dezembro 31, 2015


PLAY The Doors People are Strange

LARANJA COR DE SANGUE
Está tão escuro que o fim do mundo pode estar próximo.
Convenço-me que vai chover.
Os pássaros no jardim estão silenciosos.
Nada é o que parece,
Nem nós mesmos.

Na nossa rua há uma árvore tão grande
Que podemos esconder-nos todos nas suas folhas.
Nem precisamos de roupas.
Sinto-me tão velho como uma barata, disseste.
Imagino-me passageiro de um navio-fantasma.

Agora nem um suspiro lá fora.
Se alguém abandonou uma criança no nosso patamar,
Deve estar a dormir.
Tudo está a vacilar na borda de tudo
Com um sorriso polido.

É porque há coisas neste mundo
Sem qualquer solução, disseste.
Nesse instante ouvi a laranja cor de sangue
Rebolar pela mesa e com um baque 
Cair no chão rachada ao meio.

Charles Simic (1938 - )
Previsão de tempo para utopia e arredores, Assírio&Alvim, 2002

"Entretanto, tinha andado pelo mundo, por vezes também, por curtos períodos de tempo, no seu país, fazendo coisas importantes, mas igualmente inúteis. Já demos a entender que era matemático, e mais não é preciso dizer sobre o assunto, pois em todas as profissões, quando não as exercemos por dinheiro, mas por amor, chega um momento em que o avançar dos anos nos parece levar a um vazio."

Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)

dezembro 29, 2015


"o meu tédio é igual, o meu desejo de solidão idêntico, a minha ânsia de silêncio a mesma, quero simultaneamente que me deixem em paz e não me deixem em paz, que me amem e não me amem, que me chamem e me esqueçam"

António Lobo Antunes (1983)
Explicação dos pássaros

dezembro 23, 2015

"Vou-me embora, adeus, ou fico, qual é a alternativa, ir para onde, serei mais feliz sozinho, conseguirei alguma vez ser feliz com esta inquietação de sempre nas tripas, esta espécie de colite da alma, este desassossego de entranhas, rodo o botão do som, a adesão de Portugal ao Mercado Comum, torno a calá-lo, as lombadas dos livros irritam-me, o sofá demasiado fofo irrita-me, vou à janela espreitar a tranquilidade da rua, os carros imóveis sob os candeeiros, a pele lunar dos prédios, como farão os outros para aguentar a pastilha, os casais que conheço viverão intimamente satisfeitos consigo, lograrão lavar os dentes de manhã numa esperança relativa, qual é a solução quando nada mais há a conhecer, a descobrir, a inventar, foram quatro anos muito agradáveis, desculpa, mas acho melhor separarmo-nos, e a tua cara, de tacho na mão, boquiaberta de espanto, primeiro, a enrugar-se de dúvida, de incredulidade, depois, Deves ter bebido diz ela, Não bebi nada digo eu. De qualquer maneira guarda a conversa para logo que não tenho pachorra agora, diz ela."

António Lobo Antunes (1983)
Explicação dos pássaros
A perna acompanha o corpo e a dor. Nem metade do caminho fiz, não me perguntes quando chegarei. Põe a mesa só para ti. Hoje não como. Tenho mais de metade do caminho por fazer e toda a paciência gasta. Eu sei fazer acrobacias, mas hoje não. 

dezembro 18, 2015

PLAY Chopin Preludio em mi menor Po. 28 N.4

UM ABANDONO 

Um abandono em suspenso.
Ninguém é visível sobre a terra.
Só a música do sangue
assegura residência
num lugar tão aberto.

Alejandra Pizarnik (1936-1972)
Antologia Poética, O correio dos Navios, 2002

dezembro 15, 2015

PLAY Beck Everybody´s gotta learn sometime

ESTUDO
Através da janela
mando
a negra razão
falar com a 
paisagem.

Ernst Meister (1911-1979)
Rosa do Mundo, Assírio & Alvim, 2001

dezembro 10, 2015

Habitar a galinha doida que cacareja a nossa dor.
Ser galinha e picar a dor em terra dura, sem a furar.
Amar, somente amar, nada mais que amar (o que, enfim, restou).

