|Assim repito o nome e sinto ainda o incêndio no rosto :|| paul celan |Porque é com nomes que alguém sabe | onde estar um corpo| por uma ideia, onde um pensamento | faz a vez da língua.| herberto helder
outubro 22, 2016
Mantra combate (que rima)
PLAY Linda Martini | Amor Combate
Vou escrever-nos no livro das memórias grandes,
lançá-lo aos elementos,
para não mais abrir.
Entre pó e tempestades, engrandecê-lo na idade,
perfeito e eterno
como exemplo a não seguir.
Quando no gume da liça:
- Amor ou Liberdade?
Grito de pulmão cheio:
- Liberdade, meu senhor!
E (em)quanto vivo o nome, não importa qual,
respirarei, em obra ressuscitada,
tão perfeitamente inacabada.
Vou escrever-nos no livro das memórias grandes,
lançá-lo aos elementos,
para não mais abrir.
Entre pó e tempestades, engrandecê-lo na idade,
perfeito e eterno
como exemplo a não seguir.
Quando no gume da liça:
- Amor ou Liberdade?
Grito de pulmão cheio:
- Liberdade, meu senhor!
E (em)quanto vivo o nome, não importa qual,
respirarei, em obra ressuscitada,
tão perfeitamente inacabada.
"Dou-te conhecimento da ocorrência do meu falecimento"
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©Cartier Bresson | Brooklyn New York | 1947 |
outubro 21, 2016
outubro 15, 2016
outubro 14, 2016
Virá a morte e terá os teus olhos
Virá a morte e terá os teus olhos -
esta morte que nos acompanha
de manhã até à noite, insone,
surda, como um remorso antigo
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito reprimido, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando sozinha te inclinas
diante do espelho. Ó cara esperança,
nesse dia saberemos nós também
que és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver no espelho
ressurgir um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Mudos, desceremos ao abismo.
Virá a morte e terá os teus olhos -
esta morte que nos acompanha
de manhã até à noite, insone,
surda, como um remorso antigo
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito reprimido, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando sozinha te inclinas
diante do espelho. Ó cara esperança,
nesse dia saberemos nós também
que és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver no espelho
ressurgir um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Mudos, desceremos ao abismo.
Cesare Pavese (1950)| O Vício Absurdo | &etc
outubro 13, 2016
©raquelsav |
e sorrimos da ironia:
sabemos que só há vida para além do Inverno.
Sete arcos por nove de claustro:
nasce a ruína da pedra,
cresce o espaço, geograficamente estrangeiro.
Adormeço nesse simulacro jugular.
Sonho com o Inverno
e,
onde te adivinho, nasce a flor.
A LUZ IRROMPE ONDE NENHUM SOL BRILHA
A luz irrompe onde nenhum sol brilha;
onde não se agita qualquer mar, as águas do coração
impelem as suas marés;
e, destruídos fantasmas com o fulgor dos vermes nos cabelos,
os objectos da luz
atravessam a carne onde nenhuma carne reveste os ossos.
Nas coxas, uma candeia
aquece as sementes da juventude e queima as da velhice;
onde não vibra qualquer semente,
arredonda-se com o seu esplendor e junto das estrelas
o fruto do homem;
onde a cera já não existe, apenas vemos o pavio de uma candeia.
A manhã irrompe atrás dos olhos;
e da cabeça aos pés desliza tempestuoso o sangue
como se fosse um mar;
sem ter defesa ou protecção, as nascentes do céu
ultrapassam os seus limites
ao pressagiar num sorriso o óleo das lágrimas.
A noite, como uma lua de asfalto,
cerca na sua órbita os limites dos mundos;
o dia brilha nos ossos;
onde existe o frio, vem a tempestade desoladora abrir
as vestes do inverno;
a teia da primavera desprende-se das pálpebras.
A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a
chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.
Dylan Thomas (1914 - 1953) | A mão que assina este papel | Assírio&Alvim
outubro 10, 2016
[#10] palimpsesto
- Música é poesia.
- Que fofinho. "É fogo que arde sem se ver", é coração a rimar com paixão.
