março 13, 2015

[#8] Estou a escrever-te de um país distante


©Jean Gaumy. FRANCE. Cordovan lighthouse. January 2013.
Details. Screenshot of digital BW photographs taken with an iPhone.
 Color photographs taken with a digital reflex camera
     "Desde há muito, muito tempo, confia-lhe ela, andamos a debater-nos com o mar.
     É muito raro que azul, suave, ele nos pareça contente. E nem é coisa que dure. Di-lo o seu cheiro, aliás, um cheiro a podre (não fora a sua amargura).
     Eu devia explicar agora o caso das ondas. Incrivelmente complicado, e o mar... Por favor, confia em mim, Alguma vez eu quereria enganar-te? O mar não passa de uma palavra. Não passa de um medo. Existe, juro-te que existe, estamos constantemente a vê-lo.
     Quem? Nós, claro, nós estamos a vê-lo. Chega de muito longe a meter-se connosco e a assustar-nos.
     Quando vieres hás-de vê-lo, também tu, e a ficar muito espantado. "Olha só!, dirás, porque ele assombra.
     Havemos de vê-lo juntos. Julgo que deixarei de ter medo. Ou achas, diz-me lá tu, que isso nunca vai acontecer?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)
©Harry Gruyaer
PLAY Stravinsky Sagração da Primavera

O ABUTRE

Arrastando a sua fome através do céu
do meu crânio concha de céu e da terra

mergulhando sobre os tombados de borco
que breve deverão retomar a vida e andar

escarnecido por um tecido que poderá não servir
até que a fome a terra e o céu se convertam em refugo


Samuel Beckett 
Poemas Escolhidos- Cadernos de Poesia 10, Publicações Dom Quixote, 1970
(Tradução: Jorge Rosa e Armando da Silva Carvalho)


S   U   B   T   I   L   E   Z   A


 rima com beleza






Foto: ©Thomas Hoepker


2+1 ?

©Bruce Davidson. USA. NYC. Irish writer Samuel BECKETT. 1964.


--Poema--
(Henri Michaux)

apreender
ou absolutamente nada apreender ou apreender com louca intensidade

Por falta do principal
apreender desordenadamente, exageradamente,

Atordoar-me

Tornar-me insecto para melhor apreender
patas em gancho para melhor apreender
insecto, aracnídeo, miriápode, ácaro
se for preciso, para melhor apreender.


Herberto Helder, 
Doze nós numa corda (poemas mudados para português por Herberto Helder). Assírio&Alvim, 1997


1+1

"O azar
O senhor Henri disse: as maldições são cálculos matemáticos que acertam no futuro e esperam por nós.
Entretanto, o senhor Henri baixou-se para apertar um sapato e, nesse momento, uma enorme pedra passou por cima da sua cabeça e caiu violentamente no chão.
... a minha sorte foi mais uma vez pontual - disse o senhor Henri, depois de se levantar.
... ou seja: a minha sorte está sempre sincronizada com o meu azar.
... se uma pedra me batesse na cabeça seria azar - disse o senhor Henri.
... mas felizmente veio a sorte de me ter baixado no momento em que a pedra me queria abrir a cabeça.
... as pessoas que têm azar não deixam de ter sorte.
... o que têm é sorte nos momentos errados - disse.
... é como se no meio do deserto encontrassem um saco cheio de areia... - disse o senhor Henri."

Gonçalo M. Tavares O Senhor Henri, Caminho, 2003

março 07, 2015

©Mark Power. G.B. ENGLAND. Birmingham. All Saints Hospital. Closed ward.
 A Victorian asylum soon to be converted into a prison. (From the series 'The National Health- Mental Health'). 1998

Hoje- tempo do depois em lugar de princípio.
Ideia de sempre e ontem.
Sombra e vulto e rasto- imaginado e fixo à coisa que é de amar.
Lugar-ideia. Somente ideia.
Lugar-ausência. Somente lugar.
Lugar-ideia-ausência acima da coisa que é de amar.
©Josef Koudelka. ITALY. Sicily. Caltanissetta. Butera. 2005. Holy Week.

