dezembro 31, 2014

©Luis Quiles

PLAY Snakefinger - Living in Vain
- (...) mas qual é a tua racionalidade?
-  cor de rosa e roxo.
©Cartier-Bresson-Armenia


























PLAY Love A house is not a motel

Erguer apenas o braço que sustenta a vida por inteiro.
Cornell Capa © International Center of Photography PARAGUAY. 1955. Political prisoner.

PLAY Meredith Monk Travel Dream Song

Trânsito
Mas quanto tempo e quando
ficávamos ali vogando
em brancas nuvens do esquecimento?

Fechávamos os livros
que lêramos ou fizéramos
e as taças que não bebêramos partíamos.
Numa agonia de ecos
os risos se calavam
e sacavam-se os prantos.
E os violinos adormeciam
sobre divãs de flores pálidas e murchas
que surgiam
nos recantos
daquela sala estepe oceano
ou monte anode estávamos
sob uma luz de estrelas moribundas
fatais pulverizando o nosso barro humano.

As dores e as misérias,
sempre guerreiras e instantes,
mesmo quando adormecidas,
despertavam cansadas
e ficavam por terra palpitantes...

Seguíamos, voltávamos, seguíamos
em indomáveis ziguezages lentos,
para nunca chegarmos,
pois chegar
era a absurda ameaça de um vazio
entre dois pensamentos!

Mas quanto tempo e quando?

E cerrando-se no ar,
sempre mais uma vez,
a cegueira das imagens,
o silêncio crepitante da surdez:
-os gritos paralisados da memória
clamando em vão por uma História!

Edmundo de Bettencourt, Poemas de, Assírio&Alvim

dezembro 30, 2014

©Josef Koudelka CZECHOSLOVAKIA. Prague. 1960
PLAY Daniel Filipe A invenção do amor

Não basta estender as mãos vazias para o corpo mutilado,
acariciar-lhe os cabelos e dizer: Bom dia, meu Amor.
Parto amanhã.

Não basta depor nos lábios inventados a frescura de um beijo
doce e leve e dizer: Fecharam-nos as portas. Mas espera.

Não basta amar a superfície cómoda, ritual, exacta nos con-
tornos a que a mão se afeiçoa e dizer: A morte é o caminho.

Não basta olhar a Amante como um crime ou uma injúria
e apesar disso murmurar: Somos dois e exigimos.
Não basta encher de sonhos a mala de viagem, colocar-lhe as
etiquetas e afirmar: Procuro o esquecimento.

Não basta escutar, no silêncio da noite, a estranha voz dis-
tante, entre ruídos de música e interferências aladas.

Não basta ser feliz.

Não basta a Primavera.

Não basta a solidão.


Daniel Filipe A invenção do amor e outros poemas

dezembro 29, 2014

©raquelsav
PLAY Radiohead Street Spirit

Não é caso de mendigar faces e sorrisos só porque não é dia de lembrar à lua o esquecimento do sol. Não são os mares que são grandes, o que não sabemos é navegar. Em cada viagem, torna-se mais nítido o desassossego do passo desconjuntado: acertá-lo, deixá-lo à deriva, mudar de pernas, ...? Despimos o rosto-posto, na hora das indecisões, para as dizimarmos a nu. Desejamos que fosse tudo uma questão de poesia, pois essa não se engole se não for inteira: ou é poesia toda ou é nada.

dezembro 28, 2014

- o que é estar triste?
- é frio.
- achas que estou triste?
- não, eu gosto de ti.
PLAY Bernardo Sassetti Do silêncio/revelação

porque a saudade escreve-se com reticências... porque a saudade é isto: um apelo sem retorno... porque a única coisa capaz de desvanecer esta saudade é o amor que partilhámos e passou a viver em mim... porque a saudade, é hoje, tão especialmente, tanta mas tanta... porque hoje é domingo e não estou capaz de me encontrar... porque nem a morte consegue dar-me à despedida... porque estou viciada no uso de reticências... e, para me encontrar, preciso de conhecer as regras do ponto final.
"Não quero que as pessoas ergam os olhos de admiração quando entro. Quero dar e receber e quero a solidão onde possa desdobrar em paz tudo o que possuo."

