maio 30, 2016

[#9] palimpsesto

- Talvez um dia entendas que sempre foste fome e sede em estado terminal.
- Mais valia acabar com a vida.
- Ou com a morte: mais valia acabar com a morte.
- De qualquer forma, eu lá sou pessoa de entender!
- Nisso tens razão. Não és pessoa de entender, de viver, de morrer.
- Concordo.
- Nem parece teu. Desde quando? Desde quando és pessoa de concordar?
- Eu, agora, concordo com tudo.
- Ou com nada! Concordar com tudo é como concordar com nada.
- Talvez seja melhor magoares-me como quem me belisca.
- Eu? Eu não sou pessoa de magoar. Mas posso sempre gritar, tentar acordar-te.
- Eu adormeci eternamente.
- Adormeceste ou acordaste?
- Adormeci, no dia em que acordei, adormeci.
- Isso é porque não sabes romper com o passado.
- Já te disse que não acredito em passado.
- Acreditas e tudo o que sobra é cobardia: não queres é rompê-lo.
- Se eu acreditasse nele, saberia como o romper.
- A sério? E isso seria como?
- Com os dentes. Só se pode romper com os dentes.
- Até deixar marca?
- Sim, especialmente a marca. Até deixar sangue. Veia. Fractura exposta.
- Tão exposto assim, não há como fazê-lo passado.
- Por isso não acredito nele.
- Acreditas em quê, podes dizer-me?
- Não!
- Porquê?
- Porque vou mudificar.
- Agora até erros ortográficos dás?
- Não é erro, muito menos ortográfico.
- Modificar escreve-se com um O.
- Sim, um O tão redondo como tu: nunca aprenderás a ler para além da letra que aprendeste.
- E tu continuas fome e sede em estado terminal.
- Mudificar: acto de ficar muda.
- O quê?
- _______________________. -
[Gesticulo como quem puxa, imaginária e continuamente, um fio de palavras da garganta: fosse a torrente de pensamentos tão fácil de estancar].
- Definitivamente: fome e sede em estado terminal!

maio 28, 2016

©Heinrich Kühn (1866 -1944)*
"Ulrich fixava a irmã, com a testa enrugada. ‹‹Um homem que não sente a necessidade de alisar um poema antigo, preferindo deixá-lo ecoar na decrepitude de um sentido meio destruído, assemelha-se àquele que jamais aplicará um nariz de mármore novo a uma velha estatueta a que falta o nariz››, pensou. ‹‹Podia chamar-se a isso ter sentido do estilo, mas não é disso que se trata. Nem do facto de o homem ter a imaginação tão viva que a falha não o incomoda. Estamos, isso sim, perante alguém que não dá qualquer valor à perfeição e por isso também não exigirá que os seus sentimentos sejam "totais".›› E, numa transição brusca, concluiu: ‹‹Ela deve beijar sem perder logo o domínio de si!›› Nesse momento, parecia-lhe que não precisava de conhecer a irmã para lá daqueles versos ditos com paixão, para saber que ela ‹‹nunca se entregava completamente a uma coisa››, que também ela era, como ele, um ser de ‹‹paixões fragmentadas››. Até se esqueceu da outra metade de si próprio, aquela que lhe pedia medida e contenção.
(...)
Ela continuava a abraçar a ombreira, com o braço erguido, e um segundo a mais estragaria certamente toda a cena. Ulrich detestava as mulheres que se comportam como se tivessem sido criadas por um pintor ou um encenador, ou que, depois de uma excitação como a de Agathe, acabam num piano artificial. ‹‹Talvez ela pudesse deslizar do seu climax de entusiasmo com a expressão um pouco idiota e sonâmbula de um médium que desperta; não terá outra saída, e também isso vai ser penoso!›› - pensou. Mas Agathe parecia saber disso, ou adivinhara no olhar do irmão o perigo que espreitava: deixou-se cair das alturas do seu entusiasmo com um salto e deitou a língua de fora a Ulrich! Mas depois ficou séria e calada..."

Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. |Trad. João Barrento

[*sugestionada e gentilmente roubada dos ponteiros parados]
"Concentrar-se significa ultrapassar em permanência o nosso próprio comodismo."

Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. |Trad. João Barrento

maio 27, 2016

15
Com o suspiro da amiga,
a noite inteira estremece 
porque uma carícia breve
percorre o céu deslumbrado.

Tal como se no Universo
uma força primitiva
voltasse a querer ser mãe
de todo o amor que se perde.      

