maio 05, 2016

|O mundo não perdeu apenas Deus, perdeu também o Diabo|

"Mas então Paul Arnheim avançaria e diria ao Senhor: ‹‹Senhor, para quê? O egoísmo é a qualidade mais confiável da vida humana. O político, o soldado e o rei conseguiram, com a sua ajuda e muita astúcia e força, pôr ordem no Teu mundo. É esta a melodia da humanidade. Tu e eu temos de o aceitar. Abolir a força seria enfraquecer a ordem. A nossa missão é dar ao homem a possibilidade de fazer grandes coisas, apesar de ser um bastardo!››
 (...) 
‹‹Mas não será o dinheiro um método tão seguro de tratamento das relações humanas como a força, e não nos permite ele dispensar o uso ingénuo dela? É uma violência espiritualizada, uma forma especial de violência, flexível, requintada e criativa. Os negócios não se baseiam na astúcia e na força, na obtenção de vantagens e na exploração? A diferença é que são atitudes civilizadas, transpostas para a interioridade, como que mascaradas com a aparência da sua liberdade.  O capitalismo, enquanto organização do egoísmo segundo a hierarquia das forças que permite fazer dinheiro, é mesmo a maior e mais humana das ordens que conseguimos criar em Tua honra. Não há medida mais exacta do fazer humano!››"

Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)