Virginia Woolf,  As ondas, Relógio D'Água
"É estranho verificar que em cada crise que atravesso, aparece sempre uma frase incongruente que insiste em vir em meu socorro (é o castigo por se viver numa velha civilização e possuir um caderno onde anoto frases. Esta gota que está a cair nada tem a ver com a minha juventude perdida. A queda desta gota é o tempo adelgaçando-se até formar um ponto. O tempo, esse prado ensolarado em que dança uma luz, o tempo, essa extensão plana como um campo ao meio dia, começa a inclinar-se. Adelgaça-se até formar um único ponto. O tempo escoa-se, como se escoa o líquido para fora do vaso deixando ficar um depósito. Estes são os verdadeiros ciclos, os verdadeiros acontecimentos da minha vida. Pois, como se toda a luminosidade da atmosfera refluísse subitamente como uma vaga, vejo o fundo das coisas tal como ele é. Vejo tudo aquilo que os hábitos recobrem. Preguiçosamente, deixo-me ficar na cama dias inteiros. Janto fora e fico com a boca aberta como um bacalhau. Não me dou ao trabalho de terminar as frases, e os meu actos, em geral muito imprecisos, adquirem uma precisão mecânica. Desta vez, ao passar por uma agência de viagens, entrei e, com gestos de autómato, comprei um bilhete para Roma."

Virginia Woolf,  As ondas, Relógio D'Água
"Vou de casa em casa como os monges da Idade Média que distraíam viúvas e donzelas com rosários e baladas. Sou um peregrino, um vendedor ambulante pagando a hospedagem com uma canção, um convidado pouco exigente que facilmente se contenta. Muitas vezes, aceito o melhor quarto e durmo sob um dossel, outras durmo num palheiro. As pulgas não me incomodam e também não me queixo das sedas.  Sou muito tolerante. Nada tenho de moralista. Sou demasiado consciente da brevidade da vida e da sua complexidade, para me dedicar a traçar linhas de demarcação a tinta vermelha. E, no entanto, não sou tão desprovido de rigor como vocês pensam, ao julgarem-me pela facilidade com que falo. Escondo na manga um pequeno punhal de desprezo e severidade. Mas é fácil desviarem o golpe. De qualquer coisa faço brincadeiras. Uma rapariga está sentada à entrada de uma cabana. A rapariga espera. Quem espera ela? Terá sido seduzida? O reitor vê um buraco no tapete. Suspira. A sua mulher passando os dedos pelas ondas da cabeleira ainda abundante, reflecte, etc. Mãos que acenam, pessoas que hesitam nas esquinas das ruas, alguém que lança um cigarro na valeta, outras tantas histórias. Mas qual será a verdadeira? Não sei. É por isso que as minhas frases se mantêm suspensas, como as roupas num armário, aguardando que alguém as vista. Ocupado nessa espera, nas minhas meditações, e no meu caderno de notas, vivo desligado da vida. Serei afastado, como se afasta uma abelha do girassol. A minha filosofia acumula-se e espalha-se em todas as direcções como o mercúrio. Mas Louis, o severo Louis de olhos loucos, chegou no seu sótão e no seu escritório a conclusões definitivas sobre a verdadeira natureza do conhecimento."


Virginia Woolf,  As ondas, Relógio D'Água

dezembro 27, 2014

 ©Herbert List SWITZERLAND. Lake Lucerne (Lac des Quatre-Cantons). 1936.


PLAY Tiago Bettencourt Caminho de Voltar

Há sempre um sítio para fugir,
Se queres saber,
Um sítio onde podes descansar.

Há sempre alguém para te agarrar
E te esconder
Se vais cair
Eu vou te ver
Antes da dança
Antes da fuga
Eu sei te ver
Antes do tempo te mudar eu vou saber
Antes da névoa te despir e te levar
Há um sítio onde o escuro não chegou
Por onde podes ir
Um rio para libertar.

Há sempre alguém para te salvar
Se queres saber
Se queres sentir outro lugar.
Há sempre alguém para te dizer
Se vais cair
Para te travar e adormecer
Antes do dia
Antes da luta
Eu sei te ver
Antes da noite te sarar eu vou saber
Antes da chuva te romper e te lavar
Há um sítio onde a estrada te deixou
Por onde tens que ir
Se te queres libertar.

