|Assim repito o nome e sinto ainda o incêndio no rosto :|| paul celan |Porque é com nomes que alguém sabe | onde estar um corpo| por uma ideia, onde um pensamento | faz a vez da língua.| herberto helder
julho 31, 2015
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©Francesca Woodman |
Caminho com passos ébrios,
embriagados pelas tintas do mundo,
cega ao vislumbre do meu sangue
- tinta única capaz de me pintar.
Por isso, descrevo um corpo difuso,
sem anunciar as vésperas da minha nudez.
O melhor que sei pintar é um rasto,
ou uma sombra, um esquisso das memórias
do dia em que nos despimos
e desenhámos a denúncia da pista jugular.
No dia em que nos pertencemos,
o mais que existiu foi pó.
E não há tinta ou sangue que jorre sobre a tela,
que o saiba pintar.
PALAVRAS
Machados,
Após cada pancada sua a madeira range,
E os ecos!
São os ecos que viajam
Do centro para fora como cavalos.
A seiva
Brota como lágrimas, como a
Água a esforçar-se
Por recompor o seu espelho
Sobre a rocha
Que pinga e se transforma,
Uma caveira branca
Comida pelas ervas daninhas.
Anos mais tarde
Encontro-as no caminho -
Palavras secas e indomáveis,
Infatigável som de cascos no chão.
Enquanto
Do fundo do charco estrelas fixas
Governam uma vida.
SYLVIA PLATH
Ariel, Relógio D'Água, 1996
Machados,
Após cada pancada sua a madeira range,
E os ecos!
São os ecos que viajam
Do centro para fora como cavalos.
A seiva
Brota como lágrimas, como a
Água a esforçar-se
Por recompor o seu espelho
Sobre a rocha
Que pinga e se transforma,
Uma caveira branca
Comida pelas ervas daninhas.
Anos mais tarde
Encontro-as no caminho -
Palavras secas e indomáveis,
Infatigável som de cascos no chão.
Enquanto
Do fundo do charco estrelas fixas
Governam uma vida.
SYLVIA PLATH
Ariel, Relógio D'Água, 1996
"Vocês ouviram isto? Isto é vernáculo, isto é português de lei. Isto é Vicente e Camões, isto é Camilo irado e sai da boquinha de uma putinha russa, sem eira nem beira.
- Odeio gente que se mete com a literatura e depois não sofre.
- Crístico, muito crístico, menina.
E hebraico. Abrir o livro e depois não viver por ele. E islâmico também, as culturas do Livro, só que essas andam a recuperar. A menina é um compêndio de incitação à violência. Acha que se as pessoas vivessem segundo os livros maiores estavam vivas?
- Os melhores não sobrevivem."
- Crístico, muito crístico, menina.
E hebraico. Abrir o livro e depois não viver por ele. E islâmico também, as culturas do Livro, só que essas andam a recuperar. A menina é um compêndio de incitação à violência. Acha que se as pessoas vivessem segundo os livros maiores estavam vivas?
- Os melhores não sobrevivem."
Maria Velho da Costa
Myra, Assírio&Alvim, 2008
"A sala grande tinha sido transformada num salão de baile, uma discoteca luminosa, o oposto da outra onde ele a levara para ver, e ela odiara a intermitência de brutas luzes e brutas trevas, gente que dançava como marionetas a estrebuchar sem bonecreiro, sem graça e sem vida, gente que dançava mal, braços, pernas e troncos e alma sem acordo ao ritmo, debaixo de um globo de estilhaços de espelho, sem estar em si, sem entrega, a serem visto estar. Estilhaços. Sem o rilhar dos dentes do prazer, do prazer profundo: nadar, dançar, a sós, com o outro, com o mundo. Vanidade e profundeza dos sentidos em diapasão. Com o ritmo. De quê? De quem?
Tento pensar e não chego a lado nenhum, não tenho com quê. Sou burra?
Dissera ela a Gabriel, num serão muito aprazivelmente silencioso.
