ESCREVO-TE DE UM PAÍS QUE PESA
Tão bela como a mão da amada
sobre o mar.
Tão sozinha.
Escrevo para ti. A dor é uma concha. Nela se ouve o coração perlar.
Escrevo para ti no limiar do idílio, para a planta das folhas
de água, dos espinhos de chamas, para a rosa de amor.
Escrevo para nada, para as palavras luzentes que a minha morte
traça, para o instante de vida eternamente devido.
Tão bela como a mão da amada
sobre o sinal.
Tão sozinha.
Escrevo para todos. Escrevo-te de um país que pesa como os
passos do forçado, de uma cidade igual às outras onde os gritos camuflados
se torcem nas montras; de um quarto onde as
pestanas a pouco e pouco destruíram o silêncio.
Tu és, predestinada destinadora, a minha razão de escrever;
alegre inspiradora do dia e da noite.
Tu és o colo de cisne sedento de azul.
Tão bela como a mão da amada
sobre os olhos.
Tão doce.
Eu escrevo com a carne das palavras que chegam, ofegantes
e vermelhas.
É a ti, de facto, que elas cercam. Eu sou todas as palavras
que me habitam e cada uma na minha voz te magnifica.
Eu preciso de ti para amar, para ser amado pelas palavras que
me elegem. Preciso de sofrer as tuas garras para sobreviver
às feridas do poema.
Flecha e alvo, alternadamente. Preciso de estar à tua mercê
para de mim me libertar.
As palavras ensinaram-me a desconfiar dos objectos que
encarnam.
O rosto é o refúgio do olhos acossados. Aspiro à cegueira.
Tão bela como a mão da amada
sobre o sorriso da criança.
Tão transparente.
Penso nos brinquedos dos meus cinco anos. Uma vez meus,
foram eles os mestres. Antes de mos darem, julgava poder
manejá-los segundo a minha fantasia. Depressa vi que os podia
destruir segundo o meu humor; mas se os queria vivos, teria
de respeitar a sua mecânica, a sua alma imortal.
É como a linguagem.
Devo às palavras a alegria e as lágrimas dos meus cadernos
de estudante e dos meus canhenhos de adulto.
E também a minha solidão.
Devo às palavras a minha inquietação. Tento responder às suas
questões, que são as minhas ardentes interrogações.
Edmond Jabès
A obscura palavra do deserto - uma antologia, Edições Cotovia, 1991
Tão bela como a mão da amada
sobre o mar.
Tão sozinha.
Escrevo para ti. A dor é uma concha. Nela se ouve o coração perlar.
Escrevo para ti no limiar do idílio, para a planta das folhas
de água, dos espinhos de chamas, para a rosa de amor.
Escrevo para nada, para as palavras luzentes que a minha morte
traça, para o instante de vida eternamente devido.
Tão bela como a mão da amada
sobre o sinal.
Tão sozinha.
Escrevo para todos. Escrevo-te de um país que pesa como os
passos do forçado, de uma cidade igual às outras onde os gritos camuflados
se torcem nas montras; de um quarto onde as
pestanas a pouco e pouco destruíram o silêncio.
Tu és, predestinada destinadora, a minha razão de escrever;
alegre inspiradora do dia e da noite.
Tu és o colo de cisne sedento de azul.
Tão bela como a mão da amada
sobre os olhos.
Tão doce.
Eu escrevo com a carne das palavras que chegam, ofegantes
e vermelhas.
É a ti, de facto, que elas cercam. Eu sou todas as palavras
que me habitam e cada uma na minha voz te magnifica.
Eu preciso de ti para amar, para ser amado pelas palavras que
me elegem. Preciso de sofrer as tuas garras para sobreviver
às feridas do poema.
Flecha e alvo, alternadamente. Preciso de estar à tua mercê
para de mim me libertar.
As palavras ensinaram-me a desconfiar dos objectos que
encarnam.
O rosto é o refúgio do olhos acossados. Aspiro à cegueira.
Tão bela como a mão da amada
sobre o sorriso da criança.
Tão transparente.
Penso nos brinquedos dos meus cinco anos. Uma vez meus,
foram eles os mestres. Antes de mos darem, julgava poder
manejá-los segundo a minha fantasia. Depressa vi que os podia
destruir segundo o meu humor; mas se os queria vivos, teria
de respeitar a sua mecânica, a sua alma imortal.
É como a linguagem.
Devo às palavras a alegria e as lágrimas dos meus cadernos
de estudante e dos meus canhenhos de adulto.
E também a minha solidão.
Devo às palavras a minha inquietação. Tento responder às suas
questões, que são as minhas ardentes interrogações.
Edmond Jabès
A obscura palavra do deserto - uma antologia, Edições Cotovia, 1991