março 14, 2016

[#7] palimpsesto

- Utopia.
- Disseste alguma coisa?
- O que é utopia?
- Vai ao dicionário ou pergunta ao More.
- A sério, o que é utopia?
- Eu sei que é a sério. Nunca te vi a brincar.
- Então, diz lá.
- Lá, si, dó.
- Falaste em utopia - explica.
- Utopia é amares uma ideia.
- Amaste uma ideia?
- Não percebo o teu espanto: é mais fácil amar uma ideia do que uma pessoa.
- Não sei se concordo.
- Quero lá saber se concordas! Uma ideia é uma formulação sobre a realidade. A realidade, o concreto, é o que é.
- Amar-te como a ti mesma?
- Levo muito a sério a dica de amar o próximo- sou o mais próximo de mim que consigo arranjar.
- Isso não é um tédio?
- Não, se a utopia alimentar o que em ti desconheces. É isso que te faz amá-la.
- Deve ter sido a definição de amor mais egoísta que alguma vez ouvi.
- E, no entanto, deve ter sido a mais realista que conheceste.
- Realista? Amar uma utopia?

Ambos bebemos do riso.

- Usaste o verbo no passado, no outro dia.
- Não ligo nada a tempos verbais. Tudo o que existe é presente.
- P r e s e n t e- o que vem depois do passado e antes do futuro.
- Não, o concreto é presente. E não acho que exista uma relação de ordem no tempo tão definida como me querem fazer acreditar.
- Então, andamos todos enganados?
- Não quero saber o que os outros acham. Digo-te que só é possível viver no presente e que passado e futuro são sinónimos no meu dicionário.
- Como se o sentido não importasse!
- O sentido, como o tempo,  é uma invenção, interessa aos Números Reais e pouco mais. Além disso, gosto mais de Números Complexos,  descrevem melhor a realidade. Por isso não têm relação de ordem.
- Detesto quando falas coisas que eu não alcanço.
- Só disse que os Números Complexos são mais reais dos que os Reais porque, além dos Reais, englobam neles os Números Imaginários. Para captarmos, com um mínimo de rigor, a complexidade da realidade precisamos de muitas ferramentas imaginárias.
- Já estás a divagar.
- Nem pensar. Raciocínio dedutivo no seu melhor!
- Pensa comigo: andar para trás é passado e andar para a frente é futuro. É simples, tens de concordar!
- Andar para trás ou para a frente é não estar parado e só isso interessa.
- Então, presente é estar parado?
- Sim. O presente é a velocidade instantânea, e o futuro e passado a velocidade média, uma aproximação ilusória.
- Por isso é que o presente é uma utopia?
- Sim.  Quando o tempo pára, quando nada mais existe, é quando nós podemos e sabemos amar.
- Então, só é possível amar uma realidade paralela?
- Não. Só é possível amar uma utopia. Somos demasiado fracos para amar o que nos incomoda. E a realidade incomoda-nos.
- Então, preferes amar um imaginário belo?
- Não é por ser belo. É por ser único. Amei, amo e amarei um presente único que se prolonga, que se estende sem sentido - tão cheio de belo como de horrível. Onde um incómodo é pretexto de entrega. E não é de todo imaginário, ainda que viva numa ideia.
- Uma utopia, portanto.
- Sim, uma concreta e absurda utopia.