- Welcome to the club, dissera ele a rir. Mas sabes pôr-te no que estás, Kate. Nunca terás vergonha de uma sensualidade pobre, falsa. Acredita que há gente assim, geralmente escondida num palavreado muito esperto, muito penado, num corpo morto. Não somos burros, somos bárbaros. O burro é um animal civilizado."
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"- Vermelho e preto, darling, que boa escolha, my far lady.
Myra sentiu-se ultrajada.
Pensou, sentido. Disse.
- Sou russa. Levantámos o mundo com a alavanca do bico da foice e os dentes do martelo. Tem de me receber com algo tão corriqueiro?"
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"No andar de cima, ouviam-se agora os acordes jubilosos da Gosse Messe, Et incarnatus est [PLAY].
Rambo disse, Detesto música, embota o ouvido de um cão.
És um rústico, disse Brunilde, um básico. Eles põem música para que os gritos que se seguem, gritos dela, berros dele, sejam ainda mais ferozes, para toda a vida.
Rambo disse, Detesto música, embota o ouvido de um cão.
És um rústico, disse Brunilde, um básico. Eles põem música para que os gritos que se seguem, gritos dela, berros dele, sejam ainda mais ferozes, para toda a vida.
Maria Velho da Costa
Myra, Assírio&Alvim, 2008
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©Irving Penn. Man with pink face, new Guinea, 1970 |
Se te atreves a surpreender
a verdade desta velha parede;
e as suas fissuras, escaras,
formando rostos, esfinges,
mãos, clepsidras,
seguramente virá
uma presença para a tua sede,
provavelmente partirá
esta ausência que te bebe.
Alejandra Pizarnik
Antologia Poética, O correio dos Navios, 2002
julho 30, 2015
"Mas, na noite do Pavilhão Skinner, não havia nenhum desses apoios. Nem ódio para lhe aguçar o amor, nem pontapés do mundo que não era o seu, nem uma carícia, mesmo ilusória, do que mundo que poderia sê-lo. Era como se os microcosmopolitanos lhe tivessem fechado a porta na cara."
Samuel Beckett
Murphy, Assírio&Alvim, 2003
Baricentro ou ponto de equilíbrio do triângulo
"- Sentem-se os dois aí, à minha frente - disse Neary -, e não percam a esperança. Lembrem-se que não há triângulo, por mais escaleno que seja, que não tenha um arco de círculo qualquer a atravessar os chamados pontos de intersecção. Lembrem-se também de que um dos ladrões foi salvo.
- As sacanas das nossas medianas - disse Wylie -, se é que se pode dizer assim, encontram-se em Murphy.
- Fora de nós - disse Neary -, fora de nós.
- Na luz exterior - acrescentou Miss Counihan."
Samuel Beckett
Murphy, Assírio&Alvim, 2003
"Por conseguinte, o conflito, tal como a obsessão de Murphy o simplificava e pervertia, opunha, de uma forma absolutamente fundamental, o grande mundo e o pequeno mundo. (...)
Como dizia Arnold Geulinex, no seu belo belgo-latim: Ubi nihil vales, ibinihil velis."
Mas não bastava não querer nada onde não valia nada, nem sequer chegar ao extremo de renunciar tudo o que fosse exterior ao amor intelectual, que era o único em que podia amar-se a si mesmo, porque em mais parte nenhuma era digno de ser amado. Nunca tinha bastado, e nada fazia crer que alguma vez pudesse bastar. (...) Faltavam-lhe os meios para ser um."
Samuel Beckett
Murphy, Assírio&Alvim, 2003
julho 29, 2015
PLAY Rachmaninov- Vocalise for Violin
Contamos as letras às palavras, nas histórias que não escrevemos. E enchemos os pulmões para as declamar. As histórias já não se escrevem a caneta. Tampouco de palavras. As histórias escrevem-se de ausência em ausência, na exacta medida da descoberta do que nos faz respirar. Em cada respiração da palavra que não escrevemos, da palavra que ainda não existe mas que, no intervalo, havemos de inventar.
E perdemo-nos entre elas. Perdemo-nos nas palavras das histórias que não escrevemos. E sentimos os dias longos- imensamente longos e cheios de palavras que não escrevem histórias. Sabemos que à distância das histórias, sem ausências que se adivinhem, os dias são maiores, tão maiores, sem tempo que meça o intervalo entre o nascer de cada pôr-do-sol.