- Música e poesia são as expressões mais próximas dos sentimentos e emoções...
- Eu também sou muito eficiente a bater claras em castelo, à mão, esclareça-se.
- Não se pode falar contigo.
- Poder até podes...
- Desde quando és tão chata?
- Ácida e corrosiva?
- Sim.
- Desde o fundo, muito ao fundo, à esquerda. Sempre à esquerda, mas ao fundo.
- Volto noutro dia?
- Para me dizeres que a música e a poesia é ferida que dói e que se sente, como quem come batata quente?
- Por que é que tens de ser do contra?
- Não é o caso. Não sou contra. Só não partilho do nível de profundidade do buraco. Acho que cavei mais de buraco e meio.
- E viraste à esquerda, como quem se enterra?
- Não foi bem assim. Vou cavando e deixando umas cavilhas à esquerda.
- Para quando regressares?
- Não tenciono regressar.
- Para alguém te seguir?
- Só se fosse louco.
- Então, para que raio deixas as cavilhas?
- Sim, para isso.
- Volto noutro dia?
- Noutro dia não serei melhor. Já terei escavado buraco e dois meios.
- Dois buracos, queres tu dizer.
- Não. Buraco mais meio buraco mais meio buraco.
- Não percebes nada de matemática.
- Tanto, como tu de música e poesia.
- Não mistures tudo no mesmo buraco.
- É esse o teu problema. Não escavaste o suficiente.
- E tu?
- Eu ainda não encontrei água. E não espero encontrar luz.
- Um dia explicas-me?
- Duvido! Mas podes sempre lançar-te uma Escada Estreita entre o Ar e a Perfeição.
(....)
- Volto noutro dia, definitivamente.
- É tudo uma questão de advérbios de modo, de cavilha e acordeão.
- Acordeão?
- Sim, do diabo.
- E onde é que eu vou encontrar isso, convenientemente?
- Escavando, escavando muito, muitamente.
_______________
PLAY João Pedro Oliveira | L'Accordéon du Diable
- Que fofinho. "É fogo que arde sem se ver", é coração a rimar com paixão.
- Música e poesia são as expressões mais próximas dos sentimentos e emoções...
- Eu também sou muito eficiente a bater claras em castelo, à mão, esclareça-se.
- Não se pode falar contigo.
- Poder até podes...
- Desde quando és tão chata?
- Ácida e corrosiva?
- Sim.
- Desde o fundo, muito ao fundo, à esquerda. Sempre à esquerda, mas ao fundo.
- Volto noutro dia?
- Para me dizeres que a música e a poesia é ferida que dói e que se sente, como quem come batata quente?
- Por que é que tens de ser do contra?
- Não é o caso. Não sou contra. Só não partilho do nível de profundidade do buraco. Acho que cavei mais de buraco e meio.
- E viraste à esquerda, como quem se enterra?
- Não foi bem assim. Vou cavando e deixando umas cavilhas à esquerda.
- Para quando regressares?
- Não tenciono regressar.
- Para alguém te seguir?
- Só se fosse louco.
- Então, para que raio deixas as cavilhas?
- Sim, para isso.
- Volto noutro dia?
- Noutro dia não serei melhor. Já terei escavado buraco e dois meios.
- Dois buracos, queres tu dizer.
- Não. Buraco mais meio buraco mais meio buraco.
- Não percebes nada de matemática.
- Tanto, como tu de música e poesia.
- Não mistures tudo no mesmo buraco.
- É esse o teu problema. Não escavaste o suficiente.
- E tu?
- Eu ainda não encontrei água. E não espero encontrar luz.
- Um dia explicas-me?
- Duvido! Mas podes sempre lançar-te uma Escada Estreita entre o Ar e a Perfeição.
(....)
- Volto noutro dia, definitivamente.
- É tudo uma questão de advérbios de modo, de cavilha e acordeão.
- Acordeão?
- Sim, do diabo.
- E onde é que eu vou encontrar isso, convenientemente?
- Escavando, escavando muito, muitamente.
