Acto Segundo
[Um carro. Somos três, sem contar com o carro:
eu e a minha filha, insisto, não é um erro. Não é o carro que se move, é a cena
de um filme americano. O volante é exagerado, como nós. A música que ouvimos
também, em volume e em sentido:]
Ain't Got No / I Got Life
Ain't got no home, ain't got no
shoes, Ain't got no money, ain't got no class,
Ain't got no skirts, ain't got no
sweaters, Ain't got no perfume, ain't got no love
Ain't got no faith, Ain't got no
culture, Ain't got no mother, ain't got no father
Ain't got no brother, ain't got
no children, Ain't got no aunts, ain't got no uncles
Ain't got no love, ain't got no
mind, Ain't got no water, Ain't got no love (...)
Then what have I got Why am I
alive anyway? Yeah, hell
What have I got Nobody can take
away I got my hair, got my head
Got my brains, got my ears Got my
eyes, got my nose
Got my mouth I got my I got
myself
-
Mãe, há uma coisa errada nesta música.
-
Achas? Então?
-
Ele disse que...
-
Não é ele, é ela – corrigi- já te
disse que se chama Nina Simone.
-
Então, ela está errada.
-
Porquê?
-
Porque tu disseste que ela disse que não tem amor. E que não se importa de não
ter amor. O amor é uma coisa muito importante. Não podemos viver sem amor.
A clareza de uma criança consegue
ser desarmante. Continuei a conduzir, em silêncio. Tudo, naquele som, parecia
milimetricamente definido: a altura, a intensidade, o timbre, a duração.
- Mãe, conheço-te melhor do que o
pai.
- Mas o pai já me conhece há mais
de vinte anos!
- Sim, mas eu estive dentro da tua
barriga. Conheço-te por dentro.
Ocorreu-me, pela nongentésima vigésima primeira vez um
dos poemas mais belos que conheço:
(...) E através da
mãe o filho pensa
que nenhuma morte é
possível e as águas
estão ligadas entre
si
por meio da mão
dele que toca a cara louca
da mãe que toca a
mão pressentida do filho.
E por dentro do
amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo
ser reencontrado por dentro do amor.
-
Lembras-te de ter estado dentro da minha “barriga”?
-
Achas, mãe?
- Podias lembrar-te dos mantras que eu te cantava.
-
E a da “era uma menina muito pequenina...”, as três que me cantas todas as
noites?
-
Não, essa eu não podia ter inventado
antes de teres nascido – tu sabes que eu não quis saber se tinha uma menina ou
um menino na barriga.
-
Sou obrigada a gostar de música, não sou?
-
Gostar só depende de ti, mas ouvir sim, enquanto viveres comigo não tens
como fugir a essa realidade.
-
Eu gosto, mãe, gosto muito. Queres jogar um jogo, o "se fosses"? Começa tu.
- Se fosses uma música?
-Era a do coelhinho com a bengala. Porque como está com a bengala o professor João deixa-me tocar mais lento.
- E se fosses uma nota?
- Seria a tónica - porque seria sempre a primeira.
- Se fosses uma escala?
- Seria maior, claro, é a mais alegre.
- Se fosses uma dinâmica?
- O piano, por ser um instrumento também.
- Se fosses um compositor?
- Seria o Bach, para ser ribeiro. E tu, mãe, se fosses um instrumento?
- Seria um cordofone porque nas cordas o mais importante não é a força que usas mas o tamanho e a tensão.
- E se fosses uma coisa qualquer da música?
- Eu? Seria a melodia porque mantinha a minha identidade apesar das transformações que pudessem ocorrer.
[Vê-se o carro ao longe, ouvem-se rastos de conversa, já imperceptíveis.
Na tela projectam-se palavras:
o prelúdio é sempre breve
só quando dói é em ostinato,
sem variação ou fuga possível
**********
Escolhemos o segredo dos lamentos,
das descidas cromáticas
que adensam a beleza de tudo o que nos dói.
Inventamos escalas
que nos sustentam os sorrisos modelados,
enquanto nos distraímos em infinitos círculos.
Degrau a degrau,
corrigimos a sombra dos passos,
prevemos as quedas.
[e escolhemos cair]
[Cai o pano. É o final do acto
segundo.]