março 12, 2016

In die Mulde meiner Stummheit
leg ein Wort
und zieh Wälder groß zu beiden Seiten,
daß mein Mund
ganz im Schatten liegt.

Coloca uma palavra
no vale da minha mudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra.

Ingeborg Bachmann (1953)
O tempo aprazado,  1992 , Assírio&Alvim

março 11, 2016

"PETRA: Acho que o homem é feito de tal maneira que precisa dos outros, mas ainda não aprendeu como se vive com os outros."

Rainer Werner Fassbinder (1981)
As lágrimas amargas de Petra von Kant, 1990, Cotovia.

março 07, 2016

    "O tempo, que cuida de tudo, deu a solução, contra a tua vontade.
     O tempo, que conhece a resposta, continuou a passar.

    É num dia como este, um pouco mais tarde, um pouco mais cedo, que tudo recomeça, que tudo começa, que tudo continua.

    Deixa de falar como um homem que sonha"

Georges Perec (7 de março de 1936 — 3 de março de 1982)
Um homem que dorme (1967), Editorial Presença, 1991
"Essa tendência para traíres, para mentires - e para seres perfeitamente franca. Para te esconderes - ou para te mostrares muito. Esse cuidado de te preservares tanto - para acabares por contar a tua história, a tua verdade, com todos os pormenores, a um desconhecido. Essa vontade de fugires, de saíres a correr quando alguém mostra que começa a conhecer-te, embora não te reveles, e essa vertigem de ficares. Essa indomável sede de alguém - e de não estares com ninguém. De envolveres as carícias em palavras. Essa vontade de mudares sem renunciar a nada. Essa fome de impossíveis. Como pensar no meio desta confusão contraditória? É verdade e mentira, está bem e está mal, e não há saída.
   Nada a fazer. Toma um copo de água."

Héctor Abad Faciolince

março 03, 2016

©Irving Penn, Marrocos
 PLAY Popol Vuh Gemeinsam Aben Sie das Brot

Por isso cerro os olhos na iminência do pão.
A mesa fica tão vazia
quando nela habita um pão inteiro,
sem mão, sem faca.

Dobrámos a língua,
digerimos a cadência,
repetimos à exaustão:
|| Brot, bread, pan, pain, 
Brot, bread, pan, pain,
Brot, bread, pan, pain, 
Brot, bread, pan, pain :||

Multiplicámos o pão:
pain, pain pain pain, ...
até descobrirmos a alquimia fonética.

Transmutámos pão em dor.
Repartimos,
tomámos
e comemos.

"é um homem anónimo: morte encerrada na morte. O seu nome morreu quando morreram os que o chamavam. E o tempo serviu-lhe para arrancar todas as raízes. Liberta, a morte repetiu-se."

Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, Relógio d'Água, 2009

fevereiro 29, 2016

fotograma de Wittgenstein (1993) de Derek Jarman
 PLAY B. Britten  Symple Symphonie 3 Mov.
 
"Designar uma coisa é pendurar-lhe uma etiqueta"
(...)
A nossa linguagem pode ser vista como uma cidade antiga: um labirinto de travessas e largos, casas antigas e modernas e casas com reconstruções de diversas épocas; tudo isto rodeado de uma multiplicidade de novos bairros periféricos com ruas regulares e as casas todas uniformizadas.
(...)
conceber uma linguagem é conceber uma forma de vida"

Ludwig Wittgenstein (1889-1951),
Investigações Filosóficas, F. C. Gulbenkian, 2002

fevereiro 26, 2016

"É doce morrer no mar"
 
