abril 06, 2015

[#1] Ainda o paradoxo

[Aparece a PALAVRA em cena. Demonstra-se confusa, em estado de desorientação. Franze o sobrolho, com cara de profunda interrogação. Estarrecida questiona-se.]

PALAVRA: Um mergulho no vazio? Precipitar-me aqui? Como, se não há a que me agarrar? Se a folha está vazia?
6
inventa-me feliz com palavras e pássaros
e a cabeça encostada na brancura
com o céu que a lua baixa sobre a terra
e um horizonte vivo de clareiras

habita-me de sons quase iguais às palavras
e de pássaros voando adormecidos
esquece o que hoje esqueces permanece
o risco da ventura

António Franco Alexandre
Visitação V in
Poemas, Assírio & Alvim, 1996
1.
Mas tu existes.
Os dias somam ruína à ruína
E o a vir multiplicará
A miséria.
Apodreço não adubando a terra
E cada dia somado a cada hora
Não completa o tempo.
Sei que existes e multiplicarás
A tua falta.
Somarei a tua ausência à minha escuta
E tu redobrarás a minha vida.

Daniel Faria,
Poesia, Quasi, 2006 

abril 04, 2015

©Josef Koudelka. CZECHOSLOVAKIA. Prague. 1965. Theatre Divadlo Za Branou (Beyond the Gate).
 "Masks from Ostend", a play written by Michel de GHELDERODE and directed by Otomar KREJCA

DA MITOLOGIA
    Primeiro era um deus da noite e da tempestade, ídolo negro e sem olhos, diante do qual saltavam nus e lambuzados de sangue. Mais tarde, nos tempos da república, eram imensos os deuses, com mulheres, filhos, camas desconjuntadas e raios que explodiam inofensivos. Por fim só os neuróticos supersticiosos carregavam no bolso pequenas estátuas de sal, representando o deus da ironia. À época não havia maior deus.
   Vieram então os bárbaros. Também eles tinham em alta estima o pequeno deus da ironia. Esmagavam-no sob os calcanhares, adicionando-o depois aos seus manjares.

Zbigniew Herbert (1924-1998)
(Trad. Rui Knopfli)
Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro, 2001, Assírio&Alvim

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska (Polónia, 1923-2012)  
"Há indivíduos que servem para a reprodução e para serem fotografados. Como certas montanhas para certos turistas, e certas espécies animais em certos cios musculados.
   Os canos da cidade são falsificados como as notas, oferecem-te água e roubam os restantes elementos. Porque não há torneiras de terra, ou ar, nem, claro, de fogo. E tal facto mostra como a cozinha do cidadão se encontra afastada da Natureza.
   Até à véspera nenhuma torneira deitara sangue."

Gonçalo M. Tavares, Biblioteca, Campo das Letras, 2006

abril 03, 2015

CANÇÃO DO SONO
Enquanto os meus olhos percorrem a pradaria
sinto o Verão na Primavera

América do Norte, Chippewas
Versão: Herberto Helder 
Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro, 2001, Assírio&Alvim
©Christopher Anderson. VENEZUELA. Caracas. 2006. Reflection in window in Altamira.   
"As minhas tias, aquelas numerosas semi-mães, que se esforçavam por me levar a reboque, mas que me amavam de verdade, tentaram por anos a fio influenciar-me para que eu estabilizasse como alguém que se visse, ou seja, como advogado ou burocrata - a minha indefinição era-lhes profundamente incómoda, não sabiam como conversar comigo, nem quem eu era e, no máximo, remoíam coisas como:
   -Józio - remoíam - Já está mais do que na hora, meu querido! O que dirão as pessoas? Se tu não queres ser médico, pelo menos sê ao menos um mulherengo ou um especialista em cavalos, mas torna-te em alguma coisa... em algo de concreto..."