"CapítuloXXXV: Protonotário Apostólico


Enfim, peguei dos livros e corri à lição. Não corri precisamente; a meio caminho parei, advertindo que devia ser muito tarde, e podiam ler-me no semblante alguma coisa. Tive idéia de mentir, alegar uma vertigem que me houvesse deitado ao chão; mas o susto que causaria a minha mãe fez-me rejeitá-la. Pensei em prometer algumas dezenas de padre-nossos; tinha, porém, outra promessa em aberto e outro favor pendente... Não, vamos ver; fui andando, ouvi vozes alegres, conversavam ruidosamente. Quando entrei na sala, ninguém ralhou comigo.

O Padre Cabral recebera na véspera um recado do internúncio; foi ter com ele, e soube que, por decreto pontifício, acabava de ser nomeado protonotário apostólico. Esta distinção do Papa dera-lhe grande contentamento e a todos os nossos. Tio Cosme e prima Justina repetiam o título com admiração; era a primeira vez que ele soava aos nossos ouvidos, acostumados a cônegos, monsenhores, bispos, núncios, e internúncios; mas que era protonotário apostólico? O Padre Cabral explicou que não era propriamente o cargo da cúria, mas as honras dele. Tio Cosme viu exalçar-se no parceiro de voltareta, e repetia:

– Protonotário apostólico!

E voltando-se para mim:

– Prepara-te, Bentinho; tu podes vir a ser protonotário apostólico.

Cabral ouvia com gosto a repetição do título. Estava em pé, dava alguns passos, sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do título como que lhe dobrava a magnificência, posto que, para ligá-lo ao nome, era demasiado comprido; esta segunda reflexão foi tio Cosme que a fez. Padre Cabral acudiu que não era preciso dizê-lo todo, bastava que lhe chamassem o Protonotário Cabral. Subentendia-se apostólico.

– Protonotário Cabral.

– Sim, tem razão; Protonotário Cabral.

– Mas, senhor protonotário, – acudiu prima Justina para se ir acostumando ao uso do título, – isto o obriga a ir a Roma?

– Não, D. Justina.

– Não, são só as honras, observou minha mãe.

– Agora, não impede – disse Cabral, que continuava a refletir, – não impede que nos casos de maior formalidade, atos públicos, cartas de cerimônia, etc., se empregue o título inteiro: protonotário apostólico. No uso comum, basta protonotário.

– Justamente, assentiram todos.

José Dias, que entrou pouco depois de mim, aplaudiu a distinção, e recordou, a propósito, os primeiros atos políticos de Pio IX, grandes esperanças da Itália; mas ninguém pegou do assunto; o principal da hora e do lugar era o meu velho mestre de latim. Eu, voltando a mim do receio, entendi que devia cumprimentá-lo também, e este aplauso não lhe foi menos ao coração que os outros. Bateu-me na bochecha paternalmente, e acabou dando-me férias. Era muita felicidade para uma só hora. Um beijo e férias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo, porque tio Cosme, sacudindo a barriga, chamou-me peralta; mas José Dias corrigiu a alegria:

– Não tem que festejar a vadiação; o latim sempre lhe há de ser preciso, ainda que não venha a ser padre.

Conheci aqui o meu homem. Era a primeira palavra, a semente lançada à terra, assim de passagem, como para acostumar os ouvidos da família. Minha mãe sorriu para mim, cheia de amor e de tristeza, mas respondeu logo:

– Há de ser padre, e padre bonito.

– Não se esqueça, mana Glória, e protonotário também. Protonotário apostólico.

– Protonotário Santiago, acentuou Cabral.

Se a intenção do meu mestre de latim era ir acostumando ao uso do título com o nome, não sei bem; o que sei é que quando ouvi o meu nome ligado a tal título, deu-me vontade de dizer um desaforo. Mas a vontade aqui foi antes uma idéia, uma idéia sem língua, que se deixou ficar quieta e muda, tal como daí a pouco outras idéias... Mas essas pedem um capítulo especial. Rematemos este dizendo que o mestre de latim falou algum tempo da minha ordenação eclesiástica, ainda que sem grande interesse. Ele buscava um assunto alheio para se mostrar esquecido da própria glória, mas era esta que o deslumbrava na ocasião. Era um velho magro, sereno, dotado de qualidades boas. Alguns defeitos tinha; o mais excelso deles era ser guloso, não propriamente glutão; comia pouco, mas estimava o fino e o raro, e a nossa cozinha, se era simples, era menos pobre que a dele. Assim, quando minha mãe lhe disse que viesse jantar, a fim de se lhe fazer uma saúde, os olhos com que aceitou seriam de protonotário, mas não eram apostólicos. E para agradar a minha mãe, novamente pegou em mim, descrevendo o meu futuro eclesiástico, e queria saber se ia para o seminário agora, no ano próximo, e oferecia-se a falar ao “senhor bispo”, tudo marchetado do “Protonotário Santiago”."


Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro 1839-1908)
Dom Casmurro, Abril Cultural, 1978

março 06, 2015

[#7] Estou a escrever-te de um país distante


©Jean Gaumy.The Natural History Museum
 "Há leões, diz-lhe ela ainda, que nunca abandonam a aldeia e andam a passear sem nenhum pejo. Não apareça quem repare neles, e procedem connosco de igual forma.
     Mas vejam uma rapariga correr-lhes à frente, e nada fazem que desculpe a sua emoção. Qual quê! Vão logo comê-la.
     Por isto não param de passear na aldeia onde nada têm que fazer; sim, que bocejar podiam bocejar tão bem em qualquer outro lado, não é evidente?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)
"A memória
     O senhor Henri estava sentado no banco de jardim a pensar se o seu corpo se levantaria para ir beber um copo de absinto.
    O senhor Henri disse: a minha alma já se levantou.
    O senhor Henri olhou depois para o corpo, tentando localizar o próprio rosto, mas não conseguiu.
     ... há partes do meu corpo que só posso ver com os meus olhos, e há outras que só posso ver com a memória.
     ... é como se a memória tivesse olhos, e mais antigos que os outros dois.
     O senhor Henri depois calou-se.
     E o senhor Henri, depois de um breve silêncio, disse: o certo é que a minha vontade já bebeu um copo de absinto, e eu não.
     ... a minha vontade já se encontra, neste momento, mais bêbada que eu.
     …vou, pois, apanhá-la - disse o senhor Henri." 

Gonçalo M. Tavares, O Senhor Henri, Caminho, 2003

março 05, 2015

Alexandre Farto (Vhils), Alfama, maio de 2012,

PLAY Einstürzende Neubauten - Kollaps

Caderno Azul N.º 10
     Era uma vez um homem ruivo, sem olhos nem orelhas. Também não tinha cabelos, e só por convenção lhe chamávamos ruivo.
     Não podia falar porque não tinha boca. E nariz também não.
     Nem sequer tinha braços e pernas. Também não tinha barriga, nem coluna vertebral, nem mesmo entranhas. Não tinha coisa nenhuma! Por isso pergunto de quem estamos nós a falar.
     Dessa forma é preferível nada acrescentarmos a seu respeito.

Daniil Harms, Crónicas da Razão Louca, Hiena, 1994

março 04, 2015

Henri Michaux

©Henri Cartier-Bresson FRANCE. Paris. 6th arrondissement. Rue Visconti. 1954.
Poet, writer and painter Henri MICHAUX (center) exposes his drawings in the Drouin gallery.
Wearing a hat- Henri PARISOT, translator and bookseller
"Henri Michaux (França, 1899-1984)

     Era um homem que tinha um apetite de vencedor mas um número de moedas de vencido. Em frente ao restaurante caro sacou da imaginação e contou uma história ao empregado que lhe havia apresentado a conta obtusa. Era uma vez um homem que contava histórias para não pagar a conta de um restaurante rico, e o empregado encantado com a história deixou-o sair sem pagar. Era esta a história. Henri olhou para o empregado para verificar se ele tinha gostado, e mais do isso, compreendido. O empregado disse: em dólares, por favor."