PLAY Mão Morta O Anjo do desespero

fevereiro 25, 2016


"Saber "de cor" - e que manancial de informação nesta locução - supõe a apropriação de qualquer coisa e o ser possuído pelo conteúdo do saber em questão. Quer isto dizer que autorizamos o mito, a prece ou o poema a virem implantar-se e florir no interior de nós mesmos, enriquecendo e modificando a nossa paisagem interior, tal como, por sua vez, cada uma das incursões através da vida modifica e enriquece a nossa existência. Aliás, para a filosofia e a estética antigas, a memória era a mãe das musas.
Quando a escrita levou a melhor e os livros facilitaram um tanto as coisas, a grande arte mnemónica caiu no esquecimento. A educação moderna cada vez se assemelha mais a uma amnésia institucionalizada. Deixa o espírito da criança vazio do peso das referências vividas. Substitui o saber de cor, que é também um saber de cor(ação), pelo caleidoscópio transitório dos saberes efémeros. Reduz o tempo ao instante e vai instilando em nós, até enquanto sonhamos, uma amálgama de heterogeneidade e de preguiça. Podemos afirmar que tudo o que não aprendemos e não sabemos de cor - dentro dos limites das nossas faculdades sempre imprecisas - é aquilo de que verdadeiramente não gostámos. As palavras de Robert Graves mais não fazem do que dizer que "amar de cor(ação)" ultrapassa muito qualquer "amor pela arte". Saber de cor é entrar em estreita e activa relação com a essência daquilo que somos. "
George Steiner (2005)
O silêncio dos Livros, Gradiva, 2007
PLAY E la nave va

"Espreitando pelo buraco da fechadura, "Raquelle" deu o sinal: "Agora estão a falar de guerra". (...) Espreitando pelo buraco, o olhar ora recaía sobre o papel branco, ora sobre o nariz, ou passava uma grande sombra, ou brilhava um anel. A vida desmembrava-se em pormenores reluzentes; via-se o pano verde estender-se como um relvado, uma mão branca descansava sem se ver bem onde, translúcida como num museu de figuras de cera; e se olhassem muito de viés viam lá no canto a borla dourada do sabre do general. Até o mimado Solimão se mostrava impressionado. Vista através da fechadura e da imaginação, a vida assumia proporções fabulosas e inquietantes. A posição curvada fazia o sangue subir aos ouvidos, e as vozes atrás da porta ora ribombavam como blocos de rocha, ora deslizavam como sobre tábuas enceradas. Raquel ergueu-se devagar. O chão parecia levantar-se sob seus pés, e o espírito do acontecimento tomou conta dela como se tivesse metido a cabeça debaixo de um daqueles panos pretos utilizados pelos fotógrafos e pelos mágicos."

Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)

"Os restantes participantes não se teriam mostrado tão exigentes, mas por isso mesmo também não tinham nada a opor. E era bom que a sessão terminasse com uma resolução aprovada. Com efeito, uma rixa só acaba quando a faca lhe põe o ponto final e uma peça de música quando o intérprete martela várias vezes com os dez dedos todas as teclas ao mesmo tempo; também o dançarino faz uma vénia diante da sua dama e uma reunião conclui-se com uma resolução. Seria um mundo terrível aquele em que os acontecimentos pura e simplesmente se despedissem à francesa, em vez de, no final, assegurarem mais uma vez, como deve ser, que de facto aconteceram. É por isso que as coisas se fazem assim."

Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)

fevereiro 17, 2016

PLAY António Fragoso Nocturno

Não sei do presente:
o espelho mente,
só sei que mente.
O corpo não é meu.
A dor não é minha.
Não sei do presente,
desde o dia em que morri:
chovia,
e eu respirava-te do peito,
em silêncio, essa noite.
Não sei do presente,
mas acredito
na eternidade desse momento.
Nele viverei, eternamente,
desde o dia em que morri.
"(...)Porque não sei como dizer-te sem milagres  
que dentro de mim é o sol, o fruto,  
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,  
o amor,    

 que te procuram."
fotograma de Die Blechtromme [O tambor] (1979) de Volker Schlöndorff

fevereiro 16, 2016

fevereiro 15, 2016

PLAY Dvorak Sinfonia N.9 (Novo Mundo) - 2ªMov.

