bagagens. É o que dizem nas igrejas.
   O riso franze-lhe o canto dos olhos.
   Aí tens a intuição. Aceita-a sem reservas.
   Mesmo que lamente o êxodo (e desconfio), dunas sobre dunas, a perder de vista, não lhe desagrada ver sua febre confirmada nos peregrinos, ter alguma razão.
   E as mulheres? Ficaram a cuidar do inferno?
   Não blasfemes. Partiram para sul, de filhos agarrados às saias. Têm santos a dois passos da porta. Nós escolhemos o norte, por ser mais longe.
   Pedem o quê?
   Clemência e chuva. Trazemos gado como oferenda.
   Ad petendam pluviam, claro.
  Um silêncio breve (a vibração da sala desaparece). Quando recomeçam, as vozes soam com rudeza.
   Fogo de sol a sol, relampejando nas enxadas que remédio. Na areia germina pouco pão e as regas, além da chuva, precisam de suor. Mas os lugares malignos em nossa casa, não os merecemos. Tanto sítio para pôr o inferno, e logo nos calhou a nós."
(...)

   "Vamos ao trabalho. Tragam-me um cordeiro, faz favor. E não se esqueçam: tosquiado.
   O amigo da família dirige-se à orla da floresta. Comprar um cordeiro aos peregrinos: fácil, à primeira vista; à segunda, nem tanto: existe um problema religioso importante.
   O gado já pertence aos santos e arriscar a alma, arriscamos, se valer a pena. Por trinta dinheiros, só quem nós sabemos.
   Quando fecha o negócio (tosquia incluída, de má vontade), não bate a cabeça contra as árvores, por vergonha: na feira, o mesmo dinheiro (e metade do esforço) davam sem exagero para um rebanho.
   Regressa, com o cordeiro ao colo (a criança continua a espreitar): cambaleia, sobre a álea aos ziguezagues; sapatos de calfe esfolados, meias de lã enroladas sobre os sapatos (Que largam um rasto de suor, uma baba de caracol). Nos últimos passos, levanta os joelhos à altura do queixo: única forma de aguentar o peso do cordeiro. Chegam, enovelados um ao outro. O amigo da família mal pode respirar.
   Aqui o tem. E não me agradeça (não é possível)."

Carlos de Oliveira (1978) Finisterra | 1979 | Sá da Costa

"O relógio dá horas, nós damos-lhe corda. E apenas nós podemos adiantar, atrasar, os ponteiros. Muito pouco, aliás. Mesmo resvalando na pior corrupção..."

Carlos de Oliveira (1978) Finisterra | 1979 | Sá da Costa

julho 04, 2016

"-Já calculava. O sonho custa a domesticar."

Carlos de Oliveira (1978) | Finisterra | 1979 | Sá da Costa
LÍQUENES
I
Algures,
no lugar
mais frio 
da memória,
mas nítido
como um centímetro
quadrado de neve
que pede 
a própria luz
à algidez interior,
surge
a paisagem
de líquenes,

(...)
VI
assim
se cumpre
o eclipse
gradual
sobre o centímetro
quadrado que
os líquenes
cobrem 
na memória,
assim
 a luz e a neve
se ocultam
pouco a pouco, assim
se esquece.
       
Carlos de Oliveira (1921 - 1981)| Trabalho Poético, 2003, Assírio&Alvim

julho 01, 2016

Elis_Regina | Sinal Fechado e Transversal do tempo

PUMBA!

