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fevereiro 13, 2017

@raquelsav
"A Sarah Payne, no dia em que nos disse que escrevêssemos sem fazer juízos de valor, lembrou-nos que nunca sabemos, e que nunca saberemos, o que é compreender inteiramente outra pessoa. Parece uma ideia simples, mas, à medida que vou ficando mais velha, vejo cada vez mais que ela precisava de dizer aquilo. Achamos, achamos sempre: O que há na outra pessoa que nos faz desprezá-la, que nos faz sentirmo-nos superiores? "

Elizabeth Strout | O meu nome é Lucy Barton| Alfaguara | 2016

fevereiro 05, 2017

palimpsesto [2.1]

Acto Primeiro (Versão 2.1)
[Os dois corpos celestes permanecem deitados em decúbito ventral. Nada se moveu. A Terra continua suspensa, mas a tocar o chão, prostrada, também, como os corpos. A esfera achatada que a compõe aparenta ter perdido volume, aparenta mais achatada que nunca, mantém o seu formato frouxamente. É visível, ao longe, a tabuleta improvisada que a identifica.
 <---- TERRA
Essa tabuleta é útil a quem passa. Os dois corpos celestes, adormecidos, balbuciam alternadamente, materializando os frutos de pesadelos, em tom crescente]

[quase inaudivelmente]:
@: Aos 64 anos, Bruna Lombardi, de biquíni, reúne elogios.
π: Trump proíbe entrada de muçulmanos nos EUA.

[entre-dentes e vagarosamente] 
@: Após separação de Angelina Jolie, Brad Pitt terá engravidado Kate Hudson.
π: Cartazes em manifestação em Chicago anotam: "Rise up".

[sussurrando] 
@: Salvem a Melania.
π: Rússia financia campanha de Le Pen.

[ciciando]
@: Casa Branca enganou-se a escrever Theresa May e esta ficou com nome de atriz porno.
π: Madeleine Albright admite registar-se como muçulmana.

[aumentando o volume e o ritmo mas ainda baixinho e vagaroso]
π: Hitler eleito democraticamente.
@: Melania (o)usada na capa da Vanity Fair mexicana.

π: [conservando o volume mas em ritmo crescente, denunciador de nervosismo, ainda deitado, mas por pouco tempo] Impressora 3D imprime pele humana, 100% funcional. 
Cientistas criam embrião híbrido metade porco, metade humano.
"1984" de Orwell esgota no Amazon.
Impressora 3D imprime pele humana, 100% funcional. 
Cientistas criam embrião híbrido metade porco, metade humano.
"1984" de Orwell esgota no Amazon.
repeat
repeat

@: [em volume idêntico mas tom conformado e suspirante] Valter Hugo Mãe não matou o Pai Natal mas disse umas verdades sobre os orifícios da tia de alguém.

[π levanta-se energicamente, em sobressalto e em volume e ritmo crescente, nervoso]

π: "Todas as criaturas que caminham sobre duas pernas são nossas inimigas"*
"Todos os hábitos do Homem são perversos"* 
"Nenhum animal usará roupas"* 
"E vou poder continuar a usar laçarotes na crina?"*
[gesticulando com um movimento de rotação da cabeça em torno do pescoço, 90º e -90º, 90º e -90ºe 90º e -90º]
Não, não, não! Não vamos simplificar os 7 mandamentos! 
 
@: [Ainda deitada, em tom suspirante, tapando os ouvidos com cada uma das mãos, respectivamente]
Vintage, Gourmet
Vintage, Gourmet
Vintage, Gourmet

π: [Abanando a cabeça lentamente, olhos fixos no chão, em tom de resignação]
"Quatro patas bom, duas pernas mau."*

π: [Ganhando fôlego, timidamente] Spiegelman retrata os nazis como gatos, os judeus como ratos, os polacos como porcos e os americanos como cães. Todos são terrivelmente humanos"**

@: [Tirando as mãos e dando bofetada a si própria] Rússia aprova "lei da bofetada".

