março 22, 2014

fernando guimarães

O grito
É possível que a noite venha ao nosso encontro quando estivermos
sozinhos. Seria assim que compreenderíamos um destino
que nos pertence, talvez a imagem esperada das nuvens que procuram
um céu apenas tecido. Sabemos de que se ocupam as mãos ao sentirem
o mesmo estremecimento que existe no interior simples das veias. Por isso é outra
a sombra que continua quase esquecida, os súbitos contornos
de uma voz que depois se afasta sem pressa. Nela se perde
a mesma imagem que se tinha encontrado como se fosse o sobressalto
dos nossos olhos, a largura dos cabelos soltos. Talvez comecem
a recordar de novo a luz cercada agora de uma ferida. Quem 
estava próximo para escutar o que seria esse rumor? Os lábios
encontraram um sulco e tudo ali principia devagar a acolher-nos. Depois
veremos como pelo corpo o sangue fica serenamente escrito.

Fernando Guimarães (O Anel Débil, 1992) 
em Antologia da poesia portuguesa do Sec. Xiii ao Sec. XXI