março 12, 2014

sobre o paraíso ou sobre uma mulher e uma garrafa de vinho tinto


[pego na garrafa para a encetar]
somente decantar no meu olhar 
o corpo fluído da mulher sentada
e assentar em finas memórias
as suspensas partículas dos seus gestos

[encho o copo bem cheio]
corpo denso de invasões florais
especiarias verdes frutos carnais 
Touriga e Carbenet

[sirvo-me de aroma]
a mulher crua
vinho de cor em escrita
de contraste em luz 
na parede que se diga 

[é tinto]
cheiro a sangue da mulher 
transparência de si 
o corpo 
rede absurda 

[trago o oxigénio ao copo]
dissecados os taninos
no corpo jovem
do tinto de casca de uva

[é lágrima no vinho que o copo verte. digo]
o álcool em vapor flui no corpo da mulher casta
tinto frutado Syrah 
oxigénio que se afasta
e regressa no olhar profundo 
da lágrima da mulher

[e é o eco do silêncio do copo depois do brinde. responde]
silêncio_______________

[sirvo-me de um gole na língua inteira, à boca cheia]
mulher que se inspira 
textura ácida verdadeira
delicada pele 
maquilhagem caseira 

[não sou mulher! diz]
nem essência-mulher
nem lógica-mulher


[e inspiro-a pla boca e sorvo-a plo nariz]

[és mulher em carne sólida. de sangue em lágrima vertida no copo depois do eco do silêncio do brinde. corpo absurdo sentado, sólido e concreto... aqui! não, não és imagem de mulher. és o seu olhar. és o seu rosto. és mecanicamente mulher. naturalmente mulher! distraidamente mulher]

[e aqui me confesso, no paraíso, exposto]
encho o copo novamente, bem cheio,
da mulher
do corpo da mulher
da mulher no seu corpo
e bebo-o num só trago

Daniel Faria


Separei os braços
Exilei o coração

Doeu-me tanto
que não sei chorá-lo

Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 391)


Nas pálpebras
da noite
Chorei
cadências
que me ensinaram
que o Amor    Ama-se

Assim teus
Olhos.
Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 9)

março 11, 2014

Gonçalo M. Tavares

solidão e liberdade


Se o homem que dança torto à beira dos abismos cai, e se os dois braços não são suficientes, por vezes surge (mais na ficção do que no outro lado mas surge) um braço, um terceiro braço. É ele que salva. Eis uma forma metafórica de falar das ligações afectivas que salvam, desse terceiro braço- o braço do amigo.
Digamos que o tamanho do corpo depende da quantidade de ligações- uma interpretação da frase de Novalis: a solidão não tem sempre a quantidade um. Existe a solidão magra, a solidão bem constituída e, ainda, a solidão obesa (excesso de ligações, ligações dispensáveis). Porém a sabedoria, desde os estóicos aos mestres budistas, sempre foi firme: destruir ligações ou pelo menos deixá-las cair. Não depender de: objectos, pessoas, hábitos. Desligar-se, portanto. E esta sabedoria poderá ser descrita assim: quanto mais a tua solidão se aproxima do um (1), mais tranquilo ficarás no Mundo. Objectivo: nem paixões positivas, nem negativas, tudo neutro.
As ligações são diminuições de liberdade, eis uma ideia antiga: a indiferença como sinónimo de liberdade; mas também, a ligação como estimulação indirecta do medo: as ligações aumentam os pontos onde temos medo.
O expoente máximo do entendimento da ligação, qualquer que ela seja, como ligação perigosa surge na imagem de um suplício arcaico que consistia em "atar um homem são a um cadáver"; ligação a um morto, a uma massa que não se mexe, mas que nos ameaça; massa que é, ela própria, uma matéria que assusta, que nos põe em causa.


