agosto 10, 2019

©raquelsav | agosto 2019 | mm
PLAY Peter Gabriel | My body is a cage

"My body is a cage that keeps me
From dancing with the one I love
But my mind holds the key"
 

junho 19, 2019

Na impossibilidade da amizade ter um fim,
continuar a amar é dizer adeus.

Daniel Faria (1971 -1999) | Poesia | Edições Quasi | 2006

junho 18, 2019

©six_feet_under
"Debaixo destes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la. O sino toca a finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimónia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões-de-visita. Se eu pudesse restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor mata-borrão. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criptogâmica, nascida ao acaso em sítio húmido. (...)

Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos. Construímos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até à cova com palavras. (...)

Se nos detivéssemos com palavras, se avançássemos, todos ao mesmo tempo, esquecendo o que é inútil, para esta coisa que nos devora, subjugávamo-la. Conquistávamo-la por uma vez, por maior que ela fosse. Mas nenhum de nós se atreve e passamos a vida a fingir que não existe "      

Raul Brandão (1917) Húmus | Relógio d'Água | 2015

junho 16, 2019

©six_feet_under




PLAY Billie Ellish | Six Feet Under

"Our love is six feet under
I can't help but wonder
If our grave was watered by the rain
Would roses bloom?
Could roses bloom?

They're playing our sound
Laying us down tonight
And all of these clouds
Bringing us back to life
But you're cold as a night"
©six_feet_under

maio 05, 2019

"A casa é a casa de família, é para lá pôr as crianças e os homens, para os manter num lugar feito para eles, para conter a sua perdição, para os distrair desse humor de aventura e de fuga que é o deles, desde o princípio dos tempos. Quando se aborda esse tema o mais difícil é chegar ao material liso, sem asperezas, que é o pensamento da mulher em torno dessa empresa demente que uma casa representa. A de procurar o ponto de união comum às crianças e aos homens.
    O próprio lugar da utopia é a casa criada pela mulher, essa tentativa à qual ela não resiste, e que é a de interessar aos seus não a felicidade mas na procura dela, como se os próprio interesse do empreendimento andasse em torno dessa procura, exactamente, e não se pudesse rejeitar com firmeza a proposta só por ser geral. A mulher diz que é preciso simultaneamente desconfiar e compreender esse interesse singular pela felicidade. Pensa que isso vai levar as crianças, mais tarde, a procurarem um estado feliz da vida. É o que pretende a mulher, a mãe, levar o filho a interessar-se pela vida. A mãe sabe que o interesse pela felicidade dos outros é menos perigosa para a criança do que acreditar na felicidade para a própria. (...)
    São as coisas em que as mulheres pensam muito, durante anos, e que fazem o leito do pensamento delas quando as crianças são pequenas: como evitar-lhes o mal. E isso para quase nunca levar a nada. 
(...)
   A casa interior. A casa material.
   A primeira escola foi a minha própria mãe."

Marguerite Duras | A vida material | Difel | 1987

maio 03, 2019

 
©raquelsav | 2019

PLAY Chet Baker | Almost Blue
 
Seria seguro que nos amarrassem os pés ao céu,
se neles houvesse todo o peso da terra.
Levitar, assim, distraidamente,
num poema inventado para fazer voar,
desses de dar asas a quem não tem onde cair vivo.
E, tão pesadamente, voar mesmo assim,
para esses lugares onde nascem os verbos
e repousam, sem fim, as palavras que não existem,
ainda.
fotograma "Ordet"  | 1955 | C. T. Dreyer

maio 01, 2019


fotogramas "Ovsyanki" | 2010 | Aleksei Ferdorchenko

“A água é o sonho de todo o Merja. Afogamentos para sufocar de  ternura, alegria e saudade. Se encontramos alguém que se afogou, não o queimamos. Nós amarramo-lo a um peso e devolvemo-lo à água. A água substitui o seu corpo por um novo, flexível. Morrer da água é a imortalidade para um Merja. (...)

Meu pai sonhava com afogamento, mas os Merja não se afogam. É descortês correr para o céu à frente dos outros. A própria água escolhe as pessoas. Ela é o juiz. (...)

O corpo de uma mulher também é um rio que leva a tristeza embora. A única pena é que não nos podemos afogar nele.
 

abril 16, 2019

©Ana_Paula_Lopes

PLAY Jordi Savall | Lachrimae Caravaggio

Adormeci a nascente,
para não mais acordar.
E o sol, sobre azul celeste,
assim se pôs,
em luz dourada,
que tudo iluminou.

