|Assim repito o nome e sinto ainda o incêndio no rosto :|| paul celan |Porque é com nomes que alguém sabe | onde estar um corpo| por uma ideia, onde um pensamento | faz a vez da língua.| herberto helder
julho 26, 2016
julho 25, 2016
----PELO TRILHO ENSOPADO DE CHUVA
o pequeno sermão ilusório do silêncio.
É como se pudesses ouvir,
como se eu ainda te amasse.
---- AUF ÜBERREGNETER FÄHRTE
die kleine Gauklerpredigt der Stille.
Es ist, als könntest du hören,
als liebt ich dich noch
O indizível passa, sussurado, sobre esta terra:
é já meio-dia.
--------FRÜHER MITTAG
(...)
Das Unsägliche geht, leise gesagt, übers Land:
o pequeno sermão ilusório do silêncio.
É como se pudesses ouvir,
como se eu ainda te amasse.
---- AUF ÜBERREGNETER FÄHRTE
die kleine Gauklerpredigt der Stille.
Es ist, als könntest du hören,
als liebt ich dich noch
Paul Celan (1955) | Sete Rosas Mais Tarde | Cotovia | 1996
--------MEIO-DIA, CEDO
(...)O indizível passa, sussurado, sobre esta terra:
é já meio-dia.
--------FRÜHER MITTAG
(...)
Das Unsägliche geht, leise gesagt, übers Land:
schon is Mittag
Ingeborg Bachmann (1953) | O tempo aprazado | Assírio&Alvim | 1992
julho 22, 2016
![]() |
©André Kertész (1894-1985) |
---------------------------------------PRAIA BRETÃ
Reunido está o que vimos,
para despedida de ti e de mim:
o mar, que nos lançava noites por terra,
a areia, que as atravessou connosco,
a urze vermelho-ferrugem além
onde o mundo nos aconteceu.
BRETONISCHER STRAND
Versammelt ist, was wir sahen,
zum Abschied von dir und vom mir:
das Meer, das uns Nächte an Land warf,
der Sand, der sie mit uns durchflogen,
das rostrote Heidekraut droben,
darin die Welt uns geschah.
Paul Celan (1955) | Sete Rosas Mais Tarde | Cotovia | 1996
--------------------------------------UMA ESPÉCIE DE PERDA
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lencóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissémos. Fizémos. E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
Não te perdi a ti,
perdi o mundo.
EINE ART VERLUST
Gemeinsam benutzt: Jahreszeiten, Bücher und eine Musik.
Die Schlüssel, die Teeschalen, den Brotkorb, Leintücher und ein Bett.
Eine Aussteuer von Worten, von Gesten, mitgebracht, verwendet, verbraucht.
Eine Hausordnung beachtet. Gesagt. Getan. Und immer die Hand gereicht.
In Winter, in ein Wiener Septett und in Sommer habe ich mich verliebt.
In Landkarten, in ein Bergnest, in einen Strand und ein Bett.
Einen Kult getrieben mit Daten, Versprechen für undkündbar erklärt,
angehimmelt ein Etwas und fromm gewesen vor einem Nichts,
(- der gefalteten Zeitung, der kalten Asche, dem Zettel mit einer Notiz)
furchtlos in der Religion, denn die Kirche war dieses Bett.
Aus dem Seeblick hervor ging meine unerschöpfliche Malerei.
Vom dem Balkon herab waren die Völker, meine Nachbarn, zu grüßen.
Am Kaminfeuer, in der Sicherheit, hatte mein Haar seine äußerste Farbe.
Das Klingeln an der Tür war de Alarm für meine Freude.
Nicht dich habe ich verloren,
sondern die Welt.
EINE ART VERLUST
Gemeinsam benutzt: Jahreszeiten, Bücher und eine Musik.
Die Schlüssel, die Teeschalen, den Brotkorb, Leintücher und ein Bett.
Eine Aussteuer von Worten, von Gesten, mitgebracht, verwendet, verbraucht.
Eine Hausordnung beachtet. Gesagt. Getan. Und immer die Hand gereicht.
In Winter, in ein Wiener Septett und in Sommer habe ich mich verliebt.