π: [Em ritmo novamente crescente] Porque maior do que toda a vergonha da guerra é a vergonha de os homens já nada quererem saber dela, suportando que haja guerra, mas não que a tenha havido.***

@: [Abrindo os olhos lentamente]Pedro Chagas Freitas.

π:[Gritando] "(17) "Vem! Vou mostrar-te como será julgada a grande prostituta, que está sentada à beira de muitas águas. Os reis da terra prostituíram-se com ela. Os habitantes da terra ficaram bêbados com o vinho da sua prostituição" (20) O fim dos tempos já começou- Depois disto vi um Anjo descer o céu. (...) Vi então tronos, e os que se sentaram nos tronos receberam o poder de julgar."****  

@: [Acorda sobressaltada, senta-se ortogonalmente à superfície e grita] Um dia vai arder tudo. Tudo o que vês, irá arder um dia.

π: [No mesmo tom aflito] Escathon, Escathon...

@:[A chorar e soluçar] Um dia irá arder tudo!

[Os corpos celestes voltam a cair no chão, exaustos, como corpos cilíndricos e invertebrados. Após a queda segue-se um momento de silêncio interrompido pelo movimento enérgico de @, que se levanta a correr. π continua imóvel e deitado.]

@: A música. A música. A música. Espera, a música. O nosso produtor de som abandonou-nos. Espera.

[@ mexe no telemóvel e faz soar as colunas. Coloca um gancho no cachaço de π e no seu. Enquanto ouvem a música PLAY
Kraftwerk | News, os dois corpos celestes são elevados de mão dada, ficam suspensos. Todo o cenário escurece. Há leves luzes que imitam estrelas. Há espelhos que multiplicam essas luzes de estrelas. E outros espelhos que multiplicam as imagens dos espelhos. Há difusão de imagens. Dificuldade em identificar objectos. Os nossos corpos celestes são luzes incapazes de gerar imagens nos espelhos. Observam que a Terra também não reproduz imagem no jogo de espelhos. Olham-na com tristeza. Choram e chove. Há um espelho no chão. Confundem-se os pingos da chuva, reproduzidos pelos espelhos em movimentos ascendentes e descendentes, como se desaguassem numa nascente. Princípio e fim unidos. Os corpos continuam a subir muito lentamente e só param quando alcançam as tabuletas que os identificam
 <---- π       <---- @   
Continuam a olhar para a Terra]

@: Um dia vai arder tudo.
π: Como eu gostava que concordássemos em discordar! 
@: Parecem formigas.
π: As formigas não destroem os seus próprios carreiros.

[Observam novamente a Terra, em silêncio]

π: [retoma conversa]Os sobreviventes do "11 de Setembro", os que estavam dentro do edifício não se aperceberam do que se passava, ao contrário do resto do mundo.
@: "Há que sair da ilha para ver a ilha".
π:[vira-se surpreendido] Saramago?
@: Hoje já não seria assim. Nas redes sociais apareceria, sordidamente, cada pormenor, na perspectiva de cada vítima.
π: Houvesse rede.