"Recordações!  A maldita da humanidade reside no facto de a nossa existência neste mundo não tolerar uma hierarquia fixa e definida, visto que tudo flui e reflui em movimento permanente e que cada um de nós tem de ser percebido e avaliado pelos demais, e que a percepção que têm de nós os menos esclarecidos, os mais limitados e burros é-nos tão importante quanto a dos inteligentes, esclarecidos e subtis. Porque o homem, no fundo do seu ser, depende da imagem impressa na alma de outro homem, mesmo que a alma em questão seja a de um cretino. (...) Oh, estes julgamentos humanos, este abismo de conceitos e opiniões sobre a tua inteligência, o teu coração, o teu carácter, sobre todos os pormenores do teu organismo - que agora se expõem face àquele descarado que vestiu os seus pensamentos com letra impressa e os distribuiu aos homens em folhas de papel, oh, papel e mais papel, letras e mais letras.  (...) Na verdade, no mundo do intelecto, a violação é constante, não conseguimos fazer-nos valer por nós mesmos, mas vivemos em função dos outros, temos que ser como os outros nos vêem. (...) Ah a sensação de (...) ser ingénuo porque um ingénuo acha que sou ingénuo-, de ser estúpido porque um estúpido acha que sou estúpido-, de ser verde porque outro imaturo me mergulha e me banha no seu verdor-  ah, isto tudo poderia endoidecer-nos não fosse uma palavra - "mas" - que torna a vida tolerável!

Witold Gombrowicz,
Ferdydurke, 7Nós, 2011

©raquelsav. 2015.WARSOW. Pintura de Håkon Gullvåg
Depois do fim do mundo
depois da morte
me achei no meio da vida
criava a mim mesmo
construía a vida
gente animais paisagens

isto é uma mesa eu dizia
isto é uma mesa
sobre a mesa repousam o pão a faca
a faca serve para cortar o pão

é preciso amar o homem
eu dizia de noite e de dia
o que é preciso amar
eu respondia o homem
[...]
Tadeusz Rózewicz (Trad. Henry Siewierski)

Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro, 2001, Assírio&Alvim


abril 02, 2015

O Medidor de Passos

O Medidor de Passos. 2 Abril (Sessão Extra). Teatro Virgínia AQUI

"1. O actor e o esqueleto

   As palavras inscritas no Osso (é assim que deve ser). O músculo diz a parte interior, isto é: a alma. O músculo diz a alma das palavras, enquanto a parte menor são as letras aparecidas como a surpresa sonora da voz. Quase nada, portanto.
   Porque o músculo é mais importante; e o osso é mais importante. 
   E o texto para o actor é a bengala: a vara de madeira que suporta o coração. Enquanto o coração, esse, é a parte alta do actor; a torre de onde se pode ver Deus e os homens. (E não se deve confundir a bengala com a perna).
   Porque a palavra ajuda-nos a não cair
   e o coração ajuda-nos a subir. É diferente.
   E entre o cair e sujar-se (a terra)
   e o subir e salvar-se (o céu)
   existe o esqueleto do actor: a linguagem da morte (os ossos) tapada pelo tecido da vida: a pele.
   Porque o texto da peça foi encontrado no osso; no seu centro. E o coração do actor é sangue quase tudo, palavras e movimento (e é assim que deve ser)."


"11. Provar no vivo a existência do morto

Não basta beijar a boca, isso é fácil,
é preciso beijar os ossos,
provar que eles existem."

Gonçalo M. Tavares,
A colher de Samuel Beckett e outros texto, Campos das Letras, 2002
©Martine Franck. IRELAND. Donegal. Tory Island. 1995
PLAY PJ Harvey On Battleship Hill

como crianças de mãos dadas
bebendo votos de inocência
condenados a qualquer coisa de verdadeiro
"Vou contar uma história. Como os idiotas. Para ver se o tempo passa. Vou inventar uma história, neste momento. Temos por exemplo um homem e uma mulher. Mas isto não basta, é demasiado equilíbrio, para começar a história é necessário um desequilíbrio, senão é uma ideia e não uma história (pausa). De qualquer modo é assim: havia um homem, uma mulher e uma outra mulher. Portanto, duas mulheres e um homem. Está criado o desequilíbrio, a história está praticamente contada: um homem, duas mulheres, mas é demasiado fácil. Começar novo (pausa)."
Gonçalo M. Tavares,
A colher de Samuel Beckett e outros texto, Campos das Letras, 2002
 ©Josef Koudelka. CZECHOSLOVAKIA. Prague. 1965. Theatre Divadlo Na Zabradli (On The Balustrade).
"Waiting for Godot", a play written by Samuel BECKETT

Estragon: E, dizes tu, que tudo isso aconteceu ontem?

Vladimir: Aconteceu.

Estragon: Aqui?

Vladimir: Sim, aqui. Não reconheces o lugar?

Estragon: (numa exasperação súbita) Reconhecer? Reconhecer o quê? Tenho vivido toda a minha vida atolado no mesmo chiqueiro e vens tu agora exigir que eu distinga tonalidades na paisagem! (Olhando à volta). Olha está estrumeira! Nunca sai disto!

Vladimir: Calma! Calma! 