Apenas do crepúsculo -
o Renascer.

março 15, 2019

©raquelsav | MM | março2019
PLAY Peteris Vasks | Vox Amoris" Fantasie für Violine und Streicher

Hão-de cair estrelas pelo mar,
para habitar a onda extensa de sal,
num rasto concêntrico de espuma,
que assina, pela mão,
uma história milenar.
Não.
Não quisera fazer da história um mar,
sequer um rito de onda em maré,
de sol em lua,
assinatura menstrual dos dias sãos.
Há uma orla de pé que não sabe
da terra gasta e nua,
terra casta em mar déspota,
a reflectir um céu cru.
Há um escravo maduro da maré,
um exoesqueleto de coral,
quarteto desafinado,
que resiste pela espuma e pelo sal.
Mas a terra que tarda,
da estrela que não cai,
diz de si em rito jugo:
- Não.
Não hão-de cair estrelas pelo mar,
nem a espuma há-de dançar na orla da maré.

Não há terra que não seja fria,
e a febre aquece mas não berra,
não se ouve,
só se esquece.
Não. Não quisera fazer do mar essa história.

março 02, 2019

 
Gilles Peress | ZAIRE. Goma. 1994. Near the border of Rwanda.

She stood by the door
of her Virginia farm
pulling a sweater on
the branches
of the dogwood
she had tended
were bowed
blossoms loosened
tossed in sudden snow
the deer stood
in mute wonder
by her garden’s edge
she slipped the phone
in her pocket
her daughter
unharmed
among
petals gone
she snapped
a branch
a tempest stalled
she felt the boy
she felt the dead
she felt the families
she felt the wind
the deer don’t do that
she said
the deer don’t do that

Patti Smith 
(in https://www.newyorker.com/magazine/2007/05/07/tara)

fevereiro 19, 2019

©raquelsav | MM | fev2019


PLAY Conan Osíris | Obrigado
 
Acordei para roubar palavras ao céu,
e quem foi assaltada fui eu.

fevereiro 15, 2019

 Se é uma criança, diz: eu cá sou cor-de-laranja.
Crianças de pensamento.
Sou amarela.
E pela sua força apenas se concentram as frutas
por todos os lados iluminadas
a vento, a oxigénio.
As crianças entram no sono que as aguardava como uma sala.
Eu cá sou caldeada na minha labareda.
O sono fecha-lhes os ombros à sua própria volta.
E quem tem tanta memória que a massa de átomos,
quando passe,
encrespe, acorde, alumie a última criança?
O mistério é só este: primeiro são cor de pólen,
transfundem-se depois em palavras siderais, botânicas.
As frutas adoçam-se.
Sacode-se a árvore do ar: eu cá sou de plutónio, chamejo, caio.
Os dias separam-se das suas trevas internas.

herberto helder | Ofício cantante | Assírio & Alvim | 2009

fevereiro 14, 2019


Acto Terceiro
 [Já estamos “em cima da hora”, a peça começa não tarda]

- Anda, veste o casaco.
- Não é preciso, não tenho frio.
- Anda, veste o casaco.
- Já te disse que não tenho frio.
- E eu já te disse que sou tua mãe, compete-me proteger-te, principalmente de ti própria. Veste.
             
       Quantos casacos teremos, teimosamente, deixado de vestir, mesmo quando nos sabíamos com frio? Quantas vezes insistimos na dor, e nela encontramos a melhor forma de estar? Quanta dessa dor não é uma cultura que "determina um conjunto de movimentos, um tipo de sofrimento"[2]? E quantas linguagens inventamos para a expressar? Se “conceber uma linguagem é conceber uma forma de vida"[3], quantas vidas terão ficado por criar?  Se “na sua necessidade de lidar com o coração humano em conflito, no seu desejo de reconciliar as contradições apresentadas pelo sofrimento, pelo medo e pela fúria, e na busca do bem-estar, os seres humanos optaram pela maravilha e pelo deslumbramento e descobriram a música, a dança e a pintura, e a literatura.”[4], por que razão não somos, diariamente, música, dança, pintura ou literatura? E se os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo[3], quão quadradas são as paredes que habito?  Se, de facto, "quando um grande artista fixou, pela imagem, um gesto ou um olhar, uma silhueta ou uma paisagem, escreveu um poema ou orquestrou uma sinfonia, ou quando um cientista encontrou uma explicação para um fenómeno da natureza, o fez obedecendo à voz interior dos seus impulsos geniais, numa situação de posse, de transe ou de sofrimento, de êxtase ou de amor”[5], por que não investimos na descoberta da melhor linguagem que nos assiste, ou que assistiria ao que, por dever, deveríamos assistir? Por que não criamos lugares seguros para o que mais estimamos e insistimos no “temos de ser” e “temos de parecer”, como se “a temporalidade do quotidiano não se reduz[ísse] a uma temporalidade cíclica, repetitiva, vivida exclusivamente no presente?"[6]
-  Mãe, está ali a menina das explicações.
-  Pois está, fui eu que pedi que viesse ver a peça.
- Vais dar explicações de Matemática na peça? (que saudades tive de te ouvir dizer, errada, mas tão deliciosamente – matemárica)
-  Sim.
-  Sim? Trouxeste os livros?
-  Não, a peça Tiques e Manias é a explicação.
-  Não estou a perceber nada.
- Um dia, eu explico-te – agora não, a peça está a começar. 