In Landkarten, in ein Bergnest, in einen Strand und ein Bett.
Einen Kult getrieben mit Daten, Versprechen für undkündbar erklärt,
angehimmelt ein Etwas und fromm gewesen vor einem Nichts,
(- der gefalteten Zeitung, der kalten Asche, dem Zettel mit einer Notiz)
furchtlos in der Religion, denn die Kirche war dieses Bett.
Aus dem Seeblick hervor ging meine unerschöpfliche Malerei.
Vom dem Balkon herab waren die Völker, meine Nachbarn, zu grüßen.
Am Kaminfeuer, in der Sicherheit, hatte mein Haar seine äußerste Farbe.
Das Klingeln an der Tür war de Alarm für meine Freude.
Nicht dich habe ich verloren,
sondern die Welt.
Ingeborg Bachmann (1953) | O tempo aprazado | Assírio&Alvim | 1992
julho 21, 2016
julho 20, 2016
[#1] "furibunda melancolia" | "ironia furibunda"
![]() |
fotograma de "Nostalgia" | Andrei Tarkovsky (1983) |
"Uma gota, mais uma gota fazem uma grande gota, não duas gotas." ("Nostalgia")
------------------------------------------------------------------- 4.
Coloca uma palavra
no vale da minha mudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra.
In die Mulde meiner Stummheit
leg ein Wort
und zieh Wälder groß zu beiden Seiten,
daß mein Mund
ganz im Schatten liegt.
Ingeborg Bachmann (1953) | O tempo aprazado | Assírio&Alvim | 1992
-------------------------------------------------AQUELE QUE NOS CONTAVA AS HORAS
Aquele que nos contava as horascontinua a contar.
Que estará ele a contar, diz?
Conta e torna a contar.
Não faz mais frio,
nem mais noite,
nem mais húmido.
Só aquilo que nos ajudava a escutar
agora escuta
para si sozinho
DER UNS DIE STUNDEN ZÄHLTE
Der uns die Stunden zählen, sag?
Er zählt und zählt.
Nicht hühler wirds,
nicht nächtiger,
nicht feutchter.
Nur was uns lauschen half:
es lauscht nun
für sich allein
Paul Celan (1955) | Sete Rosas Mais Tarde | Cotovia | 1996
31.10.1951, Paris
Meine liebe Inge,
dieses Leben scheint nun einmal aus Versaumnissen gemacht, und man tut vielleicht besser daran, nicht allzu lange an diesen herum- zuraetseln, sonst will kein Wort von der Stelle.
(...)
Lass mich alles wissen, was mitteilbar ist, und darueber hinaus vielleicht manchmal eines von den leiseren Worten, die sich einfinden, wenn man allein ist und nur in die Ferne sprechen kann. Ich tue dann dasselbe.
Das Lichtest dieser Stunde!
Paul
Ingeborg Bachmann & Paul Celan | Herzzeit: Briefwechsel | 2015 | 4. Ed | Suhrkamp
julho 13, 2016
julho 11, 2016
julho 08, 2016
julho 05, 2016
"viver por conta própria e a sonhar por conta de alguém"
"(...) cor de minério púrpura, polidos em barros, saibos, humidade, por milénios de paciência geológica.
Assisto (assistimos os dois) em silêncio à ressurreição das florestas, também silenciosa. Ralanti desfocado (imagem por imagem) e contudo nítido no conjunto. Examino a ideia (é-me imposta de fora: não fui eu a elaborá-la) duma catástrofe serena, planeada, às avessas, e isso assusta-me ainda mais. Exacerbando sentimentos comuns (espanto, medo), mas inserindo-se numa experiência nova (signos doutra lógica e doutra realidade), a ideia insinua que estou a viver por conta própria e a sonhar por conta de alguém."
Carlos de Oliveira (1978) | Finisterra | 1979 | Sá da Costa
II
Desloca-a o frémito
do fogo: lava
explodindo lentamente;
afastando as águas
marginais; endurecendo-as
na raiz dos álamos;
enquanto ganha
fluidez: transmutação?
paciência geológica?
fábula da terra com os seus módulos
minerais? e líquida; liberta
irrompe, deixa
sobre os flancos
uma espuma de chão.