Gonçalo M. Tavares (Atlas do corpo e da imaginação, 2013, pp. 129-130)

março 09, 2014

arqui-te-crua

©raquelsav

PLAY A Naifa - Émulos

sono. muito sono
e ainda agora acordei.
não estou certamente determinada
sobre os émulos do chão em que aterro
ou do letargo da noite ou da vigília da insónia:
em nenhum há paixão que adivinhe vida
conseguisse eu entender porque saltei,
ou não saltei, por o entender

sangue. muito sangue

na guelra da força que chora bruta por dentro
tão erraticamente imanente 
tão erraticamente crua
pavoneando-se orgânica entre a matéria sentida e a matéria pensante,
lugar que habito perfeitamente líquida e imprescindível

leis. muitas leis
das que se escrevem na conjugação dos verbos nus:
ter ser estar querer roubar saltar foder ir voltar beber etc.
no tempo oral e na pessoa da liberdade.
leis geometricamente imprecisas, medidas de luz e breu
onde não se adivinham, reluzentes,
os pigmentos do ser e do mundo 
que se espalham noutros mundos
sem direitos a remissões e agradecimentos

firme. muito firme
o pé que pisa as migalhas que deixei cair por direito
descrevo- passo a redundância- arqui-te-crua a casa 
em espaço tão higiénico, de não se querer viver
ou banho que não lava esta urgência felina: escrever o mundo sobre a forma de paixão, num poema esfoliante do corpo e da ideia que me assola

não confio não confio não confio 
em mim

continua desenhadamente na minha ideia
a confusão:
ideia criadora? ideia canibal?
ideia da razão e da sua mecânica concreta:
      puta que se vende por meia tuta

hoje habito o contraditório
na urgência felina do mundo- o meu. esclareça-se:
recôndito lugar sem chave
não a encontro
não a descubro
não a deixo descobrir, na luz 
do breu nasce o medo de o tornar maior:  
       o mundo- o meu. esclareça-se.

palavra. pouca palavra
sem palavra que se adivinhe
nas indefinidas formas da conjugação verbal dos verbos nus e crus

fui. fomos
voltei. voltámos
fui. fomos
e bebemos (juntos) do silêncio


(9-3-2014)


o poema é o instrumento de medição da paixão, na vida

março 08, 2014

Charlie Chaplin


Discurso de Charlie Chaplin em "O grande ditador" 



"O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém extraviámo-nos. A cobiça envenenou a alma do homem ... levantou no mundo as muralhas do ódio ... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criámos a época da velocidade, mas sentimo-nos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado na penúria. Os nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; a nossa inteligência, emperdenidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos muito pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas duas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido."

março 07, 2014

Krishna Dvapayana Vyasa (?)

Diálogo do Lago no Mahabharata - A Grande luz!

À beira de um lago, Darma interroga Yudishsthira, o último dos pândava a resistir à tentação de saciar a sede nas suas águas.

Dharma diz: não beba da água que é minha. Só lhe concederei tal permissão se me responder às perguntas:
- O que é mais rápido que o vento?
E Yudishsthira respondeu: O pensamento.
– O que pode cobrir toda a terra?
A escuridão.
– Quais são mais numerosos? Os vivos ou os mortos?
Os vivos pois os mortos não o são mais.
– Dá-me um exemplo de espaço.
Minhas duas mãos juntas.
– Um exemplo de tristeza.
A ignorância
– De veneno.
O desejo.
– Um exemplo de derrota.
A vitória.
– Qual é o animal mais astucioso?
Aquele que o homem ainda não conseguiu encontrar.
– O que apareceu primeiro? O dia ou a noite?
O dia. Mas ele precedeu a noite apenas por um dia.
– Qual é a causa do mundo?
O amor.
– Qual é o teu contrário?
Eu mesmo.
– O que é a loucura?
Quando Um caminha esquecido.
– E a revolta? Porque os homens se revoltam?
Para encontrar a beleza, tanto na vida quanto na morte.
– O que é inevitável, para cada um de nós?
(após pequena pausa para refletir)
A felicidade.
– E qual é a grande maravilha?
Todos os dias a morte desfere golpes à nossa volta, várias pessoas fazem a passagem para aquilo que entendemos como morte, e mesmo assim nós vivemos como seres eternos. É esta a maior das maravilhas, respondeu."


in http://manateesp.blogspot.com/2007/09/dilogo-do-lago-no-mahabharata-grande.html

março 06, 2014

Pedro Mexia



Vamos morrer
Vamos morrer, mas somos sensatos,
e à noite, debaixo da cama,
deixamos, simétricos e exactos,
o medo e os sapatos. 