π: [em tom profundo-cavernoso]"Vi então tronos, e os que se sentaram nos tronos receberam o poder de julgar."****
@: Um dia será assim.
π: Assim, como?
@: Uma espécie de purgatório digital.
π: E não precisaremos de ninguém para nos julgar - apunhalados pela nossa consciência, qual Samurai.
@: Olha o talhante.
π: Que fará a entrar no W.C. público?
@: Não quero imaginar. Mas estou contente por ser vegetariana.
π: Deves pensar que o Miso é mais higiénico.
@: [dirigindo olhar sedutor] Tu sabes, em questões de comida, prezo a higiene acima de tudo.
π: Olha o fanático do Benfica a contornar o Café Central, na sua lambreta icónica.
@: E o espalhador de folhas? Haverá profissão mais inútil?
π: Conheço uma.
@: Eu também. A tua.
π: Nunca serei capaz de te dar poesia, pois não?
@: Sabes o que penso da poesia. E não faço questão de mudar de opinião.
π: Sempre imaginei que o amor nos salvasse.
@: O amor? Achas? Achas mesmo? Inocência! O amor é a forma de egoísmo mais pura que conheço. Preferimos amar a ser amados. Somos felizes quando nos sabemos capazes de amar. E não é para dar a mão a quem amamos, mas para conhecermos os limites da nossa. 
π: Então por que sobrevivemos?
@: Porque tudo o que nos garante a sobrevivência dá-nos prazer: comer e foder.
π: E sobreviveremos?
@: Não sei, passamos a vida a contabilizar calorias e doenças venéreas.
π: Talvez sinta algum medo.
@: O medo salva-nos.
π: E tolda-nos. Inibe-nos. Não nos deixa sermos o que gostaríamos de ser.
@:  Na maioria das vezes, é uma bênção. Se cada ser humano fosse na medida em que gostaria de ser, verdadeiramente, talvez já não existisse mundo.
π: A maldição do homem é o que o distingue dos outros animais.
@: E ainda dizem que "nada é mais bonito que a inteligência"*****.
π: Crítica da razão Pura?
@: Não! Lidl- a campanha do creme Cien Aqua - "para mulheres mais do que bonitas".
π: O conhecimento é, cada vez mais, um lugar comum.
@: O que é verdadeiro acaba em clichet porque funciona.
π: Até não haver matéria de clichet que suporte os milhões. Irónica democracia. Não nos resta mais nada em que acreditar?
@: Eu acredito no Head & Shoulders e no Agroal, ajudam-me na psoríase.
π: Desculpa se te acordei, há pouco.
@: Eu nunca acordo- durmo desde que nasci.
π: E quando pretendes acordar?
@: Hoje não, com toda a certeza. Hoje é mau dia para acordar.
π: Por teres medo?
@: Claro. Medo, medo, medo é tudo o que tenho.
π: Não acredito. Além disso, o teu medo não é o meu medo.
@: Não basta haver nomes a mais ainda queres que sejam ambíguos?
π: Os conceitos nunca serão a mais. Aumentam os conceitos, aumenta a liberdade. 
@: E, no entanto, criá-los é dar oportunidade de nomear a estupidez, a inutilidade, a futilidade.
π: Nós somos diferentes. Não falamos a mesma língua.
@: Mas compreendemo-nos.
π: Às vezes tenho as minhas dúvidas.
@: Experimenta. 

[π faz um pequeno compasso de espera e ataca]
π: Jogos de linguagem.
@: "Cada cabeça sua sentença".
π: Cinética filosófica.
@: "Onde vai um português vão dois ou três".
π: Imperativo categórico.
@: "Quem tem cu tem medo" 
π: Imanentização escatológica.
@: "A esperança é a última a morrer".

[π, ainda suspenso e cintilante, olha para a Terra. A Terra vai-se enchendo de luz. Aparenta mais volume mas pode ser uma mera ilusão óptica. Os dois corpos suspensos bamboleiam em direcção à Terra, imitando o movimento de voo. Espetam as suas tabuletas na Terra, pela seguinte ordem: 
  <---- TERRA     <---- π     <---- @   
Nenhuma das tabuletas gera imagem nos espelhos. Os corpos e a Terra também não. Deitam-se sobre ela em decúbito ventral, acompanhando a sua forma esférica-informe, reservando aos braços a posição lassa que lhes é habitual.]  

π: Achas que ainda há esperança?
@: Para nós? Que importa? Somos personagens de ficção.
π: [ri desalmadamente] Nós? ahahahah? O quê?
@: [séria] Sim. Há quem queira fazer de nós super-heróis da BD.
π: Tipo Dog Mendonça e Pizzaboy?
@: Eu disse-te que não estávamos sozinhos.
π: Assusta-te?
@: Sermos fruto da imaginação ou heróis em cuecas?
π: Não estarmos sozinhos.
@: Se formos fruto da imaginação, acabamos onde começamos e começamos onde acabamos. Ou não achaste estranho o espelho não reproduzir a tua imagem?
π: É por isso que este Acto continua a ser o Primeiro?
@: Não. Isso é um capricho matemático! Tal como o Nautilus Marinho e os coelhos, obedecemos à sucessão de Fibonacci. 