PLAY Savages | Shut up
"- Para o entenderes tens primeiro de saber o que é aquilo a que se chama normalidade, criatura minha irmã - explicou Ulrich, tentando travar com o gracejo as ideias galopantes. - O normal é uma manada não significar para nós mais do que carne de vaca a pastar. Ou então é um cenário idílico digno de ser pintado. Ou nem sequer reparamos nela. Vacas nos caminhos de montanha fazem parte dos caminhos de montanha, e só saberíamos verdadeiramente o que sentimos ao vê-los se, em seu lugar, ali estivesse um relógio eléctrico ou um prédio de rendimento. Geralmente pensamos: ficamos ou levantamo-nos? Queixamo-nos das moscas que zunem em volta da manada; tentamos perceber se há um touro no meio dela; perguntamo-nos se o caminho continua ou se acaba ali. Um sem-número de pequenos propósitos, preocupações, cálculos e percepções que, todos juntos, formam o papel sobre o qual se pinta a imagem de uma manada. Nada sabemos do papel, apenas vemos a manada em cima dele...
- E de repente o papel rasga-se! - exclama Agathe.
- É isso mesmo. Quer dizer: rasga-se uma qualquer trama de convenções que trazemos em nós. E subitamente o que ali anda a pastar deixa de ser alimento, motivo pictórico, nada me barra o caminho. Já nem sequer és capaz de formar as palavras ‹‹pastar›› ou ‹‹erva››, porque as associas a uma série de ideias úteis e pragmáticas que de um momento para o outro perdeste. Aquilo que fica à superfície do quadro poderia quando muito descrever-se como um ondular de sensações que sobem e descem ou respiram e cintilam como se preenchessem, sem contornos precisos, todo o campo de visão. É claro que o quadro contém muitas percepções isoladas, cores, chifres, movimentos, cheiros e tudo o que faz parte da realidade: mas isso deixa de ser reconhecido, apesar de darmos por essas coisas. O que quero dizer é que os pormenores estão despossuídos do egoísmo por meio do qual chamam a nossa atenção: passaram a estar ligados uns aos outros fraternalmente, literalmente de forma ‹‹‹íntima››. E evidentemente, nesta altura já não existe qualquer ‹‹superfície do quadro››, porque de algum modo todas as coisas extravasaram os seus limites e se passaram para dentro de nós.
E Agathe prosseguiu com a descrição:
-Agora só precisas de substituir o egoísmo dos pormenores pelo egoísmo do ser humano - exclamou -, para chegares àquilo que é tão difícil de exprimir: ‹‹Ama o próximo!›› não significa ama-o tal como és, mas define uma espécie de estado onírico!
-Todos os postulados da moral - confirmou Ulrich - definem uma espécie de estado onírico que já estão para lá das regras com que os formulamos!
- Sendo assim, não existe bem e mal, mas apenas a fé e... dúvida!- exclamou Agathe, que sentia agora como muito próximo, com toda a sua autonomia, e igualmente a sua perda, o estado de fé original assimilado pela moral, de que o irmão falara ao dizer que a fé não tem tempo para envelhecer.
-Pois é - concordou Ulrich -, no momento em que nos libertamos da vida não essencial, tudo entra em novas relações. Quase me apetecia dizer: tudo sai das relações. De facto, a nova relação é absolutamente desconhecida, não temos qualquer experiência dela, e todas as outras relações se apagam. Mas esta outra, apesar da obscuridade, é tão nítida que ninguém a pode negar. É intensa, mas de uma intensidade inapreensível. Poderia também dizer: geralmente olhamos para uma coisa e o olhar é como um pauzinho ou um fio esticado em que se apoiam os olhos e o objecto olhado, e há uma qualquer grande trama deste tipo que sustenta cada segundo. Mas naquela relação de tipo único há, pelo contrário, qualquer coisa de dolorosamente suave que separa as incidências do olhar.
-Não possuímos nada do que há no mundo, nada é sustentado por nós, não somos sustentados por nada - disse Agathe. "


Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. |Trad. João Barrento


 PLAY Chopin & Martha Argerich | Andante Spianato & Grande Polonaise Brillante Op.22
"Um ‹caso limite››, como Ulrich mais tarde lhe chamaria, com um alcance limitado e particular, e que lembrava a liberdade com que a matemática por vezes se serve do absurdo para chegar à verdade".

Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. | Trad. João Barrento

Nina's Dream


Benjamin Clementine | I Want Complain

junho 30, 2016


©raquelsav | 29 de Junho 2016 | Exposição "Avesso" de Ana Vidigal

 R   E   C   O   M   E   Ç   O

rima com

A   V   E   S   S   O

junho 29, 2016

 PLAY Neu! | Hallogallo (1972)

HELIAN

Nas horas solitárias do espírito
É bom caminhar ao sol
Ao longo dos muros amarelos do verão.
Leves ecoam os passos na erva; mas o filho de Pã
Dorme sempre no mármore cinzento.

À noite, no terraço, embriagámo-nos com vinho castanho.
Vermelho arde o pêssego na folhagem;
Doce sonata, alegre riso.

Belo é o silêncio da noite.
Na planície negra
Encontramo-nos com pastores e estrelas brancas. (...)

HELIAN

In den einsamen Stunden des Geistes
Ist es schön, in der Sonne zu gehn
An den gelben Mauern des Sommes hin.
Leise klingen die Schritte im Gras; doch immer schläft
Der Sohn des Pan im grauen Marmor.

Abends auf der Terrasse betranken wir uns mit braunem Wein.
Rötlich glüht de Pfisich im Laub;
Sanfte Sonate, frohes Lanchen.

Schön ist die Stille der Nacht.
Auf dunklem Plan
Begegnen wir uns mit Hirten und weißen Sternen. (...)