Pedro Mexia (em Senhor Fantasma, 2007) da Antologia da Poesia do Séc XIII ao Séc. XXI, p. 2095

março 05, 2014

Daniel Faria

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.


Daniel Faria
Poesia
Quasi edições


in http://mal-situados.blogspot.pt/search/label/daniel%20faria

março 04, 2014

raquel nobre guerra



Quanto de Areia e Brita

os nossos mestres estão mortos insisto
não exagero que perdemos coragem
até à mãe que pariu isto da beata viva

deram-nos a cruz de latada por onde o diabo trepa
separando por jóias os ocidentais dramas
tudo indica que fosse templo de uma reza trena
um still mudo que dissesse que é urgente tocar
à dura-mater do zoo genético, digo

aos que juram que hão-de salvar isto pela literacia
dêem-me as vossas azias cubro-as de cimento quente
esvazio-vos as barrigas, se havemos de nos ler todos
por mãos gitanas

lembrando a médica teórica da mesótes
foi o oráculo enganando que se enganou
estava torto etc, sublinhe-se a morte facilita
a cerveja assiste no limbo perfeito dos deuses
e seus anexos suicidas

torceram-nos ainda as mãos como molhando-as
sobre a cama não é certo o que dormir
e uma presença de coisas exuberando não chega
para que se imponha ao homem a própria vida

adunámos corpo a corpo multiplicámos fornicámos
até ser virgem a porcaria 

deitámo-nos fora com um murro sensualmente
e abrimos as persianas sobre isto

muitos paraísos seguidos de paraísos e muita merda
a cobrir-nos por cima

Raquel Nobre Guerra (Groto Sato, 2012, p.20)

março 01, 2014

Fernando Pessoa- Bernardo Soares

208.
Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. Tenho uma moral muito simples - não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha de haver no mundo. Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem. Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando julgo que o faço. Sei eu que males produzo se dou esmola? Sei eu que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros vítimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura. Os beneficíos são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente. Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam. Se adoeço, o que mais me pesa é que obrigo alguém a tratar-me, coisa que me repugnaria de fazer a outrem. Nunca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu adoecido, me visitaram, sofri cada visita como um incómodo, um insulto, uma violação injustificável da minha intimidade decisiva. Não gosto que me dêem coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também - aos mesmos ou a outros, seja a quem for. Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou a inofensividade encarnada. Mas não sou mais do que isso, não quero ser mais do que isso. Tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência - nada no coração. Não tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os místicos de todos os misticismos ou, antes e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando esses misticismos são activos, quando pretendem convencer a inteligência alheia, ou mover a vontade alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo. Considero-me feliz por não ter já parentes. Não me vejo assim na obrigação, que inevitavelmente me pesaria, de ter que amar alguém. Não tenho saudades senão literariamente. Lembro a minha infância com lágrimas, mas são lágrimas rítmicas, onde já se prepara a prosa. Lembro-a como uma coisa externa e através de coisas externas; lembro só as coisas externas. Não é o sossego dos serões da província que me enternece da infância que vivi neles, é a disposição da mesa para o chá, são os vultos dos móveis em torno da casa, são as caras e os gestos físicos das pessoas. É de quadros que tenho saudades. Por isso, tanto me enternece a minha infância como a de outrem: são ambas, no passado que não sei o que é, fenómenos puramente visuais, que sinto com a atenção literária. Enterneço-me, sim, mas não é porque lembro, mas porque vejo. Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas - estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) -, isto é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio, não sei bem de quê. É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu: Transeunte de tudo - até da minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada - centro abstracto de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz, nem me importa.
Bernardo Soares (Livro do Desassossego, 2009, pp.219-221)

fevereiro 27, 2014

Pedro Mexia

Percepção
Entre mergulhos
uma pedra rasa salta três vezes
na água.
E assim se divide,
assim se parte
o rio. A infância
dum lado. Do outro
a terra firme
onde isto se passou.