[Os dois corpos viram-se lentamente, sincronamente, posicionam-se em decúbito dorsal. Observam as estrelas e as imagens das estrelas. E as imagens das imagens. Até que adormecem, balbuciando]
  
π: Terra... Espelho... Ausência de imagem... Fruto da imaginação?... Terra?
 
[Ao longe ouve-se  PLAY Nick Cave& The Bad Seeds | Magneto
E o mistério não ficou desfeito: terá o produtor de som voltado a tempo do fim do segundo Acto Primeiro?]
<--- vasleuqaR <---
______
* George Orwell | A quinta dos animais | Antígona | 2013
** Revisão crítica de Maus de Art Spiegelman in The Times
***Karl Kraus | Os últimos dias da humanidade | Antígona | 2003
**** Bíblia Sagrada
***** Campanha publicitária do Lidl

NOTA: Neste texto, qualquer semelhança com factos verídicos não é pura coincidência.

janeiro 25, 2017

"Meu pai envergonha-me: ousa, numa reunião em que precisamente se encontravam os Pitoëff, declamar, de mão no bolso do colete: Ser ou não ser. Não sei onde me meter.
(...)
Não me deito com homens. Fascinado, estou-o, mas apenas por mim próprio. Época de narcisismo que vai prolongar-se por muito tempo.

Descalço os sapatos e pedalo de pés nus, magoados, feliz.
(...) 
Descoberta dos banhos de água a escaldar. A cabeça anda à roda, a pele fica em carne viva, sofre-se. Limpo o vapor no espelho e masturbo-me.
(...)
Muito mais tarde voltaria a encontrar P. em Paris. Tinha acabado de casar com uma alemã, gorda, desajeitada. Abrira um consultório dentário.‹‹Estabelecia-se››.
(...)
No regresso de Breton, sou submetido ao exame do pequeno surrealista. ‹‹Qual preferes? Baudelaire ou Isidore Ducasse, conde de Lautréamont? - Baudelaire.›› Agravo o meu caso ao citar, entre os poetas contemporâneos que prefiro, Éluard e Tzara (esquecendo Breton). ‹‹Tzara! Quem aprecia os versos de um polícia pode bem ser polícia também››. Reprovado.
(...)
Paul Valéry num camarote, na companhia de uma dama elegantíssima, apupado pelos surrealistas. Entoam em coro: ‹‹Merda para Valéry››.
(...)
Irene masoquista, exibicionista. É sempre culpada, compraz-se na sua culpabilidade. Não me esconde que tem tido amantes desde que vivemos juntos. Diz-me os seus nomes (que de resto adivinhava), conta o que cada um queria dela, o que ela queria deles. Discorre com vagar sobre o seu ‹‹vício››: masturbar-se em frente dos homens, olhando-os fixamente. Mas fala-me também da ‹‹besta›› que a lançou por terra e depois possuiu. Não seria eu que faria o mesmo. As narrativas de Irene excitam-me e irritam-me ao mesmo tempo. Tão depressa murmuro: ‹‹Conta, vamos, conta mais››, como lhe faço cenas de ciúme idiotas.
(...)
É-me difícil dizer como se toldou e acabou o nosso amor, tanto quanto evocar o modo como nasceu e germinou.
(...)
Hugette, à chuva, sempre descalça. A minha boca contra os seus pés molhados; não os retira, mas com um olhar frio, sério, inquisidor, fixa-me.
(...)
Huguette decide sequestrar-me. Habito a mansarda do sexto andar que ela ocupa em casa dos pais, pequenos logistas de bijuterias na rue des Plantes. Toma conta de mim, traz-me de beber, comer, tabaco, não me falta nada, com uma condição: não devo sair. Peço a Huguette o que jamais teria ousado, nem sequer pensar, pedir a Irene: que mije em cima de mim. Aceito. Permaneço seu prisioneiro voluntário quase três semanas.
(...)
Sei o que vai fazer: levantar-se, aproximar-se, beijar-me, passar-me a sífilis. Acordo antes que se debruce sobre mim.

