agosto 05, 2016

A OUTRA CIDADE
Há muitas solidões cruzadas - diz - em cima e em baixo
e outras no meio; diferentes e semelhantes, forçadas e impostas
ou como que escolhidas, como que livres - mas sempre cruzadas.

Mas no fundo, no centro, há apenas uma solidão - diz;
uma cidade vazia, quase esférica, sem quaisquer
anúncios luminosos multicolores, sem lojas, sem motocicletas,
com uma luz branca, vazia, brumosa, interrompida
por centelhas de desconhecidos semáforos. Caminham silenciosos de braços cruzados,
recordam factos imprecisos, esquecidos, palavras, paisagens,
estes consoladores do mundo, sempre inconsolados, perseguidos
pelos cães, pelos homens, pelos vermes, pelos ratos, pelas estrelas,
perseguidos até pelas suas próprias palavras, ditas ou não ditas.       

Giánnis Ritsos (1909 - 1990) | Antologia | Fora do Texto | 1993 | Trad. Custódio Magueijo

agosto 04, 2016

Em Der Mann ohne Eigenschaften [O homem sem qualidades], de Musil, encontramos uma das mais fascinantes, originais, espirituosas e ricamente abastecidas mentes da literatura alemã. (...) O seu romance serve o liberalismo ao focar-se na consciência de Ulrich, cuja aguda percepção da possibilidade e da contingência o distancia ironicamente das estreitas ideologias que a maioria das pessoas confunde com a realidade. Encarando a realidade como provisória, ele tira um ‹‹sabático em relação à vida›› e observa uma rica série de falsos profetas, polímatos e descontrolados entusiastas de coisas superiores, exigindo ou proclamando novas certezas. Hostil por igual à verborreia deles e à violência latente nos sistemas filosóficos, Ulrich pratica uma abordagem à experiência chamada ‹‹ensaísmo››, que é em simultâneo experimental e rigorosa. Um matemático experimentado (como Musil), ele deseja aplicar a precisão científica a realidades tão evanescentes como as emoções e o misticismo. Longe de ser redutor, Musil emprega uma riqueza de metáforas para captar as mais fugazes tonalidades emocionais. O seu romance funciona da melhor maneira quando as reflexões ensaísticas se entrelaçam com a comédia social"
 
Ritchie Robertson | Do naturalismo ao nacional-socialismo (1890-1945) in História da Literatura Alemã de Helen Watanabe-O'Kelly | EditorialVerbo | 2003
©raquelsav | Fotograma de Kárhozat (Damnation) 1987 | Béla Tarr | Midas

DESENLACE
Talvez eu esteja no meio.
Talvez seja noite. Talvez, crepúsculo.
Uma certeza: faz-se tarde.

Pilinszky János (1921 - 1981) | Antologia da poesia húngara | Âncora Editora | 2002 | Trad. e Selec. Ernesto Rodrigues
"Se o pai é pobre, os filhos gostam de dinheiro, se o papá tem dinheiro, os filhos amam a humanidade."

Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. | Trad. João Barrento
"apadrinha-o com tanto zelo maternal que é capaz de caminhar sobre cadáveres para defender o pacifismo."

(...)
"O pacifismo é um negócio de armamento duradouro e seguro, enquanto a guerra é um risco!

Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. | Trad. João Barrento
"Na cultura, o mais importante é aquilo que ela proíbe, o que não faz parte dela, e pronto. Um homem de cultura nunca comerá o molho com a faca, sabe Deus porquê. "

Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. | Trad. João Barrento
"Não estamos em condições de nos salvar a nós próprios, sobre isso não restam dúvidas. Falamos em democracia, mas ela é apenas a expressão política para um estado de ‹‹Pode ser assim, mas também pode ser de outro modo››. Vivemos na época do boletim de voto. Até votamos todos os anos no nosso ideal sexual, a rainha da beleza, e o facto de termos transformado a ciência no nosso ideal intelectual não significa mais do que pôr na mão dos chamados factos um boletim de voto, para que eles escolham por nós. Este tempo é antifilosófico e cobarde: não tem coragem para decidir o que tem ou não tem valor, e a democracia, reduzida à sua expressão mais simples, significa: Fazer aquilo que acontece! Diga-se de passagem que é um dos mais desonestos círculos viciosos que alguma vez existiu na história a nossa raça."

(...)

"Se quisermos traduzir isso para a linguagem chã e profana de hoje, podemos chamar-lhe a percentagem, que actualmente é assustadoramente baixa, da participação dos indivíduos nas suas experiências e nos seus actos. No sonho ficamos com a impressão de que ela é de cem por cento, nos estados de vigília nem a meio por cento chega! (...) Chamei a isso um dia-(...)- a acústica do vazio."
Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. | Trad. João Barrento
"Parece-me que a verdade, no sentido em que a usas, é uma força que trata mal as pessoas."

Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. | Trad. João Barrento

agosto 03, 2016

Na mesa, divides o pão.
No corpo, a palavra.
Mas nunca entenderás a justiça dessa partilha.
 