(em Memória, 2000,) da Antologia da Poesia do Séc XIII ao Séc. XXI, p. 2091

fevereiro 26, 2014

Gonçalo M. Tavares

Cepticismo e crença

Céptico como os cépticos, crente como os crentes.
A metade que avança é crente, a metade que confirma é céptica.
Mas o cientista perfeito é também jardineiro: acredita que a beleza é conhecimento. 
(A pessoa bela tem um segredo. Descobriu algo)




Breves notas sobre ciência, Gonçalo M. Tavares, p.38., 2012

fevereiro 24, 2014

José Luiz Tavares



DÚVIDA SOBERANA
(À memória de Wislawa Szymborska)
Não seremos puros, anuncia o poema.
Grão de areia havemos de conter,
o zumbido das moscas, música propícia
do âmago das infinitas brumas declararemos.
Das estrelas apenas o pulsar negro
havemos de saudar.

Grande calamidade a dor de um único
homem. Por isso odes não cantaremos
às esferas, mas as perturbações geológicas
saudaremos com grave equilíbrio,
se bem que com considerável afoiteza
rodopie dentro de nós o tempo zombador.

Se forças nos faltarem para gizar os grandes
voos, um murmúrio seco será então o penhor
da nossa vontade, porquanto mais amamos
o instante em que o espírito sangra
que as fileiras de preciosos pensamentos
dispostos em camadas seculares.
Certamente os olhos brilharão quando o rude chão
os pés tocarem e um oh soltarmos diante
do mundo que se revela. Morte, definitivamente
sim, mas só aos bocados deglutiremos,
talvez à espera do olvido impossível.
O privilégio do silêncio proclamaremos
diante das pedras cujos milénios não contaremos.
O infinito tocaremos só ao de leve, que nossos
curtos braços são precisos para dar à manivela
à celeridade triunfante.
Ressonância terá acolhimento em nosso
seio, mas não debateremos se será matéria
reciclável, pelo menos enquanto nos interrogar
a face esfolada de um único vivo. Alta metafísica,
devolver à procedência. Contrato rescindir com
o desassossego que não seja o eco
da própria vida a debater-se.
Beleza, só a lacerada daremos guarida,
a que emerge dos escombros que dão nome
à derrota, atiça a fome do que não há,
improviso irrepetível, fagulha em extinção,
oração que não redime, mas persiste
impertinente como maleita gerada pela nossa
retumbante miséria.
No entanto, generosos seremos sempre
com as barrigas inchadas, os olhos esbugalhados,
as falanges sem ardor, e por vós testemunharemos,
silenciosas musas, tudo o que é indigno da vossa
majestade, e à vossa presença o levaremos em inefáveis
vestes envolto, sem nada que provoque riso ou cólera.
Contudo, eternidade alguma almejaremos,
sequer a simples verdade, tributos por demais
pesados para as nossas frágeis canelas,
mas bem vinda seja um pouco ou toda a vivaz
liberdade brotada da carne da pura imaginação,
ainda que amiúde rendida à vénia conveniente.
No entanto permiti que protestemos
contra a alegre despreocupada cor azul
à ilharga das pancadas que o escuro arreia
em nossas junturas, não sabendo nós
com que intenções, salvo que nos salta ao caminho
com um alforge de incontáveis repenicantes ruídos.
Uns soluços amealharemos, mas paisagem
de sentimentos não seremos. Um momento
de deslumbramento, e é tudo — voltamos à inicial
mudez da pedra que fala, se interrogada com
os instrumentos convenientes. Não recriminaremos
a pressa se for o vento golfando sobre os povoados.
Abraçar a chuva é excepção permitida, conquanto
nos deixe o hirto pescoço à flor do dilúvio assomado.
Não remiraremos nas águas lustrais o perfil
primitivo ou a felina destreza com que saltávamos
de constelação em constelação, quando com delicadas
luvas o cosmos acolhedor afagávamos e em nosso
cálido regaço o mundo nem ao de leve cedia
ao apalpar inclemente; porém a máscara mais
esfarrapada afilaremos não para o fingimento
nos entreactos em que com esbracejante vigor
alinhavávamos os grandes temas — tempo, solidão,
eternidade —, mas para o desconsolo nosso
ocultarmos e não ofendermos a glória farejada,
a alta omnisciência que escarnece do nosso
desabrochar impuro, ou do assomo farfalhante
de um oceano de dúvidas.
Um bom dia de carantonha ressequida embora
acolheremos quando inferno de pó abraça
a cintura do território, mas não usaremos coloridas
lentes de ler da pedra o movimento, porquanto
confiamos na imobilidade primordial,
e um estremecer fortuito é normal,
seja vivo ou inanimado o assediado pelo temporal.
O sol consentiremos bem repartido pelas
unhas, cabelos e pele, inda que momentaneamente
uma nuvem escale o topo das preocupações
sensíveis. Daí termos a alma de prevenção,
mas bem trancada, que se insinua em tudo, a danada.
A mudança e a metamorfose aplaudiremos,
mesmo se com elas trazem a defenestração fatal.
Motivo de profundo regozijo será para nós
o olhar desdenhoso dos circunstantes
quando arribados à soleira declararmos
«saudações, senhores, somos a peregrina poesia».
Infinitamente compreensivos seremos
com o desiludido que logo se retira grunhindo
«isto não é um poema», mas milagres não
prometeremos, pelo menos nesta estação ou safra:
nas costas corsárias na flibusta outrora embrenhados,
até o ar expelir agora nos custa. Mas asas e bico
de rapina na imaginação teremos e, eia avante
agigantados ante a treva, com lume nos ossos
e bocejo rangente às lacustres moradas então
retornaremos (as sublimes mansões derruídas
foram pela mão do tempo), ao imo do primeiro
ovo, e seremos pão do povo, se pólvora já não
podemos, sequer a simples pedra que se atira
ao cocuruto do destino, aos fundilhos do infinito.
De borco, com o suor do esforço,
ergueremos já não as cidades futuras
onde o passado é longo e refulgente
e batedores trazem novas dos feitos imorredoiros,
mas um sítio apenas onde poisar a cabeça
espreitando o milagre corriqueiro.
Por isso mensageiros já não somos do estertor
dos tiranos nas praças do mundo enforcados,
mas reflectimos logo de manhã a taxa de madrugada
lançada sobre o nascente raio de sol, sobre a viela
que pisamos, e o abraço retribuído com um
entusiasmo de caveiras nas fileiras dos crematórios.
Decerto baixará o rating da dívida, mas aumentará
a soberana dúvida sobre nosso poder de esconjuro e dolo.