Gonçalo M. Tavares, Biblioteca, Campo das Letras, 2006

[#6] Estou a escrever-te de um país distante

©Josef Koudelka. ITALY. 2006
     "Aqui vivemos todas de nó na garganta. Sabes tu que, apesar de muito jovem, ainda fui mais jovem noutros tempos, e dá-se o mesmo com as minhas companheiras. O que quer isto dizer? Qualquer coisa encobrirá, com certeza horrível.
     E no tempo, como te disse, em que ainda éramos mais jovens, sentíamos medo. Houve quem se aproveitasse da nossa confusão. E nos dissesse: "Pronto, vamos enterrar-vos. Chegou o momento". Pensávamos, de facto, que nessa mesma noite podiam enterrar-nos, se fosse chegado o momento de fazê-lo.
     E não se ousava correr muito: ofegantes, no final de uma carreira, chegarmos ao pé da cova já aberta e nem tempo sobrar para uma palavra, sem nenhum fôlego.
     Diz-me: que segredo existe, na verdade, a tal respeito?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

março 01, 2015

[#5] Estou a escrever-te de um país distante


©Stuart Franklin USA. Yellowstone. 1999. 
Lodgepole pines after the 1988 fires.
 "Estou a escrever-te do fim do mundo. Tens de sabê-lo. É vulgar as árvores estremecerem. Apanham-se as folhas. Com tantas nervuras que nem se imagina. Mas para quê? Já não têm nada a ver com a sua árvore, e por isso dispersamos, contrariadas.
     A vida na terra não poderia prosseguir sem vento? Ou tem tudo sempre, sempre que tremer?
     Também há movimentos subterrâneos, e em casa é como se viessem cóleras ter connosco, como se austeros seres viessem arrancar-nos confissões.
     Nada vemos, do que importa tão pouco ver-se. Nada, e no entanto trememos. Porquê?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

fevereiro 28, 2015

©Elliott Erwitt

Saíam olhos pela boca e ouvidos pelas mãos. Quando falava, via o mundo acontecer-lhe. Em cada palmo era o som das esferas que tacteava. O mundo, esse mistério impróprio para consumo, absorvia-o pelos sentidos. Mas era vê-lo, ao mundo, em cada movimento seu. Como se o dia rompesse na aurora da roda dos seus passos e os anos passassem, de solstício em equinócio, na translação dos seus sentidos. Vê-lo mover-se não era diferente de entender o sentido universal dos movimentos gerais e particulares.

Os sorrisos eram, no entanto, desorganizados, anacrónicos e etéreos, aconteciam reproduzindo um sem-dono ou, simplesmente, um roubo. Os sorrisos denunciavam auroras passadas, recordações quiméricas do Dia da Inocência- mas nunca desistia deles, ou eles dele- porque os sorrisos eram uma espécie de casa-abrigo em órbita.

A sua ética substantiva subjugava-se a adjectivos com diploma de máxima qualificação. Ou seja, não podia dizer-se que devia amor ao mundo, ou compaixão, ou força centrípeta de qualquer satélite celular. A sua ordem era a do mundo e a da sombra do mundo, autenticada em cada movimento seu, (de)composto em tangentes de importância jugular.

Um dia o mundo quis ser solísticio e ele passou a existir na sombra de um amanhecer. Foi o dia em que se fez maior.
     
 PLAY Jorge Lima Barreto Solstice II


[#4] Estou a escrever-te de um país distante

 ©Josef Koudelka. ITALY. 2005


    "Ainda te acrescento uma palavra, ou melhor, pergunta.
     No teu país a água também corre? (não me lembra se o disseste alguma vez), e se é mesmo água, também arrepia.
     E eu? Gosto dela? Não sei. Mergulhadas sentimo-nos tão sós, quando está fria. Mas é outro o caso se está quente. E então? O que decidir? O que decidem aí, diz-me lá tu, se falam dela despidos de artifícios, de coração na boca?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)
     "A primeira coisa é percorrer o seu domínio.
     Pôr-lhe a seguir um tapume, pois limitado que esteja por outras circunstâncias exteriores, numa tal limitação que não quisermos ter um papel qualquer.
     O homem tenta querer o que não quis.
     Dá-se-lhe uma prisão e dirá: Meto-me nela.
     E de lá não saímos mais do que da masmorra sai quem lhe contou as pedras- ou do que frases escritas em paredes fazem cair essas paredes."