Estragon: Não me venhas para cá chatear com as tuas paisagens. Fala-me de esgotos!

Vladimir: Está bem, está bem, mas não me venhas dizer que isto (gesto) aqui é parecido com o Ribatejo! A diferença mete-se pelos olhos dentro.

Estragon: O Ribatejo! Quem falou aqui do Ribatejo?

Vladimir: Mas tu já estiveste no Ribatejo.

Estragon: Estás enganado. Nunca estive no Ribatejo. Tenho passado toda a porca da minha vida aqui, digo-te eu. Aqui, na Ribamerda.

Vladimir: A verdade é que estivemos os dois no Ribatejo. Punha as mãos no fogo. Andámos a vindimar para um tipo de que não me lembro o nome.

Estragon: (mais calmo)  Talvez. Não dei por nada.

Vladimir: Lá, tudo é verde.

Estragon: (exaltado) Já te disse que não reparei em nada.

                 Silêncio. Vladimir suspira fundo.

Vladimir: É difícil viver contigo, Gogo.

Estragon: Era melhor separarmo-nos.

Vladimir: Andas sempre a repetir isso. Mas acabas por voltar.

                  Silêncio.

Estragon: O melhor, de facto, seria eu matar-me, como o outro.

Vladimir: Qual outro? (pausa). Quem?

Estragon: Milhões doutros.

Vladimir: (sentencioso) Na vida, cada um tem que levar sua cruz ao calvário. (Suspira). Até morrer e ser esquecido.

Estragon: Entretanto, vamos tentar conversar sem nos irritarmos, já que não somos capazes de estar calados.

Vladimir: É verdade, somos como duas gralhas.

Estragon: É para não pensar.

Vladimir: Temos as nossas desculpas.

Estragon: É para não ouvir.

Vladimir: Temos as nossas razões.

Estragon: Todas as vozes mortas.

Vladimir: São como um sussurro de asas.

Estragon: De folhas.

Vladimir: De areia.

Estragon: De folhas.

                    Silêncio.  

Vladimir: Falam todas ao mesmo tempo.

Estragon: Cada uma para si mesma.

                  Silêncio.

Vladimir: Dir-se-ia que segredam.

Estragon: Murmuram.

Vladimir: Sussurram.

Estragon: Murmuram.

                  Silêncio.

Vladimir: Que é que elas dizem?

Estragon: Falam da vida delas.

Vladimir:  Não lhes basta terem vivido.

Estragon: Não podem fugir a falar disso.

Vladimir:  Não lhes basta estarem mortas.

Estragon: Não é suficiente.

                  Silêncio.

Vladimir:  É como um rumor de penas.

Estragon: De folhas.

Vladimir: De cinzas.

Estragon: De folhas.

                  Silêncio prolongado.

Vladimir:  Diz qualquer coisa!

Estragon: Estou a procurar.

                  Silêncio prolongado.

Vladimir:  (com angústia) Diz qualquer coisa, não importa o quê. Mas fala!

Estragon: O que vamos nós fazer, agora?

Vladimir:  Esperar por Godot!

Estragon: Ah, é verdade!

                  Silêncio.

Vladimir:  Isto é doloroso!


Samuel Beckett
À Espera de Godot, Teatro de Samuel Beckett, Editora Arcádia

abril 01, 2015

©Ferdinando Scianna. LEBANON. Beirut. Civil war. Christian militian. 1976
bem bem existe um país
em que o esquecimento em que pesa o esquecimento
lentamente nos mundos inominados
aí a cabeça aquietamo-la a cabeça está calada
e sabemos não nada sabemos
o canto das bocas mortas morre
no areal fez a viagem
não há nada para chorar

a minha solidão conheço-a vamos lá conheço-a mal
tenho tempo vou achando que tenho tempo de vida
mas que tempo osso faminto a vida do cão
do céu que assola incessante o meu vão de céu
do raio que trepa ocelado fremente
dos mícrons dos anos trevas

querem que vá de A para B não posso
não posso sair estou numa terra sem rastos
sim sim é uma coisa bonita que aí tem uma coisa bem bonita
o que é não me façam mais perguntas
espiral poeira de instantes o que é isso o mesmo
a calma o amor o ódio a calma a calma

Samuel Beckett (Trad. Filipe Jarro)
Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro, 2001, Assírio&Alvim
©Josef Koudelka. ITALY. 1982.



Rasgas as fúrias no vinco do papel.
Ruges de cor sem caninos que perfurem o grito.
Olhas sem sede ou olhos que se vejam.
Rende-te! Éum mero exercício de escrita e a minha mente está tão cansada de se escrever.
               