Congratulei-me com o sentido de oportunidade dos actores – pouparam-me a um longo discurso. Os actores entraram em palco e eu senti-me um deles, transportada pela sua energia. Resisto à razão, mas procuro-a, involuntariamente. Tento encontrar razões para o que sinto quando assisto a uma peça, quando leio, quando oiço uma música,  essa “adesão à ficção como uma espécie de estado hipnótico (...) uma perda temporária da autorreferência” [7]. E revejo-me nesse caminho onde me esqueço mas que me sinto, como em nenhum outro, verdadeiramente próxima de mim.
Ocorre-me Beckett, estou preocupada com o cão – ficou sozinho em casa, deve estar assustado.  E Beckett o dramaturgo, "no" Teatro da Trindade , essa viagem “À espera de Godot", onde me senti tão real, tão absurdamente real. Lembrei-me do que li num livro, há uns tempos: “O absurdo invade a realidade, o mesmo absurdo transforma o real, e o teatro que o contempla, por sua vez, tornar-se-á realista" [8]. 

- Mãe, vamos para casa? Estou cheia de sono e quero ver bonecos. 
- Tens razão, foi um dia grande. 
- Mãe, os dias são sempre iguais. 
- Sim, mas há uns maiores do que outros.
- Sabes o que eu gostava de ser?
- Quando fores grande?
- Eu já sou grande!
- Pois és.
- Não,  o que eu gostava de ser sempre.
- Professora de animais?
- Gostava de ser um jogo de computador.
- Que coisa mais estranha, porquê?
- Porque assim tinha muitas vidas.
- E não te chega uma?
- Pois, tem de chegar, mas é pena.
- Pena porquê?
- Porque cada dia que passa é único. Não vou voltar a viver este dia, este momento. E isso é pena.
- Teres pena é meio caminho andado para não viveres o momento.
- Mas eu estou a gostar da minha vida de criança. Já fico contente com esta.
- Nada me deixa mais feliz. 
- Gosto quando me dizes poesia.
- "Não, não vou por aí,..."
- Esse não, ele acha-se muito convencido quando, na verdade, nunca irá saber se o caminho de que lhe falavam era o certo, ou não. 
- Nunca confies num poeta.
- Eu sei, já me disseste - pode escrever cão e querer dizer gato.
- Como o Beckett?
- Oh mãe, o Beckett é mesmo um cão.
- Mas às vezes pensa que é gato. Qualquer dia parte alguma pata, no seus equilibrismos.
- Também não me importava de ser um gato.
Ocorreu-me  que "Não se pode morar nos olhos de um gato" [9], e revivi, em segundos, tudo o que esse verso encerra em mim, de mim, para mim.
- Tenho fome, o que é que vamos comer quando chegarmos a casa?
- “Nada a fazer”.

[Cai um pano. E outro pano. É o fim do ato terceiro e, com ele, de nós os três aqui - eu e a minha filha – há uma realidade que nos espera.]
 ____________________
podem chamar-lhe realidades
até pode parecer que o são
chego a suspeitar que realmente existam
por vezes até sinto apalpar a realidade
mas, depois,
nasce o poema.


PLAY Tiago Bettencourt | Poema do desamor

[1] Schank, R. (1990). Tell me a story - narrative Intelligence. Illinois: Northwestern University Press.
[2]  Tavares, G. M. (2013). Atlas do corpo e da imaginação. Alfragide: Editorial Caminho.
[3]  Wittgenstein, L. (2002). Investigações Filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Wittgenstein, L. (2002). Tratado Lógico-Filosófico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
[4]  Damásio, A. (2017). A estranha ordem das coisas - a vida, os sentimentos e as culturas humanas. Lisboa: Temas e Debates & Círculo de Leitores.
[5]  Fonseca, A. F. (1990). Psicologia da Criatividade. Lisboa: Escher, Publicações.
[6]  Pais, J. M. (2007). Sociologia da vida quotidiana (3.ª ed.). Lisboa: ICS.
[7]  Frazzetto, G. (2014). Como sentimos - o que a neurociência nos pode - ou não - dizer sobre as nossas emoções. Lisboa: Bertrand Editora.
[8]  Fadda, S. (1998). O teatro do absurdo em Portugal. Lisboa: Edições Cosmos. 
[9] Alexandre O'Neill . "Poema do Desamor"

fevereiro 12, 2019

©raquelsav | MM | fev2019


TEORIA SENTADA
II
Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca a pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me sobre as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a suspensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão- é devotar-se,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
- É com as vozes que o silêncio ganha. 