Janeiro de 1933. Meu pai - uma dívida de jogo, o medo do futuro sem saída? - envenena-se. Nessa noite, dormia no meu quarto, mesmo ao lado do seu, e não me apercebi de nada. Detestava o meu pai, portanto fui eu que o matei.
(...)
Terceira classe num navio brasileiro. Vai para Hamburgo, com escala no Havre. 
(...)
Pronuncio inadvertidamente uma palavra em francês, o criado do refeitório aproxima-se. ‹‹Se soubesse que falava francês, tinha-lhe arranjado lugar na mesa dos alemães.››. Raça superior, menu superior.
(...)
16 de Maio de 1941. Campo de concentração de Argèles. Calor sufocante. Em volta de uma fossa onde se amontam restos de legumes podres, seres siminus, descarnados, desdentados, empurram-se, quase lutam entre si.
(...)
1945. Paris. Tomamos conhecimento da existência dos campos de extermínio, dos fornos crematórios. (...) A partida do seu comboio para o campo. A gorda enfermeira alemã que na estação de Estrasburgo passava uma toalha pelos lábios das deportadas para lhes apagar a pintura, a vergonha.
(...)
Encontramos Artaud enfranquecido, aterrorizado. (...) No comboio de regresso, Marthe chora; juramos ambos tirar Artaud de Rodez. Conseguimo-lo, mediante uma caução de mais de um milhão de francos. Leilão conduzido por Pierre Brasseur. Doadores: Braque, Picasso, Giacometti, Sartre, Simone de Beauvoir... Sessão em benefício de Antonin Artaud. (...) Artaud, a cara percorrida por tiques, devastada, cheia de rugas, a boca desdentada, mas onde se escapava de súbito uma voz retumbante, como um uivo. Nós afogados nas suas palavras.
(...)
O suicídio de Antonin Artaud com cloral (a arma maciça).
(...) 
Também volto a ver Agathe: não mudou, continua calmamente à espera da morte. Mas agora tem uma filha, uma menina parecida com ela."

Arthur Adamov (1908 - 1969) | O homem e a Criança | Fenda | 1995

janeiro 04, 2017

"Foi ela que me fez conhecer o amor. Ela tinha o modesto nome de Ruth, creio, mas não posso garantir. Talvez se chamasse Édith. Tinha um buraco entre as pernas, oh, não a abertura que sempre imaginara, mas uma fenda, e eu metia, de preferência, o meu membro supostamente viril lá dentro, não sem trabalho, e eu empurrava e arquejava até ao momento em que eu emitisse ou que a ela renunciasse ou que ela me suplicasse que desistisse. Um jogo estúpido, na minha opinião, e como tal cansativo, com o tempo. Mas prestava-me a ele com muito gosto, sabendo que isto era o amor, porque ela me tinha dito. " 

Samuel Beckett (1951) Molloy | Relógio d'Água | 2003

outubro 22, 2016

Mantra combate (que rima)

PLAY Linda Martini | Amor Combate

Vou escrever-nos no livro das memórias grandes,
lançá-lo aos elementos,
para não mais abrir.

Entre pó e tempestades, engrandecê-lo na idade,
perfeito e eterno 
como exemplo a não seguir.

Quando no gume da liça:
- Amor ou Liberdade?
Grito de pulmão cheio:
- Liberdade, meu senhor!

E (em)quanto vivo o nome, não importa qual,
respirarei, em obra ressuscitada,
tão perfeitamente inacabada.

outubro 02, 2016

PLAY Swans | Little god in my hands

Entretanto, parece que a cotação social da poesia aumentou. As homenagens aos poetas constituem um dos números mais apropriados da saison:
AJF: De há uns tempos a esta parte que um verdadeiro bando, ao que parece organizado, constituído por literatos, comerciantes, necrófilos e patetas, se vem dedicando a essa nefasta actividade, São já especialistas. A verdade é que nunca tantos, ao mesmo tempo, tentaram assassinar a poesia. E em nome dela, como convém ao cinismo."