À distância descobrimos, nas histórias que não se escrevem, que a medida da massa do nosso egoísmo é tão profundamente maior do que julgámos.
Mas porque as palavras flutuam e não desistem, deixamos que a matéria se desvaneça. Tornamo-nos infimamente pequenos- donos de uma história que deixou de ser nossa, por ser maior. Deixamos de existir para podermos ser.
À distância descobrimos, nas histórias que não se escrevem, que a medida da massa do nosso egoísmo é tão profundamente maior do que julgámos.
Mas porque as palavras flutuam e não desistem, deixamos que a matéria se desvaneça. Tornamo-nos infimamente pequenos- donos de uma história que deixou de ser nossa, por ser maior. Deixamos de existir para podermos ser.
Por certo, um dia, alguém inventará as palavras certas para a escrever. Um dia doentio e doce- onde habitaremos ancorados nos instantes infinitesimais do crepúsculo que imaginámos.
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©Francesca Woodman |
PLAY Patti Smith Birdland
Entre nós, tudo o que devemos: as almas - o excesso delas.
Almas que sobram aos corpos.
Almas que procuramos.
Almas incomportáveis.
Almas adicionadas e subtraídas: como cancros que se disseminam no momento da extracção.
(P)Oeiras
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©Donovan Wylie N. IRELAND. Lepper Street, Belfast. Street games. Northern Ireland. 1988 |
PLAY Mark Knopfler Privateering
julho 28, 2015
julho 27, 2015
Estava a pensar que um silêncio de ruídos nem sempre é silêncio, quando se enche de luzes... Estava realmente a pensar que essas luzes, essas estrelas eram a própria distância, aquela que se gera pela distância dos lugares, dos lugares que temos em nós mas que esquecemos, de forma intermitente... desses lugares, montes, rios e vales que são o mundo... ainda bem... ainda bem... pois estava a pensar que um silêncio... uma pausa... uma distância... um esquecimento... uma ponte... uma música e um encontro fazem um mundo... e que o esquecimento, por ser intermitente, faz com que o mundo, seja longe daqui, e a distância desses lugares em nós, seja assim... apenas um silêncio de ruídos intermitentes!
Estava a pensar nas pontes, pontes movediças, como elas se movem, e ainda bem, porque os rios nem sempre ficam onde estão, e os mundos são o que são... ainda bem... ainda bem... porque nem sempre o mundo fica aqui ou ali ou ao lado... e as pontes dão jeito, aqui e acolá... como as cordas que esticam e ligam, a música ao encontro longínquo... ainda bem!
Estava a pensar nesse desejo egoísta que tantas vezes me assola... e, de visita, me faz pensar que as pontes estão lançadas e os mundos criados... e que eles, por serem mundos, teriam um lugar relativo, mas ali...
Estava a pensar nesse desejo, de criar mundos e de os lançar para engrandecer... e a pensar que os engrandecia, por querer ou julgar,...
[Estou a pensar como sou inocente.]
julho 23, 2015
"A nossa dor começa sempre por ser a nossa. Mas há um momento em que descobrimos que nem donos da nossa dor somos. E é isso que inicia um percurso político. É o momento em que descobrimos que essa dor é uma dor de muita gente, em que ultrapassamos esse sentimento de que somos únicos na nossa dor. E de certo modo é isso que torna uma escrita numa escrita madura. Esse momento em que descobrimos, vagamente atónitos, que não somos proprietários de nada. E nem daquilo que achávamos que era mais nosso, porque muito mais nosso do que a felicidade é a dor. Porque a dor dói e a felicidade não se sabe muito bem o que faz. E esse momento em que somos desapossuídos da nossa dor, essa dor não é só tua, essa dor é de imensa gente, nós descobrimos o outro. E o outro, o outro enquanto o outro na dimensão política, é esse que descobrimos. (...) É nesse momento em que a dor se torna comum (...) em que deixa de ser minha é o momento fulcral de qualquer escrita. É o momento político da escrita."