_______________
PLAY João Pedro Oliveira | L'Accordéon du Diable
outubro 06, 2016
outubro 04, 2016
©raquelsav | Agosto 2016 | Santa Maria do Bouro |
Imagem atrás de imagem,
folhas de livro:
eu e tu nelas,
como paisagens
indefinidas.
outubro 03, 2016
outubro 02, 2016
PLAY Swans | Little god in my hands
Entretanto, parece que a cotação social da poesia aumentou. As homenagens aos poetas constituem um dos números mais apropriados da saison:
(De entrevista a António José Forte)
Entretanto, parece que a cotação social da poesia aumentou. As homenagens aos poetas constituem um dos números mais apropriados da saison:
AJF: De há uns tempos a esta parte que um verdadeiro bando, ao que parece organizado, constituído por literatos, comerciantes, necrófilos e patetas, se vem dedicando a essa nefasta actividade, São já especialistas. A verdade é que nunca tantos, ao mesmo tempo, tentaram assassinar a poesia. E em nome dela, como convém ao cinismo."
(De entrevista a António José Forte)
outubro 01, 2016
Hoje é o teu dia, a tua noite. Quer dizer, para mim, todos os dias e todas as noites têm sido o teu dia. Desconfio que sempre assim será. Para quem segue as leis e celebrações, é mais cómodo e legítimo admiti-lo em data cíclica: e hoje é o teu dia, a tua noite, e sinto-os, tão irracionalmente, um pouco meus, também. Por isso celebro(te) nesta noite que inicia o dia, o teu.
setembro 30, 2016
setembro 09, 2016
Cesariana
No fim da tarde eu observo as abelhas
na sua telepatia intermitente.
Um cuco canta. As rãs, ao simples movimento
dos meus pés, saltam para dentro da água.
E a casa em frente alberga outros fantasmas
que se recusam ao meu imaginário.
Pergunto a esta paisagem pela minha paisagem.
Nenhuma voz interna aqui dilata o espaço
e vem chegando o vento.
Ouço-o cantar na folhagem em flor
das laranjeiras.
O homem está presente: a escada junto ao muro,
a terra bem tratada de um faval em flor
das laranjeiras.
O homem está presente: a escada junto ao muro,
a terra bem tratada de um faval ao longe.
Não posso aceitar esta solidão
que o céu, agora em concha, fechou
dentro do dia contra a natureza.
Esta casa repele a minha vida.
Com os olhos cheios de lágrimas,
aguardo que a memória apunhale a casa
e crie para mim outras moradas.
Armando Silva Carvalho | Sentimento dum Acidental | Contexto de Poesia | 1981
No fim da tarde eu observo as abelhas
na sua telepatia intermitente.
Um cuco canta. As rãs, ao simples movimento
dos meus pés, saltam para dentro da água.
E a casa em frente alberga outros fantasmas
que se recusam ao meu imaginário.
Pergunto a esta paisagem pela minha paisagem.
Nenhuma voz interna aqui dilata o espaço
e vem chegando o vento.
Ouço-o cantar na folhagem em flor
das laranjeiras.
O homem está presente: a escada junto ao muro,
a terra bem tratada de um faval em flor
das laranjeiras.
O homem está presente: a escada junto ao muro,
a terra bem tratada de um faval ao longe.
Não posso aceitar esta solidão
que o céu, agora em concha, fechou
dentro do dia contra a natureza.
Esta casa repele a minha vida.
Com os olhos cheios de lágrimas,
aguardo que a memória apunhale a casa
e crie para mim outras moradas.
Armando Silva Carvalho | Sentimento dum Acidental | Contexto de Poesia | 1981
China
(Final do século XVI)
Beber, empanturrar-se, fornicar, à mão comer das raparigas
Vai-se a energia e o sangue que há nas veias.
Perdes a esporra, mijas sangue e tutano
Sem azeite, na candeia, a vasa seca.
Então nunca tinhas dos prazeres bastante
Agora são por demais maleitas e dolências.
Que bela montanha: por ela própria voltada e derrubada.
E no final - para que servem - os remédios?
Poemas anónimos (Turcos, Mongóis, Chineses e incertos) | Assírio & Alvim | 2004
(Final do século XVI)
Beber, empanturrar-se, fornicar, à mão comer das raparigas
Vai-se a energia e o sangue que há nas veias.