©raquelsav
"Medir a felicidade. Que dizer destes fogachos transitórios? Não chega a penitência. Aos que têm o fogo das trovoadas, a cal nas sepulturas, como exercício do fogo verdadeiro (do inferno para sempre). Um nada, que flutua em nós, controla o acaso ou perde a ocasião (irrepetível). Fazer contas e errá-las: a soma que se chama alma. A bom entendedor meia palavra basta. Quanto ao resto, os vultos a arderem no desenho, quem levanta a mão contra o nosso corpo e o nosso gado? Quem se antecipa a Deus?"

Carlos de Oliveira (1978)
Finisterra: Paisagem e povoamento, Sá da Costa, 1979

©Angela Bacon-Kidwell



"Preciso de medir a casa. Os quartos, um a um: comprimento, largura, pé-direito. Avaliar a superfície entregue à névoa e os seus pontos frágeis (janelas, portas e postigos). Conhecer melhor o brilho da cera delida ou a sombra que se oculta nas galerias de caruncho; e o pó, as manchas de humidade nos tectos, a serradura interior da madeira. Numa tarde assim, tão cheia de água, registar ainda o fino diapasão das goteiras, a pouca transparência lá de fora, cada vez mais turva: como absorve ela o murmúrio dos móveis?"

Carlos de Oliveira (1978)
Finisterra: Paisagem e povoamento, Sá da Costa, 1979

"Tem a realidade o fascínio dum tesouro escondido? Creio bem que sim. E a entrega mecânica à tentação acaba por destruir-nos. O real não é diabólico em si mesmo. Longe disso. Mas podemos (oxalá não esteja a aproximar-me da confusão) contaminá-la sem saber."
Carlos de Oliveira (1978)
Finisterra: Paisagem e povoamento, Sá da Costa, 1979
"Porquê a lagoa tão pequena?
Ia chover. Lembrei-me com certeza duma gota de chuva. E tinha sede, já te disse. Quando temos sede, a água parece sempre pouca."


Carlos de Oliveira (1978)
Finisterra: Paisagem e povoamento, Sá da Costa, 1979

novembro 23, 2015

©raquelsav

QUEM ARRANCA de noite o coração do peito deseja a rosa.
Pertencem-lhe a sua folha e o seu espinho.
A esse põe ela a luz no prato,
com o seu sopro enche-lhe os copos,
só para ele sussurram as sombras do amor.
Quem arranca de noite o coração do peito e o arremessa ao alto:
não falha o alvo,
apedreja a pedra,
a esse bate-lhe o sangue fora do relógio,
o tempo faz-lhe soar na mão a sua hora:
pode brincar com bolas mais bonitas 
e falar de ti e de mim.

Paul Celan (23/11/1920 - 20/04/1970)
Sete Rosas Mais Tarde, Edições Cotovia, 1993) 

novembro 21, 2015

PLAY Mundo Cão O caixão da razão

Expele o fumo do cigarro
molhado
onde enrolas o medo.

novembro 20, 2015

novembro 19, 2015

PLAY Wagner-Liszt Isolde's Liebestod

Mild und leise
wie er lächelt,
wie das Auge
hold er öffnet
—seht ihr's, Freunde?
Seht ihr's nicht?
Immer lichter
wie er leuchtet,
stern-umstrahlet
hoch sich hebt?
Seht ihr's nicht?

ertrinken,
versinken, –
unbewusst, –
höchste Lust!

novembro 16, 2015

©raquelsav

PLAY J.S. Bach Kyrie Eleison - Missa H-moll BWV 232

Gravita um cheiro cego onde a palavra cessa,
mas é o hálito matinal e contínuo que fede e cala.
Não há fruta que não apodreça nem vinho que não azede,
nem parede pintada que esconda as tuas escamas de ocre e cal.
Talvez amanhã regues, na árvore, a flor que cresce
                           [e somente anoiteça, enquanto anoitece].

novembro 14, 2015

©Eduardo Gageiro
 PLAY Schoenberg Transfigured night for string sextet 


Também nós matámos o amor no medo de amar
e afundámos a ideia na palavra.