E tudo o que for por bem,
Tudo o que der razão
Como ponte vai ligar.

Tudo te vai unir
Tudo se faz canção
No caminho de voltar
No caminho de voltar...

Há sempre paz noutro lugar
Entre nuvens
Um sítio onde podes perceber
Que há sempre alguém para te ver
Em segredo
Te descobrir
E renovar

.

dezembro 26, 2014

Escher Auto-retrato

"O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos. Sob este ponto de vista, o eu não existe ainda.(...) há duas formas do verdadeiro desespero. Se o nosso eu tivesse sido estabelecido por ele próprio, uma só existiria: não querermos ser nós próprios, querermo-nos desembaraçar do nosso eu, e não poderia existir estoutra: a vontade desesperada de sermos nós próprios."


Sören Kierkegaard O desespero humano, Livraria Tavares Martin, 1979 
© Herbert List  GERMANY. Hamburg. Krochmannstrasse. "Neighbors". 
This photograph was taken from the window of List's flat.

PLAY Faithless Insomnia

Não há como medir essa grandeza. No espelho- essa ilusão- somos maiores. Na sua ausência, somos vultos alheios, que não reconhecemos. De olhos bem fechados, somos fragmentos do tamanho do sonho. Não seremos justos enquanto não acordarmos desta insónia.

dezembro 25, 2014

©Daniel Blaufuks Da solidão, da série "O ofício de viver", 2010



"Onde, reduzidos a pequenos chacais, nós nos comemos em riso. Em riso de dor - e livres. O mistério do destino humano é que somos fatais, mas temos a liberdade de cumprir ou não o nosso fatal: de nós depende realizarmos o nosso destino fatal. Enquanto que os seres inumanos, como a barata, realizam o próprio ciclo completo, sem nunca errar porque eles não escolhem. Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou. Sou dona da minha fatalidade e, se eu decidir não cumpri-la, ficarei fora de minha natureza especificamente viva. Mas se eu cumprir meu núcleo neutro e vivo, então, dentro de minha espécie, estarei sendo especificamente humana."
Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.
©Herbert List - GREAT-BRITAIN. London. 1936. Ashtray

PLAY Ravel Piano Concerto in G

"Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois factos existe um facto, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir- nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e o fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo e aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio."
Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.
©HU- untitled, 2014 oil and acrylic on cardboard 140x107 cm
http://huportfolio.weebly.com/
É como se me negasse à vida:
escolhendo a morte para hoje
e o nascimento para depois.
©Daniel Blaufuks "Dos dias perdidos", 2014

PLAY Bach Mass in B minor - BWV232- Agnus Dei

É por isso que adormeço numa luz em movimento
E escolho um espaço para ver o espaço de frente
A sua cor de silêncio nocturno e desenho
Uma maneira quieta de estar nele tranquilo

Há nesse espaço uma fonte, um animal que desperta
Uma criança que navega com as próprias mãos.
Bebo com as mãos juntas.

Há uma voz que bebo. Há um espaço entre as mãos mas não perco
A sede. A água multiplica-se porque a tiro do coração
Que escuta.

Há um espaço no corpo que pode ser um lugar.
À sombra posso olhá-lo até o ver
Posso tocar as chagas no corpo

E posso beber dele morrendo
Nele como quem entra de tanto
O desejar.

Daniel Faria,  Poesia
@Daniel Blaufuks - O  saco de fruta, 2013 - da série "Um mundo igual a este mas ligeiramente diferente"

PLAY Bruckner Os Justi Meditabitur

Há muitos metros entre um animal que voa
E a escada que desço para me sentar no chão
Mas basta-me um quadrado de sossego
Para a distância absoluta

Está para além do que se vê a janela onde me debruço definitivo
Não é uma aparição
Nem se pode alcançar sem se ir em frente caindo

Só no fim da paisagem estou de pé como um pára-quedista que desce
Suspenso como os santos num arroubo místico
Erguido como um anjo em suas asas
E sinto-me ser alto como um astro. Nevem
Como se fosse um homem 
Que levita

Daniel Faria, Poesia
Tríptico
II
Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando, 
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros 
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
quando as crianças acordam nas suas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei  como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo 
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço -
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.