Rainer Maria Rilke (1875 -1926) | Frutos e apontamentos | Relógio D'Água | 1996 | Trad. M. Gabriela Llansol

maio 26, 2016

"Na nossa língua, denken (pensar) e danken (agradecer) são palavras da mesma raiz. Quem lhes seguir o sentido, depara com o campo semântico de gedenken (lembrar), eingedenke sein (rememorar), Andenken  (recordação), Andacht (devoção). Permitam-me que vos agradeça a partir daqui."

Paul Celan (1958) | Arte Poética: O Meridiano e outros textos | Cotovia | 1996 | Trad. João Barrento e Vanessa Milheiro

Dunkles Lied

Rings ist das Leid
Und rings die Welt die dunkel fällt.
Ich bin im schwarzen Strom ein einsam hingespieltes Wiegen
Im mir ist Nacht.
Stern ohne
Tod
und Gräber.  


Canção Sombria

Em redor há a dor
E em redor o mundo que cai sombrio.
Eu sou no negro rio um embalar, para ele jogado em solidão.
Em mim há noite.
Estrela sem
Morte
nem túmulos.

Kurt Heynice (1918) | A Alma e o Caos: 100 poemas expressionistas | Relógio D´Água | 2001 | Trad. João Barrento

maio 25, 2016

42
Esta tarde, um nada passa no ar
que me faz baixar a cabeça;
quereríamos rezar pelos prisioneiros,
pela sua vida suspensa.
E ficamos a cismar nas vidas que não atam nem desatam...

Na vida que não se inclina para a morte,
e de onde o futuro se ausentou;
em que é preciso ser inutilmente forte,
e triste, inutilmente.

Em que todos os dias são espezinhados no mesmo lugar,
em que todas as noites descem ao abismo,
em que a consciência da cena fulgor da infância
o profundamente se distancia

que o nosso coração apagado não pode conceber uma criança.
Não é que a vida seja hostil;
é que se lhe mente -
isolados no bloco de um destino imóvel.      

Rainer Maria Rilke (1875 -1926) | Frutos e apontamentos | Relógio D'Água | 1996 | Trad. M. Gabriela Llansol
1
Meu coração, esta noite, fez dos anjos
cantores que se recordam...
Uma voz, quase integralmente sobreposta à minha,
atraída por este excesso de silêncio,

eleva-se e decide
nunca mais voltar à minha;
dulcíssima e intrépida,
com quem se vai ela encontrar?

Rainer Maria Rilke (1875 -1926) | Frutos e apontamentos | Relógio D'Água | 1996 | Trad. M. Gabriela Llansol
VIVO SEM VIVER EM MIM

Vivo sem viver em mim
e tão alta vida espero,
que morro por não morrer.

Vivo fora de mim,
depois que morro de amor,
porque vivo no Senhor,
que me quis só para si.
Meu coração lhe ofereci
pondo nele este dizer:
Que morro por não morrer.
(...)

Santa Teresa de Ávila (1515-1582) | Seta de fogo | Assírio&Alvim | 2011 | (trad. José Bento)

maio 23, 2016

ladrão que rouba a ladrão... não precisa pedir perdão
PLAY Rauelsson | Fluvial

"A viagem é a procura desse nada de nada, dessa pequena vertigem para lorpas..." 
Louis-Ferdinand Céline | Viagem ao fim da noite | Ulisseia | 2010

Não basta encomendar almas,
coçar a orelha como quem descobre o corpo à cabeça,
enquanto impomos à outra mão que nos ampare a trepidação da viagem.

Falta-nos coragem.
Sabemos que nos falta coragem.
Sabemos que a queda não será a mesma se a mão nos acompanhar.
Por isso, não sabemos como a largar,
não sabemos como embalar o corpo na dança comum,
impor-nos sem força, sem leis, sem gravidade,
na massa ligeira dos outros, que dançam.

É à noite, sozinhos e sós, que galvanizamos o desembaraço e lemos poesia
como quem bebe, por osmose,
do desespero comum dessa herança humana.
É à noite, sozinhos e sós, que guardamos a nossa parcela de sabedoria,
que a empoleiramos, quinhão após quinhão,
que,  silenciosamente, ficamos à espera.

E esperamos, infinitamente, dia após dia, que alguém nos compreenda.
E esperamos, infinitamente, dia após dia, que esse alguém sejamos nós.

Mas como podemos desejar andar um pouco acima do chão,
se não sabemos ler a explicação das árvores, dos pássaros,
de todas as moradas que nos foram vedadas no parto,
por nascermos sem pernas, sem olhos, sem ouvidos, sem alma?