Carlos de Oliveira (1921 - 1981)| Cristal em Sória in Trabalho Poético, 2003, Assírio&Alvim
VI
O pássaro; a sua anatomia
rápida: forma cheia de pressa,
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,
sem o ferir;
modelo doutros voos: nuvens;
e vento leve, folhas;
agora, atónito, abre as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum rumor e sumir-se.
Carlos de Oliveira (1921 - 1981)| Cristal em Sória in Trabalho Poético, 2003, Assírio&Alvim
"As trovoadas não param. Raios que matam gente e gado, incendeiam casa, fendem pinhais inteiros. O inferno a mudar-se, com armas e bagagens. É o que dizem nas igrejas.
O riso franze-lhe o canto dos olhos.
Aí tens a intuição. Aceita-a sem reservas.
Mesmo que lamente o êxodo (e desconfio), dunas sobre dunas, a perder de vista, não lhe desagrada ver sua febre confirmada nos peregrinos, ter alguma razão.
E as mulheres? Ficaram a cuidar do inferno?
Não blasfemes. Partiram para sul, de filhos agarrados às saias. Têm santos a dois passos da porta. Nós escolhemos o norte, por ser mais longe.
Pedem o quê?
Clemência e chuva. Trazemos gado como oferenda.
Ad petendam pluviam, claro.
Um silêncio breve (a vibração da sala desaparece). Quando recomeçam, as vozes soam com rudeza.
Fogo de sol a sol, relampejando nas enxadas que remédio. Na areia germina pouco pão e as regas, além da chuva, precisam de suor. Mas os lugares malignos em nossa casa, não os merecemos. Tanto sítio para pôr o inferno, e logo nos calhou a nós."
(...)
"Vamos ao trabalho. Tragam-me um cordeiro, faz favor. E não se esqueçam: tosquiado.
O amigo da família dirige-se à orla da floresta. Comprar um cordeiro aos peregrinos: fácil, à primeira vista; à segunda, nem tanto: existe um problema religioso importante.
O gado já pertence aos santos e arriscar a alma, arriscamos, se valer a pena. Por trinta dinheiros, só quem nós sabemos.
Quando fecha o negócio (tosquia incluída, de má vontade), não bate a cabeça contra as árvores, por vergonha: na feira, o mesmo dinheiro (e metade do esforço) davam sem exagero para um rebanho.
Regressa, com o cordeiro ao colo (a criança continua a espreitar): cambaleia, sobre a álea aos ziguezagues; sapatos de calfe esfolados, meias de lã enroladas sobre os sapatos (Que largam um rasto de suor, uma baba de caracol). Nos últimos passos, levanta os joelhos à altura do queixo: única forma de aguentar o peso do cordeiro. Chegam, enovelados um ao outro. O amigo da família mal pode respirar.
Aqui o tem. E não me agradeça (não é possível)."
Carlos de Oliveira (1978) | Finisterra | 1979 | Sá da Costa
julho 04, 2016
LÍQUENES
I
Algures,
no lugar
mais frio
da memória,
mas nítido
como um centímetro
quadrado de neve
que pede
a própria luz
à algidez interior,
surge
a paisagem
de líquenes,
(...)
VI
assim
se cumpre
o eclipse
gradual
sobre o centímetro
quadrado que
os líquenes
cobrem
na memória,
assim
a luz e a neve
se ocultam
pouco a pouco, assim
se esquece.
I
Algures,
no lugar
mais frio
da memória,
mas nítido
como um centímetro
quadrado de neve
que pede
a própria luz
à algidez interior,
surge
a paisagem
de líquenes,
(...)
VI
assim
se cumpre
o eclipse
gradual
sobre o centímetro
quadrado que
os líquenes
cobrem
na memória,
assim
a luz e a neve
se ocultam
pouco a pouco, assim
se esquece.
Carlos de Oliveira (1921 - 1981)| Trabalho Poético, 2003, Assírio&Alvim
julho 01, 2016
PUMBA!