Herberto Helder, Poesia Toda

dezembro 24, 2014

Canto de Natal


©HU - untitled, 2010 oil pastel and acrylic on cardboard 120x125 cm


PLAY Cat Power Evolution

Fundimos os fantasmas do sonho-  Passado, Presente e Futuro-
e inventamos novos tempos aos verbos.
Fechamos os olhos e repousamos em sinestesia,
sem hora mas com lugar...
      (aquele lugar onde não envelhecemos:
       o transfinito lugar que nos foi entregue para sermos autênticos)
Já hoje exercitámos a morte de amanhã 
quando ainda o morrer velho murcha em nós-
Ó medo da humanidade de não resistir-

Ó habituação da morte até adentro de sonhos 
onde andaime de noite cai em cacos negros
e lua de osso brilha nas ruínas-

Ó medo da humanidade de não resistir 

Que é dos suaves açoitados 
Anjos-calma, que a fonte oculta
nos tocaram, que de cansaço 
corre pra morrer?

Nelly Sachs, Escurecer de estrelas

dezembro 23, 2014

Daniel Blaufuks

©Daniel Blaufuks Panorama de Veneza, da série "O ofício de viver, 2010



"Aborda a perda de poder da foto, a sua área de intervenção privilegiada. Que meio melhor ampara esta memória do mundo?

Cada vez sinto mais que a única arte que tem o poder de mudar o mundo é a literatura. O problema é que cada vez menos pessoas lêem livros, mas será talvez a única que consegue condensar isso, ou uma parte disso.

Defende que o livro é, de facto, o último resistente. Por outro lado, na mostra somos desafiados a visualizar o seu conteúdo, as letras, as palavras.
Sim, do que gostava é que as pessoas saíssem da exposição com vontade de comprar os livros do Perec, do Sebald e outros escritos. Mas estas são transformações também dos próprios livros, tentar olhar para estes escritores não só como escritores, mas como artistas que trabalharam o meio da palavra, tal como outros usam a plasticina. Usaram-na para algo mais vasto que a literatura. São questões lançadas para as quais não espero ter resposta, nem espero que o pública a tenha. Não é necessário resposta para todas as questões."

http://www.ionline.pt/artigos/mais/daniel-blaufuks-unica-arte-tem-poder-mudar-mundo-literatura/pag/-1

Walt Whitman

©Daniel_Blaufuks_Mão com espelho, da série "O ofício de viver"*, 2010
48
Já disse que a alma não é mais do que o corpo,
E disse que o corpo não é mais do que a alma,
E nada, nem Deus, é maior para uma pessoa do que ela própria,
E quem caminha duzentos metros sem amar caminha amortalhado para o seu próprio funeral,
E eu ou tu que não possuímos um centavo podemos comprar o melhor que a Terra contém,
E olhar com um só olho ou mostrar um feijão na sua vagem desconcerta a aprendizagem de todos os tempos,
E não há ofício nem emprego em que um jovem não possa converter-se em herói,
E não há delicado objeto que não possa servir de eixo às rodas do universo,
E digo a todos os homens e mulheres: que a tua alma permaneça tranquila e serena ante um milhão de universos.
E digo à humanidade: não sintas curiosidade por Deus,
Porque eu que tenho curiosidade por tudo não sinto curiosidade por Deus,
(Não há palavras que possam definir a paz que sinto em relação a Deus e à morte.)Escuto e contemplo Deus em cada objecto, ainda que não O entenda minimamente.Nem entenda que possa existir alguém mais maravilhoso do que eu próprio.

Por que é que desejaria ver Deus melhor do que este dia?
Vejo algo de Deus em cada uma das vinte e quatro horas, e vejo-o em cada momento que passa.
Vejo Deus no rosto de homens e mulheres e no meu próprio rosto ao espelho.
Encontro cartas de Deus espalhadas pela rua, todas assinadas com o seu nome,
E deixo-as onde estão pois sei que vá para onde for,
Chegarão sempre outras pontualmente.