Alguns pensamentos do Senhor Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985
"O interior das coisas
     Durante alguns anos o senhor Valéry ganhou a vida como vendedor do interior das coisas.
     O senhor Valery não vendia os objectos propriamente ditos, mas apenas o seu interior. O comprador levava um prato, por exemplo, mas na verdade só era proprietário do interior desse prato.
     O senhor Valéry explicava:
     - Isto, por exemplo, é um prato. E desenhava
    E o que eu vendo é o interior do prato. E desenhava
     Nessa altura as pessoas diziam:
     -Mas isso que desenhou é o exterior do prato!
     -Sim- respondia o senhor Valéry- mas o que eu vendo não é o que se vê, é o interior.
     -Eu sei que é mais fácil perceber o que é o interior num objecto oco- costumava dizer o senhor Valéry- mas por favor façam um esforço.

    Os problemas, no entanto, começavam quando o proprietário do interior de uma coisa se cruzava com o proprietário do exterior dessa mesma coisa.
     Aí a discussão era grande.
     Na verdade, nunca os dois compradores poderiam ficar contentes, excepto se vivessem na mesma casa. Porém, coincidências como esta não sucedem muitas vezes na vida. Daí o negócio do senhor Valéry não ter resultado.
     Acusaram-nos de aldrabice, mas o senhor Valéry era apenas alguém que pensa muito."

Gonçalo M. Tavares, O senhor Valéry e a lógica, Caminho, 2002

fevereiro 27, 2015

©Richard Avedon
Samuel Beckett em Paris (13 de Abril de 1979) 
PLAY Laurie Anderson From the Air

CAINDO
1
porque não apenas o renunciado
ensejo de
derramar palavras

Não é melhor abortar do que ser estéril?

quando te vais as horas são de chumbo
começam a arrastar-se cedo em demasia
fateixas que cegamente dilaceram o leito do anseio
trazendo à luz os ossos os amores antigos
órbitas outrora habitadas por olhos como os teus
e sempre será melhor demasiado cedo do que nunca
o negro anseio a esparrinhar o rosto
repetindo nunca o amado flutuou nove dias
nem nove meses
nem nove vidas

2
repetindo
se não me ensinares não aprenderei
repetindo há uma vez derradeira
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes para implorar
últimas vezes para amar
para saber não saber fingir
um fim até para as últimas vezes de dizer 
se não me amas não serei amado
se eu não te amar então não amarei

o revolver de palavras caducas no coração
amor amor amor baque do velho êmbolo
pisando o inalterável
coalho das palavras

o terror renovado 
de não amar
de amar e não seres tu
de ser amado sem ser por ti
de saber ignorar fingir
fingir

eu e todos os mais que te amarão
se te amarem

3
a não ser que te amem

Samuel Beckett Poemas Escolhidos- Cadernos de Poesia 10
Publicações Dom Quixote, 1970
Ácidos e óxidos 

É uma coisa estranha este Verão 
E no entanto ia jurar que estive aqui 
Não me dói nada, não. A tia como está? 
Claro que vale a pena, por que não? 
Sim, sou eu, devo sem dúvida ser eu 
Podem contar comigo, eu tenho uma doutrina 
Não é bonito o mar, as ondas, tudo isto? 
Até já soube formas de o dizer de outra maneira 
Há coisas importantes, umas mais que as outras 
Basta limpar os pés alheios à entrada 
e só mandarmos nós neste templo de nada 
E o orgulho é a nossa verdadeira casa 
Nesta altura do ano quando o vento sopra 
sobre os nossos dias, sabes quem gostava de ser? 
Não, cargos ou honras, não. Um simples gato ao sol, 
talvez uma maneira ou um sentido para as coisas 

Ó dias encobertos de verão no meu país perdido 
mais certos do que o sol consumido nos charcos no Inverno, 
estas ou outras formas de morrermos dia a dia 
como quem cumpre escrupulosamente o seu dia de trabalho 
Não eras tu, nem isto, nem aqui. Mas está bem, 
estou pelos ajustes porque sei que não há mais 
Pode ser que me engane, pode ser que seja eu 
e no entanto estou de pé, rebolo-me no sol, 
sou filho desta terra e vou fazendo anos 
pois não se pode estar sem fazer nada 