Rui Nunes.
julho 17, 2015
Joy Division Documentary
"Existe um tipo de experiência vital - experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida - que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiências como "modernidade". Ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, auto-transformação e transformação das coisas em redor - mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porem, é uma unidade paradoxal, uma unidade de des-unidade: ela despeja-nos a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, "tudo o que é sólido desmancha no ar"."
Marshall Berman
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@ Thomas Hoepker. Trás-os Montes. 1964 |
A VOZ QUASE SILÊNCIO
vai-se perdendo a voz quase silêncio
um corpo agora oco gasto frio
a morte é uma cor que foi escolhida
para encontrar a direcção do vento
o homem que foi um feto que foi um peixe
que foi o ar que foi o sangue e o gesto
atravessa o mar com círculos nos braços
possuído no seu próprio destino
na descoberta dos focos submarinos
ao nível das estrelas mais brilhantes
e no entanto desde há muito extintas
pode encontrar-se o grande amor final
pesar-se no seu som e qualidade
garganta de alcatrão fundente
vai-se perdendo a voz, quase silêncio
Manuel de Castro
in Edoi Lelia Doura: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por Herberto Helder, Assírio&Alvim, 1985
from son to father
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©Josef Koudelka. Self portrait |
a imagem foge ao espelho
numa exaltação de verdade
a imagem extingue-se
(a verdade é um espelho que dói)
PLAY Jeff Buckley Dream Brother
"Depois de tantas hipóteses, ele pensou que melhor do que uma casa de férias apenas com uma porta e uma fachada, como a sua, só mesmo uma casa com quatro portas, em quadrado, sem nenhuma parede. O senhor Valery chamou-lhe:
a casa das quatro portas juntas. O centro era o único sítio onde se podia estar sentado."
--------------------- (...) ---------------------
- É um sonho que eu tenho, uma casa só com 4 portas. - murmurou o senhor Valery. - Seriam as férias perfeitas. Sem alternativas, rodeado de vazio, não teria de decidir nada. Seria um descanso."Gonçalo M. Tavares,
A Casa de Férias- Histórias do Senhor Valery, Caminho, 2008
julho 16, 2015
" - A vantagem desta concepção - disse Wylie - é que, ao perdermos a esperança de que as coisas possam melhorar, também perdemos o medo de que piorem. Sabemos que continuarão a ser o que sempre foram.
Samuel Beckett
----------- (...) ------------
-A humanidade é uma nora com dois alcatruzes. Enquanto um desce para se encher, o outro sobre para se esvaziar."
Samuel Beckett
Murphy, Assírio&Alvim, 2003
julho 15, 2015
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©Martine Franck MOROCCO. Agadir. 1976.
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PLAY Patti Stmith Birdland
"Não tendo alternativa, o sol brilhava sobre o nada de novo.
(...)
A pouco e pouco, o mundo, o grande mundo onde se apregoavam Quid pro quo e onde o sol nunca se punha duas vezes da mesma maneira, foi-se dissipando, para dar lugar ao pequeno mundo (tal como se descreve no capítulo sexto).
(...)
E foi na rua, numa noite de S. João, estava o Sol em Caranguejo, que ela encontrou Murphy.
(...)
A lua, por uma coincidência notável, cheia e no perigeu, estava 47 000 quilómetros mais perto da Terra do que nos quatro anos anteriores."
Samuel Beckett
Murphy, Assírio&Alvim, 2003
julho 14, 2015
"De todos os tremendos disparates e bruscas precipitações do Turkey à tarde, aconteceu-lhe um dia humedecer um bolo de gengibre entre os lábios e espetar com ele numa hipoteca, a servir de selo. Estive por um triz para o despedir. Mas ele amoleceu o meu intento ao fazer uma vénia oriental, e dizendo:
- Com o devido respeito, senhor, foi generoso da minha parte fornecer-lhe por minha própria conta artigos de papelaria."
Herman Melville
Bartleby, Assírio&Alvim, 2010
(Trad. Gil de Carvalho)
- Com o devido respeito, senhor, foi generoso da minha parte fornecer-lhe por minha própria conta artigos de papelaria."