RITUAIS
as memórias são facturas em teu nome
sei que o adeus tem os seus rituais e o teu
é deixar-me vazia a despensa dos sonhos

às vezes pergunto o que fizemos mal
vou enviar-te flores todos os outonos podes vir
pelas facturas pelo menos as da luz

estou às escuras por causa dos teus rituais

Pablo García Casado (1997) | Faróis à procura do oceano | do lado esquerdo | 2016 | Maria Sousa (trad.)

Ritos
los recuerdos son facturas a tu nombre / sé que el adiós tiene su ryto y el tuyo/ es dejarme vacía la despensa de los sueños// a veces me pregunto qué hicimos mal/ te mandaré flores cada otonõ puedes venir/ por las facturas al menos las de la luz// estoy a oscuras por culpta de tus ritos

agosto 02, 2016

Como quem rega um nado morto

fotograma "Sacrifício" | Andrei Tarkovsky | 1986 | Leopardo Filmes

julho 26, 2016

julho 25, 2016

----PELO TRILHO ENSOPADO DE CHUVA
o pequeno sermão ilusório do silêncio.
É como se pudesses ouvir,
como se eu ainda te amasse. 

---- AUF ÜBERREGNETER FÄHRTE
die kleine Gauklerpredigt der Stille.

Es ist, als könntest du hören,
als liebt ich dich noch 

Paul Celan (1955) | Sete Rosas Mais Tarde | Cotovia | 1996 


--------MEIO-DIA, CEDO
(...)
O indizível passa, sussurado, sobre esta terra:
é já meio-dia. 

--------FRÜHER MITTAG
(...)
Das Unsägliche geht, leise gesagt, übers Land:
schon is Mittag
Ingeborg Bachmann (1953) | O tempo aprazado | Assírio&Alvim | 1992 


julho 22, 2016

©André Kertész (1894-1985)


---------------------------------------PRAIA BRETÃ
Reunido está o que vimos,
para despedida de ti e de mim:
o mar, que nos lançava noites por terra,
a areia, que as atravessou connosco,
a urze vermelho-ferrugem além
onde o mundo nos aconteceu.

BRETONISCHER STRAND
Versammelt ist, was wir sahen,
zum Abschied von dir und vom mir:
das Meer, das uns Nächte an Land warf,
der Sand, der sie mit uns durchflogen,
das rostrote Heidekraut droben,
darin die Welt uns geschah.

Paul Celan (1955) | Sete Rosas Mais Tarde | Cotovia | 1996 



--------------------------------------UMA ESPÉCIE DE PERDA
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lencóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissémos. Fizémos. E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.


EINE ART VERLUST
Gemeinsam benutzt: Jahreszeiten, Bücher und eine Musik.
Die Schlüssel, die Teeschalen, den Brotkorb, Leintücher und ein Bett.
Eine Aussteuer von Worten, von Gesten, mitgebracht, verwendet, verbraucht.
Eine Hausordnung beachtet. Gesagt. Getan. Und immer die Hand gereicht.

In Winter, in ein Wiener Septett und in Sommer habe ich mich verliebt.
In Landkarten, in ein Bergnest, in einen Strand und ein Bett.
Einen Kult getrieben mit Daten, Versprechen für undkündbar erklärt,
angehimmelt ein Etwas und fromm gewesen vor einem Nichts,

(- der gefalteten Zeitung, der kalten Asche, dem Zettel mit einer Notiz)
furchtlos in der Religion, denn die Kirche war dieses Bett.

Aus dem Seeblick hervor ging meine unerschöpfliche Malerei.
Vom dem Balkon herab waren die Völker, meine Nachbarn, zu grüßen.

Am Kaminfeuer, in der Sicherheit, hatte mein Haar seine äußerste Farbe.
Das Klingeln an der Tür war de Alarm für meine Freude.

Nicht dich habe ich verloren,
sondern die Welt.

Ingeborg Bachmann (1953) | O tempo aprazado | Assírio&Alvim | 1992 


julho 21, 2016

julho 20, 2016

[#1] "furibunda melancolia" | "ironia furibunda"

fotograma de "Nostalgia" | Andrei Tarkovsky (1983)


"Uma gota, mais uma gota fazem uma grande gota, não duas gotas." ("Nostalgia")



------------------------------------------------------------------- 4.

Coloca uma palavra
no vale da minha mudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra.

In die Mulde meiner Stummheit
leg ein Wort
und zieh Wälder groß zu beiden Seiten,
daß mein Mund
ganz im Schatten liegt.

Ingeborg Bachmann (1953) | O tempo aprazado | Assírio&Alvim | 1992 

-------------------------------------------------AQUELE QUE NOS CONTAVA AS HORAS
Aquele que nos contava as horas
continua a contar.
Que estará ele a contar, diz?
Conta e torna a contar.

Não faz mais frio,
nem mais noite,
nem mais húmido.

Só aquilo que nos ajudava a escutar
agora escuta 
para si sozinho


DER UNS DIE STUNDEN ZÄHLTE
Der uns die Stunden zählen, sag?
Er zählt und zählt.

Nicht hühler wirds,
nicht nächtiger,
nicht feutchter.

Nur was uns lauschen half:
es lauscht nun
für sich allein

Paul Celan (1955) | Sete Rosas Mais Tarde | Cotovia | 1996