Um último suspiro porém guardaremos para gritar
«poesia ou morte», de tal sorte que nosso retorcido
esqueleto em mil estilhas se espalhará. Nossa eterna
tristeza, nossa definitiva derrota porém seria
todo o leitor aqui chegado não declarar
«algo aqui há a acrescentar».
José Luiz Tavares

fevereiro 23, 2014

Raquel Nobre Guerra

Pelicano

enquanto o teu nome não for 
um estado restrito de universo
uma sensação de seres colhido
pelo camaroeiro do Tejo alma
ideia de ser antigo entrar em deus
                                                           por mim

enquanto for semântica na boca

a paixão dos homens e vier um deles 
com pedras macias de dominação
                                                            não direi 

que é inumerável o corpo sendo muitos ou sábio
que as línguas de fogo hão-de tomar a pele 

como texto
                                                              sacro


Raquel Nobre Guerra (Groto Sato, 2012, p.27)

fevereiro 22, 2014

ainda Sophia...

Cíclades
(evocando Fernando Pessoa)
A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença
O teu nome emerge como se aqui
O negativo que foste de ti se revelasse


Viveste no avesso

Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Viúvo de ti próprio
Em Lisboa cenário da vida
E eras o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria
O empregado competente de uma casa Comercial
O frequentador irónico delicado e cortês dos cafés da Baixa
O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo


(Onde ainda no mármore das mesas
Buscamos o rastro frio das tuas mãos
— O imperceptível dedilhar das tuas mãos)


Esquartejado pelas fúrias do não-vivido
À margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
Com meticulosa exactidão desenhaste os mapas
Das múltiplas navegações da tua ausência —
Aquilo que não foi nem foste ficou dito
Como ilha surgida a barlavento
Com prumos sondas astrolábios bússolas
Procedeste ao levantamento do desterro


Nasceste depois
E alguém gastara em si toda a verdade
O caminho da Índia já fora descoberto
Dos deuses só restava
O incerto perpassar
No murmúrio e no cheiro das paisagens
E tinhas muitos rostos
Para que não sendo ninguém dissesses tudo
Viajavas no avesso no inverso no adverso