herberto helder | Ofício cantante | Assírio & Alvim | 2009

fevereiro 07, 2019

Acto Segundo
 [Um carro. Somos três, sem contar com o carro: eu e a minha filha, insisto, não é um erro. Não é o carro que se move, é a cena de um filme americano. O volante é exagerado, como nós. A música que ouvimos também, em volume e em sentido:]

Ain't Got No / I Got Life
Ain't got no home, ain't got no shoes, Ain't got no money, ain't got no class,
Ain't got no skirts, ain't got no sweaters, Ain't got no perfume, ain't got no love
Ain't got no faith, Ain't got no culture, Ain't got no mother, ain't got no father
Ain't got no brother, ain't got no children, Ain't got no aunts, ain't got no uncles
Ain't got no love, ain't got no mind, Ain't got no water, Ain't got no love (...)
Then what have I got Why am I alive anyway? Yeah, hell
What have I got Nobody can take away I got my hair, got my head
Got my brains, got my ears Got my eyes, got my nose
Got my mouth I got my I got myself

- Mãe, há uma coisa errada nesta música.
- Achas? Então?
- Ele disse que...
- Não é ele, é ela – corrigi- já te disse que se chama Nina Simone.
- Então, ela está errada.
- Porquê?
- Porque tu disseste que ela disse que não tem amor. E que não se importa de não ter amor. O amor é uma coisa muito importante. Não podemos viver sem amor.
A clareza de uma criança consegue ser desarmante. Continuei a conduzir, em silêncio. Tudo, naquele som, parecia milimetricamente definido: a altura, a intensidade, o timbre, a duração.
-  Mãe, conheço-te melhor do que o pai.
-  Mas o pai já me conhece há mais de vinte anos!
-  Sim, mas eu estive dentro da tua barriga. Conheço-te por dentro.
Ocorreu-me, pela nongentésima vigésima primeira vez um dos poemas mais belos que conheço:
(...) E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
-  Lembras-te de ter estado dentro da minha “barriga”?
-  Achas, mãe?
Podias lembrar-te dos mantras que eu te cantava.
-  E a da “era uma menina muito pequenina...”, as três que me cantas todas as noites?
-   Não, essa eu não podia ter inventado antes de teres nascido – tu sabes que eu não quis saber se tinha uma menina ou um menino na barriga.
-  Sou obrigada a gostar de música, não sou?
-  Gostar só depende de ti, mas ouvir sim, enquanto viveres comigo não tens como fugir a essa realidade.
-  Eu gosto, mãe, gosto muito. Queres jogar um jogo, o "se fosses"? Começa tu. 
- Se fosses uma música?
-Era a do coelhinho com a bengala. Porque como está com a bengala o professor João deixa-me tocar mais lento.
- E se fosses uma nota?
- Seria a tónica - porque seria sempre a primeira.
- Se fosses uma escala?
- Seria maior, claro, é a mais alegre.
- Se fosses uma dinâmica?
- O piano, por ser um instrumento também.
- Se fosses um compositor?
- Seria o Bach, para ser ribeiro. E tu, mãe, se fosses um instrumento?
- Seria um cordofone porque nas cordas o mais importante não é a força que usas mas o tamanho e a tensão.
- E se fosses uma coisa qualquer da música?
- Eu? Seria a melodia porque mantinha a minha identidade apesar das transformações que pudessem ocorrer.


[Vê-se o carro ao longe, ouvem-se rastos de conversa, já imperceptíveis. Na tela projectam-se palavras:


o prelúdio é sempre breve
só quando dói é em ostinato,
sem variação ou fuga possível 

**********
Escolhemos o segredo dos lamentos,
das descidas cromáticas
que adensam a beleza de tudo o que nos dói.
Inventamos escalas
que nos sustentam os sorrisos modelados,
enquanto nos distraímos em infinitos círculos.
Degrau a degrau,
corrigimos a sombra dos passos,
prevemos as quedas.
   [e escolhemos cair]
 

[Cai o pano. É o final do acto segundo.]