junho 27, 2015

[POEMA]

A noite está líquida     oclusa    vegetal
é um corpo longilíneo e desmembrado
flui como um rio de si mesmo alheio
flui e envolve presagiando cárceres
a noite tem hoje uma altitude especial
com aves negrejando lentamente
neste desintegrar-se de memória

e eu sou uma alucinação rítmica
com um tempo corpóreo a devorar
um mar excessivamente quieto na cabeça
excessivamente muscular e lúcido

a noite distribui pedaços de lua
aos farrapos    na inconsciência dos prédios
sobre a cidade    a cidade    a cidade louca
que desvairou nas minhas mãos    nos dedos
possuída de um candelabro antigo a partir-se
um lampadário cristalino e rutilante
a quebrar-se com súbitos estilhaços pela noite fora

viajo nitidamente pelo passado
na organização de um jogo de perigo:

o meu amor é a aquisição de uma técnica
um processo de transformação dos corpos
a prospecção dramática dos ritos
uma queda livre e vertical
um olhar imóvel sobre o mar
a oferta do tempo    sem comércio nem ódio
fibra a fibra
do tempo crivado de buracos    baleado
assassinado    corrupto    perdido

o meu amor é a correcta magia dos sons
a ultrapassagem da noite
fulminante e arrebatada    num círculo de fogo
coberta de engenhos de destruição
correndo extensamente sem peso

o meu amor é uma trovoada nas margens da noite
uma proposta veinulada a sangue
patrocinada pelos mortos deambulantes
e é ainda a carcassa húmida dos barcos
destroçada n'areia

a noite é um coral magnífico na noite

Manuel de Castro
in Edoi Lelia Doura: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por Herberto Helder, Assírio&Alvim, 1985