Na âncora, o suicídio diário
que nos afoga de silêncio.
Só a dor persiste
       (e serve de alimento).

novembro 08, 2015

"Espantoso! Com que angústia equívoca, a de perder e a de conservar, o homem se agarra todavia a esta vida. Pensei algumas vezes em dar um passo decisivo, face ao qual todos os meus passos anteriores mais não seriam do que infantilidades - empreender a grande viagem de descoberta. Tal como um barco ao sair do estaleiro é saudado com salvas de canhão, também eu me saudaria a mim próprio. E afinal. Será que me falta coragem? Se uma pedra me atingisse e me matasse, seria todavia uma saída."

Søren Kierkegaard (1844)
Ou - Ou. Um Fragmento de Vida, Relógio D'Água, 2013

novembro 07, 2015

PLAY Naifa Subida aos céus


"Quero ser amada só por mim
E não por andar enfeitada
Ser adorada mesmo assim
Careca, nua e descarnada

Engano de alma ledo e cego
Ó linda Inês posta em sossego imortal
Diz adeus

Com perfumes a presa fácil
Com joias casacos de peles
Gosto do amor quando é difícil
E cheira ao meu hálito reles

Quero ser amada à flor da pele
Não quero peles de vison
Amada p'lo sabor a mel
Não pela cor do baton

Engano de alma ledo e cego
Ó linda Inês posta em sossego imortal
Diz adeus

Com cabeleira a presa fácil
Há quem se esconda atrás dos pelos
Gosto do amor quando é difícil
De ser amada sem cabelos

Quero que me beijem a caveira
E o meu ossinho parietal
Que se afoguem na banheira
Pelo meu belo occipital

Engano de alma lego e cego
Ó linda Inês posta em sossego imortal
Diz adeus

Com carne viva a presa fácil
É ordinário e absoleto
Gosto do amor quando é difícil
Quando me aquecem o esqueleto

Quero ser amada pela morte
E p'los meus ossos de luar
Quero que os cães da minha corte
Passem as noites a ladrar

Engano de alma ledo e cego
Ó linda Inês posta em sossego imortal
Diz adeus

Sobe aos céus
Sobe aos céus

Quero ser amada só por mim
E não por andar enfeitada
Ser adorada mesmo assim
Careca, nua e descarnada"


©angela_bacon_kidwell_02
"Hey, honey
Take a walk on the wild side"


PLAY Lou Reed Walk on the Wild Sid

novembro 06, 2015


 ©Thomas Hoepker. PT 1964 Trás-os-Montes
"É tão fácil aceitar, tão fácil recusar, quando se ouve o apelo, tão fácil, tão fácil. Mas, para nós, desjanelados, no calor do nosso sangue, do nosso silêncio, para nós, que não podíamos ouvir o vento, nem ver o sol, que apelo podia chegar-nos, do tipo de tempo de que gostávamos, senão o da falsa aceitação, da falsa recusa?"

Samuel Beckett (1953)
Watt,  Assírio&Alvim, 2005

outubro 31, 2015

Sabe a lágrima que chora
a flor que não nasce
Traz nela o espelho
a imagem que sorve
Traz nela o vento
a imagem que jaz
Engole a palavra
no dia que encerra
Sorve o silêncio
da paz que vadia

outubro 29, 2015

©Irving-penn: amber-valletta-new-york-1996
PLAY Carmen McRae A song for you

MENDIGA VOZ

E ainda me atrevo a amar
o som da luz numa hora morta
a cor do tempo num muro abandonado.

No meu olhar perdi tudo.
É tão longe pedir. Tão perto saber que não há.


Alejandra Pizarnik (1936-1972)
Antologia Poética, O correio dos Navios, 2002

outubro 27, 2015

"Watt preferia ter de lidar com coisas de que não sabia o nome, embora também isso lhe fosse penoso, a ter que lidar com coisas cujo nome, o nome comprovado, já deixara de ser o nome delas, para ele. É que, para uma coisa de que não sabia o nome, sempre podia esperar que havia de aprender-lhe o nome, um dia, ficando sossegado. Mas não podia esperar o mesmo no caso de uma coisa cujo verdadeiro nome cessara, súbita ou gradualmente, de ser o verdadeiro nome para Watt."