Não basta, por isso, encomendar pernas, olhos, ouvidos e almas,
desejar ser o expoente que eleva a Diáspora da Dor,
escancarar a boca como quem sorri,
se nem o corpo sabemos entregar à dança comum.

Somos todos,
somos tantos, tantos na mesma carruagem,
empilhados a aguardar o fim da viagem:
quando nada nos garante que a bruxa nos abra a porta,
mesmo que sejamos os primeiros a chegar.

maio 20, 2016

©Kevin Cummins | Joy Division, Manchester | 6th January 1979

PLAY Joy Divison | Heart and Soul

"Existence well what does it matter?
I exist on the best terms I can 
The past is now part of my future 
The present is well out of hand "

"Em Inglaterra procedia-se, na altura, à canonização de Ian Curtis, e é sempre desagradável assistir a campanhas para a criação de dogmas. E, no entanto, reconheci depois que, a haver um dogma, não poderia, no início da década de 80, haver um dogma melhor."

"Closer é limpidamente belo - pela transparência silenciosa da solidão, sem nunca se transformar em auto-compaixão ou sentimentalismo. É o momento em que nos damos fé duma tristeza insolúvel, e da futilidade de a combater. Não há revolta - apenas um lento despertar, corajosamente assumido e aceitado. O encanto dos Joy Division não é virtuosismo, ou sequer a criatividade da música - é, sobretudo, uma inesquecível sinceridade, despida de efeitos especiais, que se transmite, dir-se-ia por osmose sensível, a quem a ela se expõe."

Miguel Esteves Cardoso | Escrítica pop: um quarto da quarta década do Rock 1980-1982 | Assírio&Alvim | 2003
 
©raquelsav | navegante |2015

"Ulrich levantou-se e esticou os braços, admirado com os seus devaneios. A menos de dez passos dele, do outro lado da parede, estava o cadáver do pai, e só agora reparou que à sua volta havia um formigueiro de gente que parecia sair do chão e se entregava a várias tarefas na casa morta, mas que continuava viva. Mulheres velhas estendiam tapetes e acendiam novas velas, ouvia-se martelar nas escadas, traziam flores para cima, enceravam o chão, e agora toda essa actividade se estendia também até ele: havia pessoas que estavam a pé tão cedo porque precisavam de fazer ou de saber qualquer coisa, e a partir desse momento a azáfama não parou. A Universidade precisava de ter informações sobre o funeral, um ferro-velho, discretamente, queria saber se havia roupas para vender, um alfarrabista da cidade fez-se anunciar, com muitas desculpas, em nome de uma firma alemã, oferecendo-se para adquirir uma obra jurídica rara que deveria encontrar-se na biblioteca do defunto, um padre representante da paróquia, pedia para falar com Ulrich para esclarecer explicações, outro procurava um piano barato, um agente imobiliário deixou o cartão, para o caso de quererem vender a casa, um funcionário aposentado ofereceu-se para escrever endereços nos envelopes, era um constante vaivém de gente entrando, saindo, perguntando, reclamando por escrito ou oralmente o seu direito à existência a estas horas da manhã, tudo objectivamente relacionado com a morte acontecida. Ao portão da casa, o velho criado tentava enxotar os que podia, e lá em cima Ulrich tinha de receber os que conseguiam entrar. Nunca imaginara que havia assim tanta gente esperando delicadamente pela morte dos outros, nem que os corações batem mais depressa quando o outro deixa de bater. Estava espantado, veio-lhe a imagem do escaravelho morto na floresta, e de outros escaravelhos, formigas, pássaros e borboletas esvoaçantes a aproximarem-se dele"


"O jornalista deu-se por satisfeito, já tinha o número de linhas necessário. Ulrich espantou-se com o montinho de cinzas que é tudo o que resta da vida de um homem. Para cada informação recebida, o jornalista tinha na manga fórmulas de seis a oito cavalos: grande sábio, aberto ao mundo, político prudente e criativo, talento universal e assim por diante; decerto não morria ninguém há muito tempo, e as palavras estavam enferrujadas e sedentas de aplicação. Ulrich pensou ainda um pouco; gostaria de ter dito mais alguma coisa de bom sobre o pai; mas o cronista, que já arrumava os instrumentos de escrita, tinha-se limitado a perguntar por factos, e o resto era como se quiséssemos agarrar no conteúdo de um copo de água, mas sem o copo."

Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. |Trad. João Barrento