Herman Melville
Bartleby, Assírio&Alvim, 2010
(Trad. Gil de Carvalho)
Robert Musil
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©Eduardo Gageiro |
Sabe-se que a inteligência média de um país não depende dos beijos ou da ternura dentro de uma família. Depende dos cálculos, quantidade e qualidade de máquinas, e fundamentalmente da linguagem. A análise de uma frase é a melhor régua da inteligência.
Nenhuma conspiração será mais eficaz do que a dos mudos. Ninguém os ouvirá conspirar. Semelhante raciocínio em ironia sádica poderia dizer: nenhuma acção será tão eficaz como a dos amputados de braços: ninguém o verá agir.
A crueldade, no entanto, esta ou outra, poderá ser reduzida a uma hipótese de raciocínio, a uma mera associação de palavras, algo, enfim, que diz respeito ao domínio de uma língua e não à maldade simples.
Todas as sensações ou actos são raciocínios que falharam."
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca, Campo das letras, 2006
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Cornell Capa © International Center of Photography USA. New York City. 1957. American evangelist Billy GRAHAM delivers a sermon at Madison Square Garden. |
" - Não fiques outra vez assim! Ninguém é como tu. Eles não me desprezam como tu; só fingem, para depois poderem ser diferentes. (...) Tu é meigo... e eu amo-te...!
(...)
É verdade, há pensamentos mortos e pensamentos vivos. O pensamento que se move na superfície iluminada, que pode a cada momento ser reconstituído seguindo um fio de causalidade, de modo nenhum é o pensamento vivo. Um pensamento que encontramos por esta via será sempre algo de indiferente, como um homem qualquer na coluna de soldados em marcha. Um pensamento - e ele pode ter já passado pelo nosso cérebro há muito tempo - só se torna vivo no momento em que alguma coisa que já não é pensamento, que já não é lógica, se junta a ele, de tal modo que sentimos a sua verdade, para lá de toda a legitimação, como uma âncora que se soltou e nos entrou pela carne irrigada de sangue, viva...
A percepção verdadeiramente grande de alguma coisa só em parte se dá no círculo de luz do cérebro; a outra parte situa-se no terreno escuro do mundo interior, e é acima de tudo um estado de alma na ponta mais extrema do qual pousa, como uma flor, o pensamento."
Robert Musil
As perturbações do Pupilo Törless, Dom Quixote, 2005
(Trad. João Barrento)
(Trad. João Barrento)
julho 13, 2015
"Nós dois nunca falámos muito a sério sobre estas coisas; afinal, não gostamos de gastar muitas palavras com elas. Mas agora já vês como são vulneráveis os pontos de vista sobre o mundo que as pessoas aceitam sem pensar. Ilusão, é o que é, engano, debilidade mental! Anemia cerebral!O entendimento nelas só dá para ir buscar à cabeça aquelas explicações científicas; cá fora, elas congelam, percebes?
(...)
Tu não me compreendes. Não percebes o que me interessa. Se a matemática me causa problemas (...) é porque eu procuro por detrás dela coisas muito diferentes das tuas, nada de sobrenatural. É precisamente o natural que eu procuro, percebes? Nada fora de mim - é em mim que busco, em mim. Qualquer coisa natural, que, apesar disso, não compreendo! Mas isto é precisamente o que tu não sentes, nem o outro, o da matemática... Ora, deixa-me em paz com as tuas especulações!"
(...)
Ah, como é fácil ser inteligente quando não se conhecem todas as perguntas..."
(...)
Tu não me compreendes. Não percebes o que me interessa. Se a matemática me causa problemas (...) é porque eu procuro por detrás dela coisas muito diferentes das tuas, nada de sobrenatural. É precisamente o natural que eu procuro, percebes? Nada fora de mim - é em mim que busco, em mim. Qualquer coisa natural, que, apesar disso, não compreendo! Mas isto é precisamente o que tu não sentes, nem o outro, o da matemática... Ora, deixa-me em paz com as tuas especulações!"
(...)