Georg Trakl (1887-1914) | Outono Transfigurado | Assírio & Alvim | 1992  | Tradução João Barrento

PLAY Pere Ubu | Final Solution

"Don't need a cure
Need a final solution."

junho 26, 2016

©raquelsav | Junho 2016
PLAY Tigran Hamasyan & The Yerevan State Chamber Choir | Luis i Luso Full Concert

(Em)quanto te elevas e um fio e um rasto e os deuses moribundos e cansados. E tu sobes em montanhas inclinadas de ouro e há luz e há luz. E os deuses fazem-se morros e as montanhas precipitam-se e o ouro e a luz voam como pássaros pelas escarpas. Jazem rochas cristalinas e élitros de besouro imóveis para te ver passar. E sobes e sobes e a montanha desce. (Em)quanto te elevas e um fio e um rasto e um silêncio. (Em)quanto te elevas e um mundo a ficar pequeno.
17.
Pois a pobreza é um grande clarão que vem do interior...

Denn Armut ist ein großer Glanz aus Innen....

Rainer Maria Rilke (1903 |  O Livro de Horas (O livro da pobreza e da morte) | Assírio&Alvim | 2009 | Trad. M. T. Dias Furtado

junho 24, 2016

© Pawel Kuczynsk

junho 18, 2016

Murcof | Una

junho 15, 2016

PLAY Teho Teardo + Blixa Bargeld | The Beast


"-Então não é bom ser-se bom? - perguntou ao irmão, com um brilho nos olhos semelhante ao de uns dias antes, ao manipular as condecorações do pai de um modo que provavelmente não seria visto como bom por toda a gente.
-Tens razão - respondeu ele com vivacidade. - É preciso realmente formar de novo uma frase como essa para lhe sentir o sentido original! Mas as crianças ainda gostam de ser boas, como gostam de gulodices...
- Mas também de ser más - completou Agathe.
- MAs será que ser bom é uma das paixões dos adultos? - perguntou Ulrich. - É um dos seus princípios! Não são bons, porque isso lhes soaria infantil, mas praticam o bem. Um homem bom é aquele que tem bons princípios e pratica boas acções: mas isso não impede - e este é um segredo sem segredos - que possa ser a mais repugnante das pessoas!
- Como o Hagauer - finalizou Agathe.
- Há nessas pessoas boas um paradoxo absurdo: transformam a situação em exigência, a graça em norma, o ser em objectivo. Nesta família dos bons só se comem restos durante toda a vida, enquanto corre o boato de que em tempos houve um dia festivo do qual todos descendem! É certo que de tempos a tempos aparecem algumas virtudes que se tornam moda, mas assim que isso acontece elas perdem logo a frescura.
- Uma vez disseste que uma acção pode ser boa ou má, dependendo do contexto - inquiriu Agathe.
  Ulrich concordou. A sua teoria era a de que os valores morais não são grandezas absolutas, mas conceitos funcionais. Mas quando nos pomos a moralizar e a generalizar arrancamo-los ao seu todo natural.
- E provavelmente é esse o ponto em que, no caminho da virtude, alguma coisa está errada - disse ele.
- Se não fosse assim, como é que os moralistas podiam ser tão aborrecidos - continuou Agathe - , quando o seu propósito de serem bons devia ser a coisa mais deliciosa, difícil e divertida que se possa imaginar?
   O irmão hesitou. Mas de repente saiu-lhe a afirmação que em breve os iria levar a uma relação inusitada.
  - A nossa moral - explicou - é a cristalização de um movimento interior completamente diferente dela. Nada do que dizemos faz sentido. Pensa numa frase qualquer, ocorre-me, por exemplo, esta: ‹‹Numa prisão deve imperar o arrependimento!›› É uma frase que se pode pronunciar com a melhor das consciências, mas ninguém a toma à letra, senão estávamos a pedir o fogo do inferno para os encarcerados! Como é que a entendemos, então? Há com certeza muito poucos que saibam o que é o arrependimento, mas todos dizem onde ele deve imperar. Ou então pensa em algo exaltante: como é que isso se mistura com a moral? Quando é que estivemos com o rosto tão mergulhado no pó que isso nos faça sentir a bem-aventurança do arrebatamento? Ou então toma à letra uma expressão como ‹‹ser assaltado por um pensamento››: no momento em que sentisses no corpo tal contacto já estarias no limiar da loucura! Cada palavra quer então ser lida na sua literalidade para não degenerar em mentira, mas não podemos tomar nenhuma à letra, sob pena de o mundo se transformar num manicómio! Há uma qualquer grande embriaguez que se eleva daí sob a forma de uma obscura recordação, e de vez em quando imaginamos que todas as nossas experiências são partes soltas e destruídas de uma antiga totalidade que um dia se foi completando de maneira errada.".

Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. |Trad. João Barrento