  ©Mark Power. POLAND. Kalwaria Zebrzydowska. Zebrzydowski Chapel. April 1990

falecemo-nos pela noite
e assim nos escapamos
a um poema de obituário 

[#12] Estou a escrever-te de um país distante

©Henri Cartier-Bresson. FRANCE. Paris. Place de l'Europe. Gare Saint Lazare. 1932

 "Neste país não se dá boa educação aos arrepios. Ignoramos as verdadeiras regras, e quando o facto acontece somos apanhadas de surpresa.
   Claro que sim, que é o Tempo. (Aí passa-se o mesmo?) Teríamos que chegar antes dele; percebes o que eu quero dizer, só um bocadinho antes. Conheces a história da pulga na gaveta? Claro que sim. Que verdadeira, não achas? Não sei o que dizer mais. Quando é que vamos finalmente ver-nos?"
Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

março 31, 2015

©raquelsav.2015. Ourém

A   F    I    N    A    R
rima com
|PROCURAR   DEVAGAR   LUGAR   (NÃO) ENCONTRAR    PROCURAR:||

[#11] Estou a escrever-te de um país distante


©Thomas Dworzak. AFGHANISTAN. Kabul. 04/2002. Cemetery on the outskirts of the city

 "Escreve ela ainda:
   "Nem imaginas como há no céu tanta coisa, que só vendo se acredita. Olha, por exemplo, as... mas não vou dizer-te já o nome.
   Embora pareçam pesadas e ocupem quase todo o céu, não têm peso nenhum apesar de tão grandes, do tamanho de um recém-nascido.
   Dá-se-lhe o nome de nuvens.
   É verdade que deitam água, mas sem as apertarmos, nem triturarmos. Tão pouca têm, que seria inútil.
   Mas desde que ocupem lonjuras e mais lonjuras, larguras e mais larguras, fonduras e mais fonduras e lhes dê para fazer de inchadas, com o tempo chegam a deixar cair algumas gotículas de água, sim, de água. E bem molhadas ficamos. Fugimos, furiosas por nos terem apanhado; pois ninguém sabe em que momento vão deixar cair as suas gotas; são dias, às vezes, sem as deixarem cair. E de nada valeria esperarmos em casa."

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)
fotograma do filme Ida do realizador polaco Pawel Pawlikowski

"-Às vezes tens maus pensamentos?
- Sim.
- Sobre o amor físico?
- Não
- Que pena! Assim, qual o valor dos teus votos de castidade?"
©Bruce Davidson. USA. New York City. 1964.
Samuel BECKETT during the rehearsal of "Waiting For Godot".

Pozzo: Chega? Com certeza. Mas eu sou generoso. Está-me na massa do sangue, hoje.



Samuel Beckett
À Espera de Godot, Teatro de Samuel Beckett, Editora Arcádia

março 28, 2015

©raquelsav.Lodz.2015
PLAY Zbigniew Preisner Lament (Lisa Gerrard)

Encenamos despedidas,
enquanto falamos por línguas de fogo,
línguas da boca para dentro,
exercícios extremos de lugar
ou tão somente de silêncio.

Insistimos nessa espécie de tempo falado,
um tempo oral das coisas que não se dizem,
subindo, como quem resvala,
por degraus que se afunilam,
inclinados sobre si.
Somos cada degrau
e o peso do desenho do pé,
a marca incerta que calca o chão morto.
Por isso, tocamos a pintura na (im)perfeição do traço,
entre pormenores fractais e borrões tolhidos,
carimbo rudimentar de tinta chinesa e permanente.

Construímos o tempo no uso dos pronomes interrogativos,
mas abominamos a senda dos pontos de interrogação.
Somos o quê da matéria que não fala,
que habita muito acima do porquê,
razão pura de hierarquia.
Por isso,
enquanto falamos por línguas de fogo, 
comungamos do nosso tempo - 
como extensas vítimas do silêncio. 


março 27, 2015

Dia Mundial do Teatro

©Josef Koudelka. CZECHOSLOVAKIA. Prague. 1965. Theatre Divadlo Na Zabradli (On The Balustrade). 
"Waiting for Godot", a play written by Samuel BECKETT.

"Pozzo:
Até eu mesmo teria grande prazer em me encontrar com ele. Nada me dá mais felicidade do que conhecer pessoas. Até mesmo a criatura mais insignificante é capaz de nos ensinar alguma coisa nova, de nos enriquecer com um pequeno nada, de nos revelar mais completamente a nossa própria felicidade. 
(...)