Samuel Beckett (1953)
Watt,  Assírio&Alvim, 2005

outubro 25, 2015

©Angelo Pál, Funk Pinkász -Dancers,c.1920

PLAY Prokofiev Piano Concerto N.2 (Evgeny Kissin)

De olhos bem fechados...

outubro 23, 2015

Ovo ou Galinha?

©Cornell Capa. International Center of Photography PARAGUAY. 1955. Political prisoner.

E  N  T  R  A  R         P  A  R  A         S  A  I  R

 ou

S  A  I  R     P  A  R  A        E  N  T  R  A  R      

 ?
©Irving Penn ultra penn dancer

MARINHA MARINHEIRA MARESIA

Eu olho para ti e o sol torna-se maior
Vai em breve cobrir-nos  o dia
Desperta com o coração e a coloração em mente
Para dissipar o mal da noite

Eu olho para ti tudo está reduzido à sua expressão mais simples
Lá fora a fundura não é muita para os barcos
É preciso dizer tudo em poucas palavras
Quando não há amor o mar dá frio

É o começo do mundo
As vagas vão embalar o céu
E tu embalas-te nos teus lençóis
Puxas o sono para o teu lado

Acorda para que eu possa seguir-te os passos
Tenho um corpo para t'esperar p'ra ir atrás de ti
Das portas da aurora às portas da sombra
Um corpo para passar a vida a fazer-te amor

Um coração para sonhar do lado de fora do teu sono.

Paul Éluard (1963)
Últimos poemas de amor, Relógio d'Água, 2002

outubro 12, 2015

©E. J. Bellocq Untitled c. 1912

PLAY Radiohead Where I End and You Begin

...  e a realidade desconjuntada a que nos emprestamos...

outubro 10, 2015

©W. Eugene Smith. “As From My Window, Sometimes Glance…”, 1957
PLAY Arvo Pärt Silentium

Neste ofício de ser vivo às vezes,
ostentamos no peito a casa e o prado,
onde procuramos o silêncio de uma oração que nos oiça.
Mas as preces que ansiamos
não vivem nas palavras,
não vivem nas imagens,
não vivem nos sons,
não nos dizem quando somos, quando havemos de ser.

Oramos vezes sem conta;
erguemos bandeiras;
cegamos às escuras;
esculpimos corpos que usamos sem conhecer
e transportamos cansados e vadios,
impacientes, inseguros, intermitentes,
insipientes, inoportunos, esses transeuntes.

Ostentamos no peito a casa e o prado -
ambos vazios - sem oração que nos oiça.
E maldizemos este ofício de sermos vivos às vezes.


©Álvaro Cunhal - Desenhos da Prisão

Não nos tornámos missionários por insistir na elegia, mas demos por nós crentes e nem o espelho pôde afirmar o contrário. Sustivemos a respiração nos intervalos. Fomos o próprio intervalo. Incendiámos o que criámos e, para não deixarmos rasto, ardemos também. E assim abandonámos a elegia, como Cristo renunciaria ser cristão.


outubro 09, 2015

Arco e Flecha

Do arco que empurra a flecha,
Quero a força que a dispara.
Da flecha que penetra o alvo
Quero a mira que o acerta.

Do alvo mirado
Quero o que o faz desejado.
Do desejo que busca o alvo
Quero o amor por razão.

Sendo assim não terei arma,
Só assim não farei a guerra.
E assim fará sentido
Meu passar por esta terra.

Sou o arco, sou a flecha,
Sou todo em metades,
Sou as partes que se mesclam
Nos propósitos e nas vontades.

Sou o arco por primeiro,
Sou a flecha por segundo,
Sou a flecha por primeiro,
Sou o arco por segundo.

Buscai o melhor de mim
E terás o melhor de mim.
Darei o melhor de mim
Onde precisar o mundo.