(De entrevista a António José Forte) 

agosto 03, 2016

RITUAIS
as memórias são facturas em teu nome
sei que o adeus tem os seus rituais e o teu
é deixar-me vazia a despensa dos sonhos

às vezes pergunto o que fizemos mal
vou enviar-te flores todos os outonos podes vir
pelas facturas pelo menos as da luz

estou às escuras por causa dos teus rituais

Pablo García Casado (1997) | Faróis à procura do oceano | do lado esquerdo | 2016 | Maria Sousa (trad.)

Ritos
los recuerdos son facturas a tu nombre / sé que el adiós tiene su ryto y el tuyo/ es dejarme vacía la despensa de los sueños// a veces me pregunto qué hicimos mal/ te mandaré flores cada otonõ puedes venir/ por las facturas al menos las de la luz// estoy a oscuras por culpta de tus ritos

junho 01, 2016

Vorgeschrieben
Diese Sehnsucht
dich beim Namen zu nennen
Diese Angst
dich beim Namen zu nennen

Diese Sehnsucht
Wort zu halten
Diese Angst
nur Wort zu halten

Diese Sehnsucht nach einem Leben
das kein Gedicht wird
Diese Angst vor einem Gedicht
das ein Leben vorwegnimmt.

Pre-scrita
Esta saudade
de te chamar pelo nome
Este receio
de te chamar pelo nome

Esta saudade
de manter a palavra
Este receio
de apenas manter a palavra

Esta saudade de um vida
que não dê em poema
Este receio de um poema
que antecipe uma vida.
        
Ulla Hahn (1988) | A sede entre os limites| Relógio D'Água | 1992 |Trad. João Barrento

maio 20, 2016

 
©raquelsav | navegante |2015

"Ulrich levantou-se e esticou os braços, admirado com os seus devaneios. A menos de dez passos dele, do outro lado da parede, estava o cadáver do pai, e só agora reparou que à sua volta havia um formigueiro de gente que parecia sair do chão e se entregava a várias tarefas na casa morta, mas que continuava viva. Mulheres velhas estendiam tapetes e acendiam novas velas, ouvia-se martelar nas escadas, traziam flores para cima, enceravam o chão, e agora toda essa actividade se estendia também até ele: havia pessoas que estavam a pé tão cedo porque precisavam de fazer ou de saber qualquer coisa, e a partir desse momento a azáfama não parou. A Universidade precisava de ter informações sobre o funeral, um ferro-velho, discretamente, queria saber se havia roupas para vender, um alfarrabista da cidade fez-se anunciar, com muitas desculpas, em nome de uma firma alemã, oferecendo-se para adquirir uma obra jurídica rara que deveria encontrar-se na biblioteca do defunto, um padre representante da paróquia, pedia para falar com Ulrich para esclarecer explicações, outro procurava um piano barato, um agente imobiliário deixou o cartão, para o caso de quererem vender a casa, um funcionário aposentado ofereceu-se para escrever endereços nos envelopes, era um constante vaivém de gente entrando, saindo, perguntando, reclamando por escrito ou oralmente o seu direito à existência a estas horas da manhã, tudo objectivamente relacionado com a morte acontecida. Ao portão da casa, o velho criado tentava enxotar os que podia, e lá em cima Ulrich tinha de receber os que conseguiam entrar. Nunca imaginara que havia assim tanta gente esperando delicadamente pela morte dos outros, nem que os corações batem mais depressa quando o outro deixa de bater. Estava espantado, veio-lhe a imagem do escaravelho morto na floresta, e de outros escaravelhos, formigas, pássaros e borboletas esvoaçantes a aproximarem-se dele"