Pozzo: 
Já não está a chorar (Para Estragon). De certa maneira, você veio ocupar o lugar dele. (Em tom sonhador). As lágrimas choradas no mundo são uma quantidade imutável. Alguém começa a chorar aqui e nesse mesmo instante alguém deixa de chorar algures. E o mesmo acontece com o riso. (Rindo). Portanto, não há razão para lamentar a nossa geração, que de facto não é mais infeliz que as anteriores. (Silêncio). O melhor é não falar dela. (Silêncio). É certo que a população aumentou. "

Samuel Beckett
À Espera de Godot, Teatro de Samuel Beckett, Editora Arcádia

VAT 69
Era depois da morte herberto helder
Ia fazer três anos que morrêramos
três anos dia a dia descontados no relógio
da torre que de sombra nos cobriu a infância:
rodas no adro — gira a borboleta que se atira ao ar
o jogo do berlinde o trinta e um pedradas
nas cabeças nos ninhos nas vidraças
Foi quando verdadeiramente começou
a conspiração dos líquenes cabelos e avencas
na mina onde molhámos nossos jovens pés
e tirámos retratos pra morrer mais uma vez
Os nossos filhos — nós outra vez crianças —
comiam e gostavam das laranjas essas mesmas laranjas
que mordemos em tempos ao chegar nas férias de natal
no quintal que as máximas mãos deixaram já depois abandonado
Era a seguir à morte meu poeta
era na meninice havia festa e na sala da entrada
pensávamos na morte — nunca mais — pela primeira vez
Trincávamos cheirávamos maças no muro sobre a praia
roubávamos o balde ou íamos atrás do homem dos robertos
Era nas férias havia o mar e íamos à missa
ouvíamos a campainha e o padre voltava-se pra nós
—orate frates — ou íamos ao cemitério apesar do catitinha
Era depois da morte sobre a plana infância
o primeiro natal o cheiro do jornal
lido na adega ou na casa do forno
sentados pensativos sobre a terra húmida
Era na infância o sol caía enquanto água corria
entre os pés de feijão e os buracos de toupeiras
calcados prontamente pelas botas
soprava o vento e vinha a moinha da eira
o cão comia o bolo e morria debaixo da figueira
e teria sepultura com enterro e cruz e muitas flores
Havia casamentos o meu pai falava
e os noivos deitavam-nos confeitos das carroças
E os registos mistério tempo da prenhez
Era talvez no outono havia asma
havia a festa da azeitona havia os fritos
ao domingo havia os bêbados estendidos pelas ruas
havia tanta coisa no outono havia o cristovam pavia
Era a primavera o rio rápido subia
os barcos navegavam entre a vinha
e alastrava a sombra e a tarde adensava-se
num espesso e branco nevoeiro de algodão
noite dos candeeiros sombras nas paredes
e minha mãe pegava na espingarda ia à janela
e ouvia-se o chumbo no telhado lá ao longe
O leovigildo o marcolino o sítio do miguel
a sesta a monda das mulheres
a queda do bizarro exposto na igreja
isso e o almoço a saber mal
quando vinham da escola pra saber significados
Eram as despedidas de coelhos e galinhas antes das viagens
Eram as festas era o roubo dos melões
era a menstruação oculta da criada
Era talvez em tempos de tormenta
havia ferros entre a palha por baixo da galinha
que chocava os ovos dentro de um velho cesto
eram as nossas casa em adobe
e era o carnaval os bailes os cortejos
Íamos para a praia e eu lia camilo
ouvia o mar bater sem conseguir compreender
como podia estar ali se tinha estado noutro sítio
Era o tempo dos primeiros amores
eu via o pavão adoecia e só muito mais tarde lia
o trecho que me competia entre as amadas raparigas
A casa não ficava muito longe dos montes
não havia a cidade nem os outros
punham ainda em causa o meu reino de deus
senhor de tudo o que depois não tive
Era depois da morte ou era antes da morte?
Mas haveria a morte verdadeiramente?
Lia o paulo e virgínia chorava e perguntava
se tudo aquilo tinha acontecido
Era o meu pai era esse sonhador incorrigível
sem nunca mais saber que havia de fazer dos dias
Eram as folhas novas eram os perdigotos
saídos não há muito ainda da casca
Era era tanta coisa
Seria realmente após a morte herberto helder

Ruy Belo, Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc XX, Porto Editora, 2009