Walt Whitman, Canto de mim mesmo. BI.045

* inspirado pelos diários de Cesare Pavese 

dezembro 21, 2014

Michel Foucault

"Daí, sem dúvida, que a poesia se encontre frente a frente com a loucura, na cultura ocidental moderna. Mas já não se trata do velho tema platónico do delírio inspirado. É a marca de uma nova experiência da linguagem e das coisas. Nas margens de um saber que separa os seres, os signos e as similitudes, e como que para limitar o seu poder, o louco assegura a função de homossemantismo: reúne todos os signos e confere-lhe uma semelhança que não cessa de proliferar. O poeta assegura a função inversa, a alegórica; sob a linguagem dos signos e sob o jogo das suas distinções bem demarcadas, põe-se à escuta da "outra linguagem", a da semelhança, essa linguagem sem palavras e sem discurso. O poeta faz vir a similitude até aos signos que a dizem; o louco carrega todos os signos de uma semelhança que acaba por apagá-los. Assim se encontram ambos, na orla exterior da nossa cultura e no ponto mais próximo das suas divisões essenciais, nessa situação extrema - postura marginal e silhueta profundamente arcaica - em que as palavras encontram sem cessar o seu poder de estranheza e o recurso da sua contestação. Entre elas abriu-se o espaço de um saber onde, devido a uma ruptura essencial ocorrida no Ocidente, já não se trata das similitudes, mas sim das entidades e das diferenças."

Michel Foucault, As palavras e as coisas, Edições 70
©Herbert List GERMANY. Munich. 1953. 

PLAY Fever Ray Keep the streets empty for me

No relógio, asfixias as veias ao pulso, secas o tempo e a juventude da carne; anestesias o calendário nas intermitências de um corpo-abrigo; perdes-te em pronomes, para esconderes o desejo da cadência dos possessivos.

Os passos são desordenados, desgastam-te e não te compram caminhos fáceis. Os passos enchem a rua vazia, de possessivos rastos. A energia não se rende aos olhos fechados porque não tens como fugir, ao que subtilmente te foi entregue. Os passos são teus, mas desordenados.

E como um grito soa a tão pouco, quando só conheces armas de silêncio.



Rui Nunes


és só um homem esquecido pela terra,
os que te cercam não te reconhecem,
nada sabem das tuas mãos, dos teus olhos,
da coisa mais ínfima que seja tua.
Tu vês os que te cercam, mas eles
rodeiam-te da tua ausência
com a perseverança de sobreviventes

do mundo aos lábios: a separação
do olhar de Deus

Rui Nunes, Ofício de Vésperas, Relógio D'Água

dezembro 20, 2014

Madredeus


Coisas pequenas são
Coisas pequenas
São tudo o que eu te quero dar
E estas palavras são
Coisas pequenas
Que dizem que eu te quero amar.
Amar, amar, amar
Só vale a pena
Se tu quiseres confirmar
Que um grande amor não é
Coisa pequena
Que nada é maior que amar.
E a hora
Que te espreita
É só tua.
Decerto, nao será
Só a que resta;
A hora
Que esperei a vida toda,
É esta.
E a hora
Que te espreita
É derradeira.
Decerto já bateu
À tua porta.
A hora
Que esperaste a vida inteira,
É agora.