"O jornalista deu-se por satisfeito, já tinha o número de linhas necessário. Ulrich espantou-se com o montinho de cinzas que é tudo o que resta da vida de um homem. Para cada informação recebida, o jornalista tinha na manga fórmulas de seis a oito cavalos: grande sábio, aberto ao mundo, político prudente e criativo, talento universal e assim por diante; decerto não morria ninguém há muito tempo, e as palavras estavam enferrujadas e sedentas de aplicação. Ulrich pensou ainda um pouco; gostaria de ter dito mais alguma coisa de bom sobre o pai; mas o cronista, que já arrumava os instrumentos de escrita, tinha-se limitado a perguntar por factos, e o resto era como se quiséssemos agarrar no conteúdo de um copo de água, mas sem o copo."

Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. |Trad. João Barrento

maio 16, 2016

WAGNER:
Mas - e o mundo? A alma e a mente humanas?
Quem há que não aspire a conhecê-las?

FAUSTO:
Pois é, se conhecer a isso chamas...
Essas coisas, quem pode nomeá-las?
Os raros eleitos que um pouco a conheceram
E, loucos, abriram os seus corações,
À plebe revelando sentimentos, visões,
Esses sempre pelo fogo ou na cruz morreram.

Johann W. Goethe (1749 - 1832) | Fausto  | Relógio D'Água | 2ª Ed. | 2013

abril 19, 2016

#1

Não sei como aguardar, nesta urgência de inédito. Também eu gostaria de gritar a liberdade, mas há sempre uma linguagem que sustém os nossos medos. No forro da frustração, guardamos o grunho que queremos emitir. Com ele, a fronteira da nossa humanidade.  Mas nem sempre somos assim tão capazes. Tão predispostos a baixar o nosso preço.  Por isso, nos referimos em terceira pessoa, como se uma ligeira precaução doseasse a linguagem que nos toca.

Negociamos mais cem palavras. E, ao desbarato, compramos cinco mil pelo preço de uma. Mas fazemos mau negócio. Só o descobrimos quando fechamos a porta de casa. Quando sentimos aquele vazio pela compra inútil que fizemos, tão compulsivamente. São somente palavras, concluímos, palavras que não sabemos usar. São palavras sem ideias. Lamentamos a energia que gastámos a tentar compreendê-las.

Um dia, enchi-me de coragem e vesti a camisola. Nela  trazia escrito, preto no branco (ou branco no preto, não sei): "troco mil palavras por uma ideia". Mas o melhor que consegui, até hoje, foi um sorriso e uma proposta indecente, imoral. Aceitei os dois, sem reservas. E voltei a vestir a camisola. Sempre nos foi dito que temos de saber vestir a camisola. E eu não entendo nada de moda. Não entendo nada desta ânsia de se desnudar para mostrar o vazio.

Nesta época de crise, em pura economia de palavras, não sei por que nos demos ao diálogo extensivo. Mas ainda questiono a natureza do nosso encontro, meramente ocasional, dizemos. Assim respiramos melhor, sem atropelos. Não sei, um encontro e mais de mil palavras trocadas, não deveria ser coisa para mudar uma vida. Mas foi.

Está tudo tão certo e errado. Por não entendê-lo, já não falo de nós. Não há nada que consiga acrescentar. Também não falo de mim. Não saberia como. Quando muito, falo dos corpos que em mim repousaram. Sim, quando muito, falo de mim nos corpos deles.

Mas não escondo, que no silêncio dos dias escuros, falo de mim em ti. Guardo as palavras, que só uso nessa ocasião, numa pasta chamada "Eu, Tu e o Mundo, como um Cancro em Nós".

Sabes, tudo deixou de ser puro. A doença alastrou. Já não sei como viver, entregue a este corpo esquecido e a este cancro que nos consome as entranhas. Tudo, em mim, deixou de ser sagrado.

Por respeito, não evocarei o teu nome em vão. E assim farei, enquanto vestir a camisola. Estou certa de que o silêncio é a melhor morada para os nomes puros.