maio 20, 2016

 
©raquelsav | navegante |2015

"Ulrich levantou-se e esticou os braços, admirado com os seus devaneios. A menos de dez passos dele, do outro lado da parede, estava o cadáver do pai, e só agora reparou que à sua volta havia um formigueiro de gente que parecia sair do chão e se entregava a várias tarefas na casa morta, mas que continuava viva. Mulheres velhas estendiam tapetes e acendiam novas velas, ouvia-se martelar nas escadas, traziam flores para cima, enceravam o chão, e agora toda essa actividade se estendia também até ele: havia pessoas que estavam a pé tão cedo porque precisavam de fazer ou de saber qualquer coisa, e a partir desse momento a azáfama não parou. A Universidade precisava de ter informações sobre o funeral, um ferro-velho, discretamente, queria saber se havia roupas para vender, um alfarrabista da cidade fez-se anunciar, com muitas desculpas, em nome de uma firma alemã, oferecendo-se para adquirir uma obra jurídica rara que deveria encontrar-se na biblioteca do defunto, um padre representante da paróquia, pedia para falar com Ulrich para esclarecer explicações, outro procurava um piano barato, um agente imobiliário deixou o cartão, para o caso de quererem vender a casa, um funcionário aposentado ofereceu-se para escrever endereços nos envelopes, era um constante vaivém de gente entrando, saindo, perguntando, reclamando por escrito ou oralmente o seu direito à existência a estas horas da manhã, tudo objectivamente relacionado com a morte acontecida. Ao portão da casa, o velho criado tentava enxotar os que podia, e lá em cima Ulrich tinha de receber os que conseguiam entrar. Nunca imaginara que havia assim tanta gente esperando delicadamente pela morte dos outros, nem que os corações batem mais depressa quando o outro deixa de bater. Estava espantado, veio-lhe a imagem do escaravelho morto na floresta, e de outros escaravelhos, formigas, pássaros e borboletas esvoaçantes a aproximarem-se dele"


"O jornalista deu-se por satisfeito, já tinha o número de linhas necessário. Ulrich espantou-se com o montinho de cinzas que é tudo o que resta da vida de um homem. Para cada informação recebida, o jornalista tinha na manga fórmulas de seis a oito cavalos: grande sábio, aberto ao mundo, político prudente e criativo, talento universal e assim por diante; decerto não morria ninguém há muito tempo, e as palavras estavam enferrujadas e sedentas de aplicação. Ulrich pensou ainda um pouco; gostaria de ter dito mais alguma coisa de bom sobre o pai; mas o cronista, que já arrumava os instrumentos de escrita, tinha-se limitado a perguntar por factos, e o resto era como se quiséssemos agarrar no conteúdo de um copo de água, mas sem o copo."

Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. |Trad. João Barrento