Ah, como é fácil ser inteligente quando não se conhecem todas as perguntas..."
Robert Musil
As perturbações do Pupilo Törless, Dom Quixote, 2005
(Trad. João Barrento)
Back to basis, or not.
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A primeira televisão que chegou à Chamusca - campanha da "Farinha Predilecta". |
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©Francesca Woodman, On Being an Angel, 1977 |
Robert Musil
As perturbações do Pupilo Törless, Dom Quixote, 2005
(Trad. João Barrento)
julho 07, 2015
"As lembranças daquelas visitas configuravam-se numa estranha forma de tentação. Bozena aparecia-lhe como uma criatura de uma baixeza monstruosa, e a sua relação com ela, as sensações por que passava eram um ritual cruel de auto-sacrifício. Excitava-o a ideia de deixar para trás todo aquele mundo em que vivia encerrado, a sua posição privilegiada, os pensamentos e sentimentos que lhe impunham, tudo aquilo que não lhe dava nada e o oprimia. Excitava-o a ideia de fugir para junto daquela mulher numa corrida louca, nu, despojado de tudo."
Robert Musil
As perturbações do Pupilo Törless, Dom Quixote, 2005
(Trad. João Barrento)
julho 03, 2015
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©Francesca Woodman- House #3, Providence, Rhode Island, 1976 |
Imagino um Corpo edificante,
louca inocência consentida:
mecânica pura,
engrenagem de corpo:
corpo a corpo
talhada.
Imagino um verbo,
e um poema:
O-poema inscrito,
espelho-Corpo,
Corpo-ricochete
queda amparada.
Imagino
um Corpo,
um tempo,
uma palavra,
uma voz infantil:
[onde o crepúsculo não se esgote.]
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©Henri Cartier-Bresson. Camondo-stairs-Istanbul-1964 |
Inscrevo a nossa sede de impossível
(como namorados os seus corações)
nos troncos das árvores
na manhã metálica e brunida
em bolas de sabão
em todas as faces
Manuel de Castro
Bonsoir, Madame, Alexandria: Língua Morta, 2013
"Não é pequena lástima e confusão que, por nossa culpa, não nos entendamos a nós mesmos, nem saibamos quem somos. Não seria grande ignorância, minhas filhas, que perguntassem a alguém quem era e não se conhecesse, nem soubesse quem foi seu pai, nem sua mãe, nem sua terra? Pois, se isto seria grande estupidez, sem comparação é maior a que há em nós quando não nos procuramos saber que coisa somos e só nos detemos nestes corpos; e assim, só a vulto sabemos que temos alma, porque o ouvimos e porque no-lo diz a fé. Mas, que bens pode haver nesta alma ou quem está dentro dela, ou o seu grande valor, poucas vezes considerarmos; e assim se tem em tão pouco procurar com todo o cuidado conservar sua formosura. Tudo se nos vai na grosseria do engaste ou cerca deste castelo, que são estes corpos."
Santa Teresa de Jesus (Ávila),
As Moradas, Edições Carmelo 2006
Santa Teresa de Jesus (Ávila),
As Moradas, Edições Carmelo 2006
julho 02, 2015
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fotograma de Cavalo de Turim de Béla Tarr |
Aborrecemo-nos com o que nos dizemos - cada um de nós é muito pouco para se bastar;
Somos demasiado egoístas para um diálogo - mas incapazes de sustentar um solilóquio;
Somos demasiado egoístas para um diálogo - mas incapazes de sustentar um solilóquio;
Crescemos como seres de inaudíveis silêncios - matamos por algo que nos acompanhe.
[em último caso, a nós próprios]
"Ele não sabe, mas há tantos mundos como distâncias a que se está do chão, e hoje as mulheres louras não o olham, ou melhor, não o vêem, e os que o vêem não o olham, porque há um conhecimento que vem da proximidade da indiferença. Ele não sabe, mas o seu mundo é o dos que, vendo-o, não o olham, e sabem, e este facto tornou-lhe estranha toda a sua vida, foi ao longo dela e roubou-lha e a sua vida pertence agora a outro, e há nela o vazio de uma casa assaltada."