(Marina Silva)

outubro 05, 2015

©Imogen Cunningham Magnolia Blossom, 1925
PLAY Laurie Anderson Big Science

Esvaziamos o mundo
e há um caule em flor.

A ausência inscreve-se
num tempo que passa
e não pára em nós
        [: o milagre que fomos depura-nos
         mas não nos faz avançar].

Matamos a sede e a fome
numa seiva que não sacia.
Vamos morrendo.

Famintos,
lamentamos que o Amor-Perfeito seja uma flor
que não sabemos cuidar.

Indiferentes,
esvaziamos o mundo com o seu caule.

setembro 29, 2015

PLAY Pēteris Vasks - Vox Amoris Chaarts  - Sebastian Bohren Fantasie für Violine und Streicher

DE TODAS AS FERIDAS
Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio:
Só uma vez no Outono a pedra reverdece - foi ontem;
foi quando o sal nas ruas era tão vermelho,
tão vermelho que se pensaria que era chegada a hora
a que se acena com os véus da meia-noite:
o tempo-de-tulipas dessa hora
em que o desejo enche o copo de toda a gente,
o berço e o caixão de toda a gente,
as pegadas de toda a gente,
a hora que liberta o gelo do teu olhar,
te faz arregaçar a tua sombra
e arranca aos sinos o seu silêncio quando danças.

Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio:
foi ontem
e jaz no sangue como nós dois.

Paul Celan
A morte é uma flor, Cotovia, 1998

setembro 27, 2015

©Harry Gruyaert. Mali. Town of Gao. 1988. Terrace of a local hotel.

PLAY PJ Harvey The dancer

MOLDURA VAZIA
Em toda a parte te encontro ansiando por emoldurar
Uma parte modesta da Sua imensidade,
Significando, suponho, uma data de céu
Da variedade azul e sem nuvens,
Sobre o velho cemitério, por exemplo,
Ou sobre a nova lixeira da cidade
Além da qual fica um campo e três espantalhos.

Um deles podia ser monge alemão, Eckkart,
Dizendo: "Se alguém nada procura,
Que direito tem a queixar-se de nada achar?"
Certo. Não havia um único melro
Vigiando o milho verde,
Por isso elevámos um pouco a moldura
Até onde o silêncio diz tudo.

Charles Simic (1938-2023)
Previsão de tempo para utopia e arredores, Assírio&Alvim, 2002