Porém obstinada eu invoco — ó dividido —
O instante que te unisse,
E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste


Estes são os arquipélagos que derivam ao longo do teu rosto
Estes são os rápidos golfinhos da tua alegria
Que os deuses não te deram nem quiseste


Este é o pais onde a carne das estátuas como choupos estremece
Atravessada pelo respirar leve da luz
Aqui brilha o azul-respiração das coisas
Nas praias onde há um espelho voltado para o mar


Aqui o enigma que me interroga desde sempre
E mais nu e veemente e por isso te invoco:
«Porque foram quebrados os teus gestos?
Quem te cercou de muros e de abismos?
Quem derramou no chão os teus segredos?»


Invoco-te como se chegasses neste barco
E poisasses os teus pés nas ilhas
E a sua excessiva proximidade te invadisse
Como um rosto amado debruçado sobre ti


No estio deste lugar chamo por ti

Que hibernaste a própria vida como o animal na estaçao adversa
Que te quiseste distante como quem ante o quadro pra melhor ver recua


E quiseste a distância que sofreste

Chamo por ti — reúno os destroços as ruínas os pedaços —
Porque o mundo estalou como pedreira
E no chão rolam capitéis e braços
Colunas divididas estilhaços
E da ânfora resta o espalhamento de cacos
Perante os quais os deuses se tornam estrangeiros


Porém aqui as deusas cor de trigo
Erguem a longa harpa dos seus dedos
E encantam 0 sol azul onde te invoco
Onde invoco a palavra impessoal da tua ausência


Pudesse o instante da festa romper o teu luto
Ó viúvo de ti mesmo
E que ser e estar coincidissem
No um da boda


Como se o teu navio te esperasse em Thasos
Como se Penélope
Nos seus quartos altos
Entre seus cabelos te fiasse

1972

de O Nome das Coisas, 1977 in Obra Poética, pp.601-603

março 21, 2013

Ruy Belo

Nau dos Corvos
Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás
Aqui nada decorre e nada permanece
aqui os corvos são a solidão multiplicada
consistente conglomerada mas estilhaçada
unificada mas feita em bocados
De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos
onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água
sai uma voz vasto discurso cada vez
Os corvos são a pedra menos pétrea de cabo
é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo
Nesta nau se efectua esse comércio secular
da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar
A névoa envolve e como que enovela os corvos
a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto
donde em cada momento sai um corvo
aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo
O moreira baptista decerto gostaria que os corvos
se não os palradores os que ganham prémios literários
pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos
poisassem sempre no mais alto do rochedo
mas quando no inverno sopra o vento norte
e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul
e estão-se marimbando para a propaganda
de um país vendido que eles não compraram
eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões
Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis
o infinito aqui começa a acabarem nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível
nem assim se define o que não tem definição
Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens
e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens
Ninguém é cidadão deste tão pétrea pátria
nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça
até que a prostração mais funda no total desapareça
Permite ó nau petrificar aqui
a minha sensação mais passageira
ou o meu mais instável pensamento
Eu nunca até agora e já sou velho vi
quebrar assim o tempo como quebra em ti
Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça
neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa
Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus
que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos
feitos tanto de tempo como de água
finalmente me fosse lícito fechar
definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar
não conseguem optar entre a pedra e o mar
E só agora findas as palavras eu pressinto
pela primeira vez haver algum poema
por detrás do poema pura coisa de palavras
Ruy Belo

fevereiro 09, 2013



Não nascemos inteiramente! Fazemo-nos de uma luta de vontades! 
Fazemo-nos no nosso tempo!
Esticando-o.... encolhendo-o .... 
Encolhendo e esticando o limbo,
sem rede, vara ou colete.
E quebrando... quebrando...
Somos entre o tiro e o ricochete.

Não somos inteiramente! Fazemo-nos de uma luta de vontades!
De disfarce em disfarce
Vestindo-o.... despindo-o.....
Despindo e vestindo a razão,
sem cortina, biombo ou portada.
E desnudando.... desnudando...
Somos no reflexo da partida na chegada.
(#Raquel#9/02/2013)


"Nunca parto inteiramente
Vivo de duas vontades:
Uma que vai na corrente,
A outra presa à nascente
Fica para ter saudades"