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©raquelsav | Agosto2016| Mosteiro- Pitões das Júnias |
"Por fim, foi à magia que coube a honra de se instalar entre os meus escombros e, ainda hoje, quando me passeio entre eles, descubro vestígios. Mas na maior parte das vezes trata-se de um lugar sem projecto nem limite, onde existem até materiais que me são estranhos, sem falar na sua disposição. E a coisa em ruínas, não sei o que é, o que foi, nem, por consequência, se não tratará menos de ruínas do que de uma sólida confusão de coisas eternas, se é que é esta a expressão correcta. É, em todo o caso, um lugar sem mistério, a magia abandonou-o, considerando-o sem mistério. E se não vou até lá de boa vontade, vou porventura com um pouco mais de boa vontade do que a outro lugar qualquer, surpreso e tranquilo, diria como um sonho, mas nem assim, nem assim. Mas este não é um desses lugares a que se vai, mas sim daqueles lugares onde, por vezes, nos encontramos sem saber como, e que não se abandonam quando se quer, e onde nos encontramos sem qualquer prazer, mas com menos desprazer, porventura, do que nos lugares de onde nos podemos afastar ao sentirmo-nos mal neles, lugares misteriosos, cheios de mistérios conhecidos. Escuto e oiço-me ordenar um mundo imóvel, em desequilíbrio, sob um dia frágil e calmo, sem mais, suficiente para o ver, compreendem, e também ele imóvel. E oiço murmurar que tudo se verga e curva, como sob o peso de fardos, mas aqui não há fardos, e também o solo, difícil de transportar, bem como o dia, para um fim que parece não existir. Pois que fim existe para estas solidões para quem a verdadeira claridade nunca existiu, nem o equilíbrio, nem a base, mas sempre essas coisas pendentes resvalando num aluimento sem fim, sob um céu sem memória de manhã, nem esperança de tarde. Essas coisas, que coisas, vindas de onde, feitas de quê?"
Samuel Beckett (1951) | Molloy | Relógio d'Água | 2003