"nunca foi crente, mas sempre fingiu acreditar para sobreviver. E fingiu tão bem que acabou a acreditar. A crença porém é uma questão de palavras, do seu excesso ou da sua falta. E ele agora não fala. Limita-se a olhar. E a perder-se no labirinto de luz, no resíduo periférico da paisagem, com a sua nitidez inatingível. No centro, uma mancha cresce e empurra o mundo: de início os objectos curvavam-se, como num espelho convexo, mas depois começaram a diluir-se, até se apagarem. E a luz expandiu-se, tornou-se o seu medo. De se perder nela. De à sua volta tudo ficar turvo. Esta luz podia ter um nome consolador. Mas não tem, são simplesmente os olhos a morrer. dantes, quanto mais falava, mais claros ficavam os objectos. E, quando definitivamente se calou, o mundo tinha uma nitidez insuportável. Depois, os seus olhos adoeceram. A luz que os tornava nítidos explodiu. Uma lenta explosão desintegrou formas, limites, cores e distâncias. E ele aprendeu a desviar os olhos, para ver, tentar captar uma nitidez primitiva. Às vezes perguntam-lhe por que não me olhas?
E ele responde: para te ver
é um homem anónimo: morte encerrada na morte. O seu nome morreu quando morreram os que o chamavam. E o tempo serviu-lhe para arrancar todas as raízes. Liberta, a morte repetiu-se.
De manhã, os caminhos são nítidos. Depois, a luz apaga-os.
O homem dobrado sobre a terra soletra o pó. E a mesma palavra endurece-lhe os lábios. Até nada dizer. O silêncio responde ao silêncio. Entre eles o gesto apaga-se, desenhando-se.
Com a tua sombra, abre na luz a porta"
"nunca foi crente, mas sempre fingiu acreditar para sobreviver. E fingiu tão bem que acabou a acreditar. A crença porém é uma questão de palavras, do seu excesso ou da sua falta. E ele agora não fala. Limita-se a olhar. E a perder-se no labirinto de luz, no resíduo periférico da paisagem, com a sua nitidez inatingível. No centro, uma mancha cresce e empurra o mundo: de início os objectos curvavam-se, como num espelho convexo, mas depois começaram a diluir-se, até se apagarem. E a luz expandiu-se, tornou-se o seu medo. De se perder nela. De à sua volta tudo ficar turvo. Esta luz podia ter um nome consolador. Mas não tem, são simplesmente os olhos a morrer. dantes, quanto mais falava, mais claros ficavam os objectos. E, quando definitivamente se calou, o mundo tinha uma nitidez insuportável. Depois, os seus olhos adoeceram. A luz que os tornava nítidos explodiu. Uma lenta explosão desintegrou formas, limites, cores e distâncias. E ele aprendeu a desviar os olhos, para ver, tentar captar uma nitidez primitiva. Às vezes perguntam-lhe por que não me olhas?
E ele responde: para te ver
é um homem anónimo: morte encerrada na morte. O seu nome morreu quando morreram os que o chamavam. E o tempo serviu-lhe para arrancar todas as raízes. Liberta, a morte repetiu-se.
De manhã, os caminhos são nítidos. Depois, a luz apaga-os.
O homem dobrado sobre a terra soletra o pó. E a mesma palavra endurece-lhe os lábios. Até nada dizer. O silêncio responde ao silêncio. Entre eles o gesto apaga-se, desenhando-se.
Com a tua sombra, abre na luz a porta"
Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, Relógio d'Água, 2009
julho 01, 2015
"Tudo isto era tão disparatado e os erros dos outros amestradores de cavalos pareciam-lhe, por vezes, tão assustadoramente chocantes, que até levantou suspeitas sobre si próprio, pois era quase impossível que um indivíduo isolado, ainda para mais inexperiente, impulsionado somente por uma convicção não comprovada, mas sem dúvida, profunda e decididamente inabalável, acabasse por ter razão frente a todos os conhecedores da matéria."
Franz Kafka
Os cavalos de Elberfeld
Contos - 2.º Volume, Assírio&Alvim, 2012