Perdes a esporra, mijas sangue e tutano
Sem azeite, na candeia, a vasa seca.
Então nunca tinhas dos prazeres bastante
Agora são por demais maleitas e dolências.
Que bela montanha: por ela própria voltada e derrubada.
E no final - para que servem - os remédios?
Poemas anónimos (Turcos, Mongóis, Chineses e incertos) | Assírio & Alvim | 2004
setembro 06, 2016
setembro 01, 2016
agosto 31, 2016
![]() |
©raquelsav | Agosto2016| Mosteiro- Pitões das Júnias |
"Por fim, foi à magia que coube a honra de se instalar entre os meus escombros e, ainda hoje, quando me passeio entre eles, descubro vestígios. Mas na maior parte das vezes trata-se de um lugar sem projecto nem limite, onde existem até materiais que me são estranhos, sem falar na sua disposição. E a coisa em ruínas, não sei o que é, o que foi, nem, por consequência, se não tratará menos de ruínas do que de uma sólida confusão de coisas eternas, se é que é esta a expressão correcta. É, em todo o caso, um lugar sem mistério, a magia abandonou-o, considerando-o sem mistério. E se não vou até lá de boa vontade, vou porventura com um pouco mais de boa vontade do que a outro lugar qualquer, surpreso e tranquilo, diria como um sonho, mas nem assim, nem assim. Mas este não é um desses lugares a que se vai, mas sim daqueles lugares onde, por vezes, nos encontramos sem saber como, e que não se abandonam quando se quer, e onde nos encontramos sem qualquer prazer, mas com menos desprazer, porventura, do que nos lugares de onde nos podemos afastar ao sentirmo-nos mal neles, lugares misteriosos, cheios de mistérios conhecidos. Escuto e oiço-me ordenar um mundo imóvel, em desequilíbrio, sob um dia frágil e calmo, sem mais, suficiente para o ver, compreendem, e também ele imóvel. E oiço murmurar que tudo se verga e curva, como sob o peso de fardos, mas aqui não há fardos, e também o solo, difícil de transportar, bem como o dia, para um fim que parece não existir. Pois que fim existe para estas solidões para quem a verdadeira claridade nunca existiu, nem o equilíbrio, nem a base, mas sempre essas coisas pendentes resvalando num aluimento sem fim, sob um céu sem memória de manhã, nem esperança de tarde. Essas coisas, que coisas, vindas de onde, feitas de quê?"
Samuel Beckett (1951) | Molloy | Relógio d'Água | 2003
agosto 19, 2016
nothing really ends
![]() |
©Luigi Pirandello | Diana e la Tuda | 1926 |
"Ela foi uma flor que se aspira e se deita fora - quase sem reparar - cismando na imortalidade da alma. As suas palavras raras e baixinhas, pronunciadas com medo de pousar, entristeciam-me, e a sua palidez que os negros cabelos emolduravam, dava-lhe o ar duma criatura que não pertencia a este mundo.
Se eu pudesse cinematografar a vida e a morte de uma flor, cinematografava a sua vida. Não valia nada - o que vale um pássaro, e em questões afectivas, em ternura, tinha a profundidade do mundo - a do silêncio - a do sonho.
Não sei dizer se existiu, se a criei, e o que na realidade me interessa é o que ela disse à grande nódoa de humidade da parede.
Sei que chorou mas não a ouvi chorar. Ninguém a ouviu, ninguém deu por ela. Passou como uma sombra. Habituou-se. As lágrimas sumiu-as, meteu-as para dentro. A dor aprendeu a contê-la. Habituou-se a queixar-se à grande nódoa de humidade da parede. E o principal para mim foi essa queixa que ninguém ouviu no mundo; foi o que os seus olhos verdes de espanto decifraram naquele arabesco da parede. Podes porventura conceber isto? Uma dor que não deixa vestígio, um sonho ignorado que não deixa vestígio, que passa no mundo e não deixa vestígios - a dor despercebida, as lágrimas contidas que se não chegam a chorar?