PLAY Savages | Shut up
"- Para o entenderes tens primeiro de saber o que é aquilo a que se chama normalidade, criatura minha irmã - explicou Ulrich, tentando travar com o gracejo as ideias galopantes. - O normal é uma manada não significar para nós mais do que carne de vaca a pastar. Ou então é um cenário idílico digno de ser pintado. Ou nem sequer reparamos nela. Vacas nos caminhos de montanha fazem parte dos caminhos de montanha, e só saberíamos verdadeiramente o que sentimos ao vê-los se, em seu lugar, ali estivesse um relógio eléctrico ou um prédio de rendimento. Geralmente pensamos: ficamos ou levantamo-nos? Queixamo-nos das moscas que zunem em volta da manada; tentamos perceber se há um touro no meio dela; perguntamo-nos se o caminho continua ou se acaba ali. Um sem-número de pequenos propósitos, preocupações, cálculos e percepções que, todos juntos, formam o papel sobre o qual se pinta a imagem de uma manada. Nada sabemos do papel, apenas vemos a manada em cima dele...
- E de repente o papel rasga-se! - exclama Agathe.
- É isso mesmo. Quer dizer: rasga-se uma qualquer trama de convenções que trazemos em nós. E subitamente o que ali anda a pastar deixa de ser alimento, motivo pictórico, nada me barra o caminho. Já nem sequer és capaz de formar as palavras ‹‹pastar›› ou ‹‹erva››, porque as associas a uma série de ideias úteis e pragmáticas que de um momento para o outro perdeste. Aquilo que fica à superfície do quadro poderia quando muito descrever-se como um ondular de sensações que sobem e descem ou respiram e cintilam como se preenchessem, sem contornos precisos, todo o campo de visão. É claro que o quadro contém muitas percepções isoladas, cores, chifres, movimentos, cheiros e tudo o que faz parte da realidade: mas isso deixa de ser reconhecido, apesar de darmos por essas coisas. O que quero dizer é que os pormenores estão despossuídos do egoísmo por meio do qual chamam a nossa atenção: passaram a estar ligados uns aos outros fraternalmente, literalmente de forma ‹‹‹íntima››. E evidentemente, nesta altura já não existe qualquer ‹‹superfície do quadro››, porque de algum modo todas as coisas extravasaram os seus limites e se passaram para dentro de nós.
E Agathe prosseguiu com a descrição:
-Agora só precisas de substituir o egoísmo dos pormenores pelo egoísmo do ser humano - exclamou -, para chegares àquilo que é tão difícil de exprimir: ‹‹Ama o próximo!›› não significa ama-o tal como és, mas define uma espécie de estado onírico!
-Todos os postulados da moral - confirmou Ulrich - definem uma espécie de estado onírico que já estão para lá das regras com que os formulamos!
- Sendo assim, não existe bem e mal, mas apenas a fé e... dúvida!- exclamou Agathe, que sentia agora como muito próximo, com toda a sua autonomia, e igualmente a sua perda, o estado de fé original assimilado pela moral, de que o irmão falara ao dizer que a fé não tem tempo para envelhecer.
-Pois é - concordou Ulrich -, no momento em que nos libertamos da vida não essencial, tudo entra em novas relações. Quase me apetecia dizer: tudo sai das relações. De facto, a nova relação é absolutamente desconhecida, não temos qualquer experiência dela, e todas as outras relações se apagam. Mas esta outra, apesar da obscuridade, é tão nítida que ninguém a pode negar. É intensa, mas de uma intensidade inapreensível. Poderia também dizer: geralmente olhamos para uma coisa e o olhar é como um pauzinho ou um fio esticado em que se apoiam os olhos e o objecto olhado, e há uma qualquer grande trama deste tipo que sustenta cada segundo. Mas naquela relação de tipo único há, pelo contrário, qualquer coisa de dolorosamente suave que separa as incidências do olhar.
-Não possuímos nada do que há no mundo, nada é sustentado por nós, não somos sustentados por nada - disse Agathe. "
PLAY Savages | Adore
Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. |Trad. João Barrento
PLAY Chopin & Martha Argerich | Andante Spianato & Grande Polonaise Brillante Op.22
PLAY Chopin & Martha Argerich | Andante Spianato & Grande Polonaise Brillante Op.22