dezembro 19, 2014

António Franco Alexandre

Sem palavras nem coisas

1

acendo o ramo e a folha cai nos dedos,
cai no azul e alarga-se, cai devagar, acendo
as pálpebras (neste perigo mudo de escolher dividindo
o som de tiros altos em volta ao corredor),
cai sobre o som, cai sobre as pálpebras, e 
os olhos de granito onde espreitam as folhas;
dividindo, separando, escolhendo, ilusão de cenário com
ramos acesos, os dedos (entra pela esquerda
o projector caindo, como luz sobre os tiros) no
azul devagar das veias abertas, dividindo,
as unhas, a minúcia, e alarga-se, cai
sobre os ramos, e os braços, as mãos
misturadas, o sexo, a boca, o
ouvido; acendo as veias e os
tiros caindo, a bala misturada no sangue,
até virar a página e respirar
o vento de asas, divido, separo, escolho
de pé no corredor entornando os cabelos,
cai sobre os tiros, cai certeira,
entorna o sexo no azul dos dedos,
dividindo o granito, acendo
o cenário e as pálpebras separam
os ramos dos braços, cai sobre as veias,
cai no silêncio e espalha-se e cobre
o som das asas altas, e entorna
o projector nos olhos, escolhendo, dividindo,
sai ao som dos tiros e acende a boca,
e alarga-se, cai sobre o vento, respira
as unhas misturadas, devagar separo
a luz das folhas, e os tiros sobre os dedos
espreitam no silêncio, as pálpebras, a minúcia,
até virar os ramos no corredor aberto,
dividindo, separando, escolhendo as balas dos
projectores, caindo
cai no azul, cai dos ramos nas
folhas dos tiros,
cai sobre a página, e as asas misturadas,
as pálpebras, deste perigo mudo de escolher
dividindo, cai no azul e alarga-se, cai
devagar, acendo
o ramo e a folha cai dos dedos.
2
entrar de repente pelos olhos adentro e escancarar
as árvores: mas aquilo que amaste perdura.
junto da água morna os animais aguardam o ruído
vegetal da noite, e as luzes bocejam
a mansidão das pernas esticadas: o amor
não tem tempo, e dura no que amaste.
Dura de repente nos olhos abertos e
a água respira no flanco dos animais
bocejando devagar a chegada da noite e das 
redes e os passos mornos dos caçadores,
e as luzes escancaradas do silêncio. Dura
esticado nas árvores, dura mansamente sem 
palavras nem coisas, sem tempo para
aguardar as mãos do caçador e as redes
mornas respirando sobre a água: aquilo
que amaste perdura.

3

enquanto escreve, lês, os tiros vão caindo
sobre o que amaste, e as luzes
dividem o silêncio,
as redes nas mãos do caçador
abrem na água o corredor das unhas,
enquanto aguardas caem os ramos, cai
o projector da noite no bocejo morno
das asas misturadas,
enquanto divides, separas os animais
e as árvores, o flanco dos olhos
e a minúcia do tempo, caem
as pálpebras no sangue, enquanto escolhes
e as pernas se escancaram,
as folhas duram no azul das coisas,
acendo o amor e as balas inclinam-se
nos passos do granito,
enquanto esperas junto da água e 
as luzes se acendem sobre os dedos
o amor perdura de dentro dos tiros,
dividindo, escolhendo, aguardando, a chegada
da noite sobre os pulsos, os ramos,
enquanto entras nas veias o projector
inclina-se no tempo, cai
nas redes esticadas do silêncio,
separando o que amaste das unhas
dos animais que aguardam a minúcia
da água caindo, enquanto dura
a ilusão do cenário sobre o vento,
vê, enquanto os ramos duram nos olhos
do caçador, e as pálpebras mornas bocejam,
são as folhas que caem dos ramos acesos
sobre a água, sobre os olhos mansos
dos animais que aguardam junto às redes,
sobre o azul dos dedos, sobre os passos 
dos projectores da noite de repente inclinados,
sobre as mão esticadas do silêncio, 
sobre o que amaste, vê, sobre
o que perdura, enquanto aguardas
e divides, 
enquanto escreves, lês, cai sobre o que amaste,
caem os tiros altos sobre o que amas.

4
se perdura nos tiros, se perdura
entre os ramos acesos e a queda dos tiros,
porque perdura, sem palavras nem coisas,
nos olhos do silêncio junto à água
aguardando o ruído vegetal da noite,
nos espaços das redes quando caem,
porque pedura, vê, nas mãos do caçador
enaqunto apago um a um os projectores
e as folhas caem no corredor dos dedos
e perdura, vê, nas pernas inclinadas,
nas veias mansamente abertas, no flanco
da água,
sem tempo para escolher, separar,
dividir, perdura de repente dentro das asas,
vê, perdura na minúcia dos pulsos,
o que amaste perdura, não tem tempo
para se perder,
palavras que dividam, vê, coisas que te separem,
redes que caiam no silêncio das mãos,
folhas que guardem
a ilusão do caçador.

5
então me deito junto água e entro
de repente nos pulsos: o que amei perdura,
vão-se apagando lentamente as asas
inclinadas dos projectores, as pálpebras
bocejam a alegria do azul dos dedos,
estendo os braços e os animais aguardam
de dentro das redes esticadas, abertas,
e um pássaro pousa nos ramos, nas folhas,
seguro do silêncio onde os tiros caem
sobre a água e devagar mergulham,
e respiram no fundo um corredor imóvel.


(António Franco Alexandre
Poemas)