Posso dizer que só dei por ela depois de morta. As horas belas perdi-as a sonhar, quando a vida estava a meu lado. Eu não vivi! Só agora é que me lembro dela, como duma tarde que viesse devagarinho na ponta dos pés, e se fixasse num minuto, no silêncio, nas coisas suspensas na luz - nos botões quase a abrir.
Estraguei tudo, estraguei a minha vida e a sua vida.
O dia de hoje não existe para mim: só penso com sofreguidão no dia de amanhã. Ora amanhã é a morte. E sucede também que só dou pelas coisas belas da vida, depois que passaram por mim, e que as não posso ressuscitar. Há na vida um único momento. Um momento que sorri. Que concentra em si todos os momentos. Troquei-o pelo absurdo. Troquei a vida pela morte. Só agora seus olhos verdes de espanto me chamam, seus olhos que exprimem o irreal e o mundo todo, seus olhos cheios de dor represa e de sonho coado por lágrimas....
É que há entre figuras que compõem o meu ser, duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma que crê, outra que não crê. Há uma capaz de todas as cobardias, outra capaz de todas as audácias. Há uma pronta para todos os rasgos e outra que a observa e comenta.
Mas há entre as figuras que compõem o meu ser, uma que está calada. É a pior. Olha para mim e basta olhar para mim para que eu estremeça.- Por muito que me acuses, já eu me tenho acusado muito mais!
Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos teus olhos, a sofreguidão profunda dos teus olhos, que me reclamam como um abismo de dor e de espanto onde encontro enfim a vida!
Se te quisesse descrever, não te podia descrever. Sei que me pertences e que te pertenço."
Não sei dizer se existiu, se a criei, e o que na realidade me interessa é o que ela disse à grande nódoa de humidade da parede.
Sei que chorou mas não a ouvi chorar. Ninguém a ouviu, ninguém deu por ela. Passou como uma sombra. Habituou-se. As lágrimas sumiu-as, meteu-as para dentro. A dor aprendeu a contê-la. Habituou-se a queixar-se à grande nódoa de humidade da parede. E o principal para mim foi essa queixa que ninguém ouviu no mundo; foi o que os seus olhos verdes de espanto decifraram naquele arabesco da parede. Podes porventura conceber isto? Uma dor que não deixa vestígio, um sonho ignorado que não deixa vestígio, que passa no mundo e não deixa vestígios - a dor despercebida, as lágrimas contidas que se não chegam a chorar?
Posso dizer que só dei por ela depois de morta. As horas belas perdi-as a sonhar, quando a vida estava a meu lado. Eu não vivi! Só agora é que me lembro dela, como duma tarde que viesse devagarinho na ponta dos pés, e se fixasse num minuto, no silêncio, nas coisas suspensas na luz - nos botões quase a abrir.
Estraguei tudo, estraguei a minha vida e a sua vida.
O dia de hoje não existe para mim: só penso com sofreguidão no dia de amanhã. Ora amanhã é a morte. E sucede também que só dou pelas coisas belas da vida, depois que passaram por mim, e que as não posso ressuscitar. Há na vida um único momento. Um momento que sorri. Que concentra em si todos os momentos. Troquei-o pelo absurdo. Troquei a vida pela morte. Só agora seus olhos verdes de espanto me chamam, seus olhos que exprimem o irreal e o mundo todo, seus olhos cheios de dor represa e de sonho coado por lágrimas....
É que há entre figuras que compõem o meu ser, duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma que crê, outra que não crê. Há uma capaz de todas as cobardias, outra capaz de todas as audácias. Há uma pronta para todos os rasgos e outra que a observa e comenta.
Mas há entre as figuras que compõem o meu ser, uma que está calada. É a pior. Olha para mim e basta olhar para mim para que eu estremeça.- Por muito que me acuses, já eu me tenho acusado muito mais!
Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos teus olhos, a sofreguidão profunda dos teus olhos, que me reclamam como um abismo de dor e de espanto onde encontro enfim a vida!
Se te quisesse descrever, não te podia descrever. Sei que me pertences e que te pertenço."
Raul Brandão (1917) | Húmus | Relógio d'Água | 2015