Curriculum atestado testemunho opinião... 
que importa, se o Verão mesmo é uma certa estação? 
Escolhe inscreve-te pertence, não concordas 
que há cores mais bonitas do que outras? 
Sou homem de palavra e hei-de cumprir tudo
hão-de encontrar coerência em cada gesto meu
Ser isto e não aquilo, amar perdidamente
alguém alguma coisa as cláusulas do pacto
Isto ou aquilo, ou ele ou eu, sem mais hesitações
Estar aqui no verão não é tomar uma atitude?
A mínima palavra não será como prestar
em certo tipo de papel qualquer declaração?
Há fórmulas, bem sei, e é preciso respeitá-las
como o gato que cumpre o seu devido sol
São horas, vamos lá, sorri, já as primeiras chuvas
levam ou lavam corpos caras
Sabemos que podemos bem contar contigo em tudo
Amanhã, neste lugar, sob este sol
e de aqui a um ano? Combinado
Não achas que a esplanada é uma pequena pátria
a que somos fiéis? Sentamo-nos aqui como quem nasce

Será verdade que não tens ninguém?
Onde é o teu refúgio, o sítio de silêncio 
e sofrimento indivisível? É necessário
Vais assim. Falam de ti e ficas nas palavras
fixo, imóvel, dito para sempre, reduzido 
a um número. Curriculum cadastro vizinhança
Acreditas no verão? Terás licença? Diz-me:
seria isto, nada mais que isto?
Tens um nome, bem sei. Se é ele que te reduz,
aí é o inferno e não achas saída
Precário, provisório é o teu nome
Lobos de sono atrás de ti nesses dez anos
que nunca conseguiste e muito menos hoje
Espingardas e uivos e regressos, um regaço
redondo - o único verdadeiro espaço, o
sabor de não estar só, natal antigo,
o sol de inverno sobre as águas, tudo novo,
a inspecção minuciosa de paúis, de cômoros, marachas
Viste noites e dias, estações, partidas
E tão terrível tudo, porque tudo
trazia no princípio o fim de tudo
A morte é a promessa: estar todo num lugar,
permanecer na transparência rápida do ser
E perguntar será para ti responder

Simples questão de tempo és e a certas circunstâncias de lugar
circunscreves o corpo. Sentas-te, levantas-te
e o sol bate por vezes nessa fronte aonde o pensamento
- que ao dominar-te deixa que domines - mora
Estás e nunca estás e o vento vem e vergas
e há também a chuva e por vezes molhas-te,
aceitas servidões quotidianas, vais de aqui para ali,
animas-te, esmoreces, há os outros, morres
Mas quando foi? Aonde te doía? Dividias-te
entre o fim do Verão e a renda da casa
Que fica dos teus passos dados e perdidos?
Horário de trabalho, uma família, o telefone, a carta,
o riso que resulta de seres vítima de olhares
Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto?
E assim e assado sofro tanto tempo gasto

Ruy Belo (27 de Fevereiro de 1933- 8 de Agosto de 1978)

Ruy Belo  Boca bilingue 
in Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora, 2009

[#3] Estou a escrever-te de um país distante

©Josef Koudelka. CZECHOSLOVAKIA. 1962
     "Temos aqui uma aurora parda, diz-lhe ela ainda. Mas nem sempre foi assim. Não sabemos quem culpar.
     De noite o gado dá mugidos fortes, que ao terminarem se arrastam por um som de flauta. Sentimos pena, mas que fazer?
     A toda a nossa volta há um cheiro a eucalipto: benesse, calma, mas não sabe defender de tudo, ou pensas que sim, que ele sabe realmente defender de tudo?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

