agosto 23, 2014

Manuel Cintra

©Cartier Bresson Brooklyn, New York, 1947

gostava de correr à minha frente de repente
durante um desses dias em que corro atrás de mim
e mandar-me parar largar as solas os sapatos
o comboio o ordenado o horário apertado, parar
sentar-me como se sentam esses velhos
coxos sobre um banco cerca do meio dia
e desembrulham a bucha começam a comer isso
tudo e também a luz do sol
com as duas mãos e as outras todas

respirar aquilo que quase nunca já

me entra pelos poros das narinas
nem por outros espalhados pelos passos
corridos mais depressa do que eu ando
a perder no tempo em que corro e pouco sinto
aquele em que me não sento
nem quando bebo o tão café tão curto
distante desse sorvo amargo que não cabe
em barcos ocos quanto mais em chávenas

mas corro sempre corro tudo corro como

se o tempo e o recheio estivessem encanados
num longo corredor, e a saída 
que não deve estar no fundo
me passasse sempre ao lado
e eu ao lado dela
lançando a mão segundos tarde
demais para a reter
por isso corro tento espero
parar um dia no momento certo
atirar para a minha frente as duas mãos
e sobretudo as outras todas direito
ao cheiro que não sinto já no sol

talvez demore muito esteja velho e coxo

na mão ainda o embrulho a fome a bucha
ou mesmo o apetite sobre o banco cerca 
do meio dia

Manuel Cintra, Bicho de Sede

Ulmeiro, 1986