"(...) não havia outra causa para aquele fenómeno sempre repetido a que se chama nova geração, pais e filhos, revolução intelectual, estilo novo, evolução, moda e renovação. O que faz desta ânsia de renovação do ser um perpetuum mobile mais não é do que o desconforto resultante da intrusão, entre o eu próprio, nebuloso, e o eu dos predecessores, petrificado numa carapaça que nos é estranha, de um pseudo-eu, de uma alma de grupo mais ou menos ajustada. E se estivermos atentos, por pouco que seja, veremos sempre aflorar no último futuro que acabou de entrar em cena os sinais do que num próximo futuro serão os velhos tempos. As novas ideias serão apenas trinta anos mais velhas, mas apaziguadas e um pouco mais rechonchudas ou obsoletas, como o rosto radioso de uma rapariga ao lado do rosto apaziguado da mãe; ou então não tiveram êxito, mirraram e ficaram reduzidas a um qualquer projecto de reforma defendido por um velho idiota a quem uma meia centena de admiradores chama o grande Fulano."

Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)

fevereiro 12, 2016

©Willy Ronis Venise, Fondamenta Nueva, 1959

"Mas isto ajudara Diotima a descobrir em si a conhecida doença do homem contemporâneo, a que se chama civilização. É uma condição frustrante, cheia de sabão, ondas hertezianas, a excessiva linguagem cifrada das matemáticas e da química, a economia política, a investigação experimental e a incapacidade de convivência simples mas elevada entre homens. E também as relações da nobreza de espírito, que ela conhecia, como a nobreza social, que exigiam a Diotima grande prudência e, apesar de alguns êxitos, lhe traziam grandes decepções, pareciam-lhe cada vez mais ser características não de uma época de cultura mas de um tempo de mera civilização.
     A civilização era, assim, tudo aquilo que o seu espírito se sentia incapaz de controlar. Incluindo, desde há bastante tempo, e acima de tudo, o seu próprio marido. 

      Os seus sofrimentos revelaram-lhe todo um mundo, e descobriu que tinha perdido uma coisa que até aí não sabia propriamente que tinha: uma alma.
      O que é uma alma? É fácil defini-la pela negativa: é aquilo que se esconde quando falamos de séries algébricas.
      E pela positiva? Ao que parece, ela furta-se a todas as tentativas de definição por essa via. É possível que tivesse havido em tempos em Diotima alguma coisa de primordial, uma sensibilidade intuitiva, nessa altura envolta no vestido escovado e mais que escovado da correcção, a que agora chamava alma.
(...)
Também pode ser que esse fundo primordial em Diotima seja definível de forma mais exacta como um não-sei-quê de silêncio, ternura, devoção e bondade que nunca encontrou o caminho certo e que, no cadinho do acaso em  que o destino nos molda, resultou na forma ridícula do seu idealismo."

Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)

fevereiro 04, 2016

PLAY Madredeus O Olhar

Abraça-me o desespero só mais um dia.
Sibila-me ao ouvido mentiras e injúrias.
Eu acredito-te.
Eu acredito-te, no teu abraço.
Fecharei os olhos, para não mais abrir
o abraçar desse dia.

Parte comigo.
Abraça-me.
Sibila-me.
Eu não estranharei esse lugar
sem olhos.

volto à cegueira a reflexão sonora
há um lugar incerto onde aconteço
vou pela areia liminar de inverno
mexendo tão somente os vocativos

atei o vento à estaca de madeira
senhor de esquinas lâminas de terra
e sonhei ser ateu e a ingratidão 
descia na colina as redes de água

não vi não vejo os muros na brancura
os olhos que inventavam o aroma

pouco a pouco afasto das palavras
o som que importa
pobre de quem ouviu e não entende
pobre quem entendeu e já não ouve.     


António Franco Alexandre,  

A Pequena Face,  Assírio&Alvim, 1983

fevereiro 03, 2016

fotograma de Vício Inerente (2014) de Paul Thomas Anderson
 (Thomas Pynchon)

PLAY Can Vitamina C

janeiro 30, 2016

A Repartição dos Pães

 PLAY António Fragoso: Prelúdio (de "Petite Suite"). (Miguel Henriques, piano)

"Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-lo na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem humidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado, ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.
Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogéneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.

Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparámos com a mesa. Não podia ser para nós...

Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas húmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse. Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. 'Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tomava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos."