fevereiro 26, 2015

©Alexandre Farto (Vhils)
PLAY David Bowie Space Oddity

     "Você incomoda-me, disse eu, quando aqui está não posso estender-me. Faz assim tanta questão em estender-se?, perguntou. O nosso mal é dirigir a palavra às pessoas. Basta pôr os pés nos meus joelhos, disse ela. Não me fiz rogado. Eu sentia as suas coxas roliças debaixo das barrigas-das-pernas. Começou a fazer-me festas nos tornozelos. E se eu mandasse uma sapatada na cona, disse comigo mesmo. Falamos em entender-nos e as pessoas vêem logo um corpo deitado. Aquilo que a mim, rei sem súbditos, me interessava, aquilo que o feitio da minha carcaça só denunciava no seu mais longínquo e fútil dos reflexos, era a supinação cerebral, o adormecimento da ideia do eu e da ideia deste pequeno resíduo de ninharias que envenenam, à qual damos o nome de não-eu e, por preguiça, até chamamos mundo. Mas ele, o homem moderno, ainda tem tesão aos vinte e cinco anos, de vez em quando mesmo física, é a cruz de cada um de nós, eu próprio me sujeitava a ela, se àquilo podemos chamar tesão. Como é natural ela notou, as mulheres farejam um falo no ar a mais de dez quilómetros e a si próprias perguntam Como é que o fulano conseguiu localizar-me? Nessas condições deixamos de ser nós mesmos, e é doloroso quando já não somos nós mesmos, apesar do que se diz ainda mais doloroso do que nas alturas em que o somos. Porque quando o somos, sabemos o que fazer para passarmos a sê-lo menos, ao passo que nas alturas em que já o não somos, somos outro qualquer, não há meio de nos apagarmos. O que se chama amor é exílio, de vez em quando com um postal ilustrado lá do sítio, esta noite deu-me para pensar assim. Quando ela acabou e o meu verdadeiro eu, o que está domado, se reconstituiu com ajuda de uma inconsciência rápida, dei comigo sozinho. Pergunto a mim próprio se tudo isto não passa de invenção, se as coisas não se passaram, de facto, de uma forma completamente diferente, de acordo com um esquema que tive de esquecer."

Samuel Beckett, Primeiro Amor, Hiena Editora, 1994 

[#2] Estou a escrever-te de um país distante

©Josef Koudelka.USA. California. 2000.
Death Valley National Park
     "Ao andarmos pelo campo, confia-lhe ela ainda, pode acontecer que se encontrem formidáveis massas no caminho. São montanhas e cedo ou tarde é preciso cair de joelhos. De nada vale resistir, não se poderia avançar mais, mesmo decididas a magoar-nos.
     Não digo para ferir. Na verdade, quisesse eu ferir e outras coisas podia dizer."

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

fevereiro 25, 2015

© Josef Koudelka. ROMANIA. A country cemetery. 1994

"Nunca me decepcionaram, as inscrições, há sempre três ou quatro tão engraçadas que tenho de me agarrar à cruz, ou à estela, ou ao anjo, para não cair. Compus a minha há muito tempo e continuo a estar contente, bastante contente com ela. Os meus outros escritos aborrecem-me, mal tiveram tempo de secar, mas o meu epitáfio continua a agradar-me.  Exemplifica um problema de gramática. Por má sorte, poucas probabilidades terá de algum dia subir mais alto do que o crânio que o concebeu, a não ser que o Estado se encarregue disso. Mas para me exumarem terei de ser encontrado, e muito receio que o Estado sinta tanta dificuldade em encontrar-me morto como vivo. Por isso me apresso a consigná-lo, antes que seja demasiado tarde:

Aqui jaz quem já fugia tanto
Como agora de jazer foge entretanto"

Samuel Beckett, Primeiro Amor, Hiena Editora, 1994 

[#1] Estou a escrever-te de um país distante

©Henri Cartier-Bresson.INDIA. Kashmir. Srinagar. 1948.
Muslim women on the slopes of Hari Parbal Hill, praying toward the sun rising behind the Himalayas
   
  "Só temos aqui, diz ela, um sol por mês, e por pouco tempo. Dias antes já se esfregam os olhos. Mas em vão. Tempo inexorável. Só quando lhe dá o sol aparece.
     Depois tem-se um mundo de coisas a fazer, enquanto há claridade, e de tal forma que sobra pouco tempo para se reparar em nós.
     O que nos contraria é ter de trabalhar à noite, e trabalhamos: há sempre anões a nascer".

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)
  ©Larry Towell -San Salvador. 1986. 

PLAY Portishead Roads
E depois não nascemos somente se paridos e envoltos em matéria uterina. Mas tantas vezes nascemos sem termos lugar para ser. Acreditamos, por vezes até à morte, que existem ondes a que achamos pertencer, os mesmos que não sabemos como fazer nossos. Por isso somos tão sem lugar. Somos assim, pontes entre nenhures. Talvez por isso nos habituemos a dores de ausência de lugar- aquelas que já não doem de tanto doer.