setembro 26, 2015

[#1] De ler alto

  "Vendo-se sozinho, sem nada de especial que fazer, Watt meteu o indicador no nariz, primeiro na narina esquerda, depois na narina direita. Mas, esta noite, não havia macacos no nariz de Watt.
    Passados breves momentos, porém, o cavalheiro reapareceu, a Watt. Vinha com roupa de viagem e trazia bengala! Mas nenhum chapéu na cabeça, nem nenhuma mala na mão.
    Antes de sair, fez a seguinte breve declaração.
   Oh! Veio tudo ter comigo outra vez, não há dúvida. Esse olhar! Esse desperto vazio cansado! O homem chega! Trazendo atrás dele todos os caminhos escuros, todos, todos dentro dele, os longos caminhos escuros, na sua cabeça, aos seus flancos, nas suas mãos e pés, e fica sentado no lusco-fusco vermelho, de dedo no nariz, à espera de que rompa a aurora. A aurora! O sol! A luz! Ah! Os longos dias azuis para a cabeça dele, para os seus flancos, e os estreitos trilhos para os seus pés, e toda a claridade para tocar e colher. Pela erva fora os estreitos caminhos musgosos, ossudos das raízes velhas, e as árvores espetadas, e as flores espetadas, e os frutos pendentes, e as borboletas brancas exaustas, e os pássaros sempre diferentes, voando como flechas a esconder-se. E todos os sons, que não significam nada. E, depois, à noite, o descanso da casa quieta, deixa de haver estradas, deixa de haver ruas, refugiamo-nos deitando-nos junto à abertura duma janela, chegam os pequenos sons que não pedem nada, não mandam nada, não explicam nada, não propõem nada, e a curta necessária noite vai acabar já, e o céu azul de novo vai vir sobre todos os lugares secretos sempre diferentes, mas sempre simples e indiferentes, sempre meros lugares, sítios de um frémito para lá do ir e vir, de um ser tão ligeiro e livre que é como o ser do nada. Como eu sinto tudo isso de novo, passado tanto tempo, aqui, aqui, e aqui, e nas minhas mãos, e nos meus olhos, como uma face erguida, uma face oferecida, toda confiança e inocência e candura, todo o velho solo e medo e fraqueza que se oferecem, para serem enxaguados com uma esponja e perdoados! Ah! Ou nunca senti isso até agora? Agora, que já não há garantias? Não me surpreenderia. Tudo perdoado e curado. Para sempre. Num momento. Amanhã. Seis, cinco, quatro horas ainda, da velha escuridão, do velho fardo, a clarear, a clarear. É que veio alguém, para ficar. Ah! Todos os velhos tempos conduziram a isto, todos os velhos meandros, as escadas sem um único patamar para uma pessoa se alçar, agarrando-se ao corrimão, contando os passos, a febre dos caminhos mais curtos por sob as longas pálpebras do céu, os caminhos bravios dos campos em que os nossos mortos caminham junto a nós, no cascalho escuro a última curva que se dobra de novo para a pequena cidadezinha, os encontros que cumprimos e os encontros a que faltámos, todas as delícias da mudança de lugar, urbana e rural, todos os existus e redditus,  encerrados e terminados. tudo conduzindo a isto, a este crepúsculo em que um homem de meia-idade está sentado a masturbar a bicanca, esperando o romper da aurora. (...)"

Samuel Beckett (1953)
Watt,  Assírio&Alvim, 2005

©Julia Margaret Cameron (1815 -1879)
Portrait of Julia Prinsep Jackson. Cameron's niece and mother of the author Virginia Woolf]

Acordei com medo de não ser sábado:
manhã do rímel retardado e do lápis esbatido.
Enquanto não for domingo,
adormeço neste sábado
onde me abrigo e me esqueço,
sofro e enlouqueço.

Sábado é dia de ser real,
manhã do baton que já foi,
resquícios da base que já nada esconde.

Sábado é dia de ser -
de ser hoje tão imperfeitamente eu.

Acordei com medo de não ser sábado - mas sou.
"ONDE cheirar a merda
cheira a ser.
O homem podia muito bem deixar de cagar,
deixar de abrir a bolsa anal,
mas preferiu cagar
como poderia ter preferido viver
em vez de consentir em viver morto.

É que para não fazer cócó
teria que aceder
a não ser,
mas ele é que não foi capaz de se resolver a perder o ser,
isto é a morrer vivo.

Existe no ser 
algo particularmente tentador para o homem
algo que vem a ser justamente 
         O CÓCÓ
          (aqui rugido.)

Para existir basta que se condescenda em ser
mas para viver
é preciso ser alguém
é preciso ter OSSOS,
não ter medo de mostrar os ossos,
e de caminho perder a carne.

O homem sempre gostou mais da carne
do que da terra dos ossos.
É porque só o que havia era terra e madeira de ossos
e ele viu-se obrigado a ganhar a sua carne,
só o que havia era ferro e fogo
e merda não,
e o homem teve medo de ficar sem merda
ou antes desejou a merda
e para isso sacrificou o sangue.

Para ter merda,
quer dizer, carne,
ali onde só o que havia era sangue
e um ferro-velho de ossadas
e onde nada se ganhava em ser
mas onde só restava perder a vida
     o reche modo
     to edire
     de za
     tau dari
    do padera coco

Retirou-se o homem então, e fugiu.
E então os bichos comeram-no.

Não foi uma violação,
ele prestou-se a esse obsceno repasto.
(...)"

Antonin Artaud (1948)
Para Acabar de vez com o juízo de Deus, &etc.