Clarice Lispector (1964)
Legião Estrangeira in Contos, Relógio D'Água, 2006

janeiro 29, 2016

[#6] palimpsesto

--> - Então?
- Já disse que não!
- Como não?
- Apaguei. Rasguei tudo. Lixo!
- Ahahah. Então e o "Ontem, a distância que criámos entre o que fomos e o imaginário que passamos a ser. Ontem- a palavra que branqueia o tempo e faz vacilar a dúvida e o erro que somos..."?
- Queres parar?
- Ah! Só tu é que me podes humilhar, é isso?
- Não me interrompas! Estou farto de te ouvir. 
- É tão aborrecido quando a bola passa para o nosso lado, não é?
- Não é nada disso! 
- Então o que é? "Ontem, a distância que criámos entre o que fomos e o imaginário que passamos a ser". És tão prosaico! Tão bonitinho!
- Pouco me importa o que achas ou deixas de achar. Mas dispenso diminutivos!
- Então explica.
- Pensei que não fosse preciso.
- Tu é que sabes ler as pessoas, eu não. Sou uma perfeita egocêntrica, que não ouve ninguém a não ser a si própria!
- "ouve" com ou sem "h"?
- Olha é com "c" - couve!
- Era só para não cairmos no ridículo de nos pormos a escrever meta-textos.
- Como aquela música, la-la-la-la-la?
- Qual música?
- Uma dos The Gift.
- Lembras-te de cada cromo.
- Nem é das piores. Ainda é do tempo em que a Sónia Tavares não se resumia a uma Ágata Gourmet.
- Romana, queres tu dizer?
- Isso, isso.
- Vou pôr no YouTube, espera um segundo.
- Desde que não seja a Gaivota.
- PLAY
- O que raio tem esta música que ver com a nossa conversa?
- Schiuu.
- Ahh, já entendi. Às vezes fazes umas associações de ideias interessantes, reconheço.
- Somos tão banais, não somos?
- Sim, somos um lugar-comum tão medíocre: Graças a Deus.
- A sério? Acreditas em Deus?
- É um modo de dizer. Sou da opinião do Musil, a este respeito.
- Quem é esse?
- Esquece.
- Como se isso fosse possível. Se me conhecesses, "esquecer" seria um verbo que jamais usarias comigo. Saberias da sua inutilidade - consigo ser muito teimosa.
- Dá-me um minuto. Hum, está aqui, vou ler-te:
      "Até aí, "Sua Majestade" era para ele uma fórmula sem conteúdo mas ainda em uso, tal como se pode ser ateu e, apesar disso, dizer "Graças a Deus"."

- "Ontem, a distância que criámos entre o que fomos e o imaginário que passamos a ser".
- Queres parar com isso?
- Só quando me explicares.
- Foi e continua a ser o maior enigma da minha vida.
- Ficou sem solução? Foi um erro?
- Fiz o melhor que pude. O melhor que sabia.
- E chegou?
- Se tivesse chegado, não estaríamos a falar nisso agora, não achas?
- Há qualquer coisa de sádico na natureza do ser humano, não há?
- Chama-se amor.
- Além de prosaico és lírico? Então, fodemos ou ficamos?
- Nunca amaste?
- Amei uma vez.
- E foi um erro?
- Não! Foi uma utopia. Contente?
- Porque haveria de estar contente?
- Gostas de me humilhar.
- O amor é uma humilhação?
- O amor não, a utopia talvez.
- E fizeste o melhor que soubeste?
- Não! 
- Porquê?
- Porque nada fiz! 
- Chega de sermos óbvios?
- Qual é o teu número afinal?
- Pode ser o último!
- Porventura não serei assim tão chata!
- Tens mais de ridícula do que de chata. Tens noção quão absurdo é inventares estes diálogos, não tens?
- Esta espécie de meta-solilóquios? Heit! deixa a minha meta-cabeça em paz e vamos foder.
- Foder a mente?
- Não, a memória! Ou o que dela resta.
- Engana-me, então: PLAY   
- Tens noção que isso é jogo sujo, não tens?
- Tão ridícula, meu Deus. Já devias estar tão habituada! Ajoelhaste-te? Agora, já sabes como termina a história!

janeiro 28, 2016

fotograma de Full Metal Jacket (1987) de Stanley Kubrick