[#1] Síndrome de Estocolmo

©Robert Demachy - Struggle, 1904
PLAY Radiohead Paranoid Android

 P r i s ã o     q u e     r e n d e

setembro 22, 2015

[#2] manual de sobrevivência

©raquelsav. 21 setembro 2015




Quando espíritos grandes se revelam, simplesmente...

setembro 15, 2015

Joan Vilatobà. En quin punt del cel et trobaré?, circa 1903-1904© Hereus de Joan VilatobàCortesía Galería A34

"Falámos tanto ou tão pouco que de repente o silêncio que se fez foi essa patada no peito de que guardamos a marca quando agora choramos, quando estendemos as mãos carregadas de dedos mortos, sonhámos tanto que mais de uma vez tivemos de matar, que mais de uma vez estoiraram os olhos sob a pólvora das lágrimas e as tuas mãos voaram estilhaçadas, jogámos tanto que para não nos perdermos arriscámos tudo, até tornarmos a morte uma coisa nossa, tão nossa que é ela que anda agora vestida com a nossa pele e os nossos ossos, escorregando pelas paredes de cabeça p'ra baixo ou subindo pelo interior dos bicos, olhando do alto o sangue que ficou no centro, entre os carris, passando de cadafalso em cadafalso com os lábios furados pelas unhas, com a cintura roxa das dentadas da noite, da miséria dos dias."

António José Forte (1983)
Uma Faca nos Dentes,  Parceria A. M. Pereira, 2003
"Mas aqui estava outra coisa que Watt nunca havia de saber, por não ter prestado a devida atenção ao que se passava à sua volta. Não é que esse conhecimento fosse de algum préstimo para Watt, ou de algum dano, ou lhe causasse algum prazer, ou algum desprazer, que não era nada disso. Mas achou estranho pensar nessas pequenas mudanças, os pequenos ganhos, as pequenas perdas, as coisas que se acrescentam, as coisas que se tiram, a luz dada, a luz tirada, e todas as vãs oferendas à hora, estranho pensar em todas essas pequenas coisas que se agregam ao que chega, ao que está, ao que se vai, estranho não saber nada delas, nada das que existiam desde que ele existia, nada do momento em que tinham vindo, e de como tinham vindo, e como era tudo então comparado com o antes, nada do tempo que tinham perdurado, e como tinham perdurado, e que importava isso, nada do momento em que se tinham ido, e de como tinham ido, e de como era tudo então comparado com o antes, antes de terem vindo, antes de terem ido."

Samuel Beckett (1953)
Watt, Assírio&Alvim, 2005

setembro 07, 2015

©Daniel Blaufuks
    "Não basta ser sincero. Não basta ser sincero uma vez, mas sempre. Para que a nossa vida não fique sendo apenas o reflexo de determinado momento em que fomos sinceros. São tão diferentes as idades da vida de cada um que quem não vai por essa diferença é porque parou numa delas. As idades da vida não se passam por alto: ou se vivem ou ficam por viver. Ou se gasta a sinceridade de cada idade da vida, ou ela toma o incremento de um organismo dentro do nosso organismo, uma excrescência, uma protuberância, um tumor, um tumor maligno, ruim, um cancro!
    Não basta ser sincero toda a vida. Depois de tudo ainda é necessário que a nossa sinceridade seja perigosa. Perigosa para o mesmo e para a sociedade. Não deixemos a sociedade assentar arraiais sem primeiro ter reconhecido pessoalmente a cada um. A ver se, por fim, ela deixa de se ofender com o nosso sincero caso pessoal. A ver se ela acaba por uma vez com aquilo de dar mostras bem duras de ter ficado ofendida com a nossa sinceridade. Ou terá de ser sempre assim? Para ela, a nossa sinceridade será sempre a impertinência de um extraviado, a loucura de um isolado?!"

José de Almada Negreiros (1938)
Nome de Guerra, Assírio&Alvim, 2004

______________________________&____________________________

"Sentir-se próximo dos que veem, não porque começa a ver mas porque os arrasta - aos que veem - para o campo onde todos são cegos."

Gonçalo M. Tavares (2010)
Matteo perdeu o emprego, Porto Editora, 2010