dezembro 24, 2014

Canto de Natal


©HU - untitled, 2010 oil pastel and acrylic on cardboard 120x125 cm


PLAY Cat Power Evolution

Fundimos os fantasmas do sonho-  Passado, Presente e Futuro-
e inventamos novos tempos aos verbos.
Fechamos os olhos e repousamos em sinestesia,
sem hora mas com lugar...
      (aquele lugar onde não envelhecemos:
       o transfinito lugar que nos foi entregue para sermos autênticos)
Já hoje exercitámos a morte de amanhã 
quando ainda o morrer velho murcha em nós-
Ó medo da humanidade de não resistir-

Ó habituação da morte até adentro de sonhos 
onde andaime de noite cai em cacos negros
e lua de osso brilha nas ruínas-

Ó medo da humanidade de não resistir 

Que é dos suaves açoitados 
Anjos-calma, que a fonte oculta
nos tocaram, que de cansaço 
corre pra morrer?

Nelly Sachs, Escurecer de estrelas

dezembro 23, 2014

Daniel Blaufuks

©Daniel Blaufuks Panorama de Veneza, da série "O ofício de viver, 2010



"Aborda a perda de poder da foto, a sua área de intervenção privilegiada. Que meio melhor ampara esta memória do mundo?

Cada vez sinto mais que a única arte que tem o poder de mudar o mundo é a literatura. O problema é que cada vez menos pessoas lêem livros, mas será talvez a única que consegue condensar isso, ou uma parte disso.

Defende que o livro é, de facto, o último resistente. Por outro lado, na mostra somos desafiados a visualizar o seu conteúdo, as letras, as palavras.
Sim, do que gostava é que as pessoas saíssem da exposição com vontade de comprar os livros do Perec, do Sebald e outros escritos. Mas estas são transformações também dos próprios livros, tentar olhar para estes escritores não só como escritores, mas como artistas que trabalharam o meio da palavra, tal como outros usam a plasticina. Usaram-na para algo mais vasto que a literatura. São questões lançadas para as quais não espero ter resposta, nem espero que o pública a tenha. Não é necessário resposta para todas as questões."

http://www.ionline.pt/artigos/mais/daniel-blaufuks-unica-arte-tem-poder-mudar-mundo-literatura/pag/-1

Walt Whitman

©Daniel_Blaufuks_Mão com espelho, da série "O ofício de viver"*, 2010
48
Já disse que a alma não é mais do que o corpo,
E disse que o corpo não é mais do que a alma,
E nada, nem Deus, é maior para uma pessoa do que ela própria,
E quem caminha duzentos metros sem amar caminha amortalhado para o seu próprio funeral,
E eu ou tu que não possuímos um centavo podemos comprar o melhor que a Terra contém,
E olhar com um só olho ou mostrar um feijão na sua vagem desconcerta a aprendizagem de todos os tempos,
E não há ofício nem emprego em que um jovem não possa converter-se em herói,
E não há delicado objeto que não possa servir de eixo às rodas do universo,
E digo a todos os homens e mulheres: que a tua alma permaneça tranquila e serena ante um milhão de universos.
E digo à humanidade: não sintas curiosidade por Deus,
Porque eu que tenho curiosidade por tudo não sinto curiosidade por Deus,
(Não há palavras que possam definir a paz que sinto em relação a Deus e à morte.)Escuto e contemplo Deus em cada objecto, ainda que não O entenda minimamente.Nem entenda que possa existir alguém mais maravilhoso do que eu próprio.

Por que é que desejaria ver Deus melhor do que este dia?
Vejo algo de Deus em cada uma das vinte e quatro horas, e vejo-o em cada momento que passa.
Vejo Deus no rosto de homens e mulheres e no meu próprio rosto ao espelho.
Encontro cartas de Deus espalhadas pela rua, todas assinadas com o seu nome,
E deixo-as onde estão pois sei que vá para onde for,
Chegarão sempre outras pontualmente.

Walt Whitman, Canto de mim mesmo. BI.045

* inspirado pelos diários de Cesare Pavese 

dezembro 21, 2014

Michel Foucault

"Daí, sem dúvida, que a poesia se encontre frente a frente com a loucura, na cultura ocidental moderna. Mas já não se trata do velho tema platónico do delírio inspirado. É a marca de uma nova experiência da linguagem e das coisas. Nas margens de um saber que separa os seres, os signos e as similitudes, e como que para limitar o seu poder, o louco assegura a função de homossemantismo: reúne todos os signos e confere-lhe uma semelhança que não cessa de proliferar. O poeta assegura a função inversa, a alegórica; sob a linguagem dos signos e sob o jogo das suas distinções bem demarcadas, põe-se à escuta da "outra linguagem", a da semelhança, essa linguagem sem palavras e sem discurso. O poeta faz vir a similitude até aos signos que a dizem; o louco carrega todos os signos de uma semelhança que acaba por apagá-los. Assim se encontram ambos, na orla exterior da nossa cultura e no ponto mais próximo das suas divisões essenciais, nessa situação extrema - postura marginal e silhueta profundamente arcaica - em que as palavras encontram sem cessar o seu poder de estranheza e o recurso da sua contestação. Entre elas abriu-se o espaço de um saber onde, devido a uma ruptura essencial ocorrida no Ocidente, já não se trata das similitudes, mas sim das entidades e das diferenças."

Michel Foucault, As palavras e as coisas, Edições 70
©Herbert List GERMANY. Munich. 1953. 

PLAY Fever Ray Keep the streets empty for me

No relógio, asfixias as veias ao pulso, secas o tempo e a juventude da carne; anestesias o calendário nas intermitências de um corpo-abrigo; perdes-te em pronomes, para esconderes o desejo da cadência dos possessivos.

Os passos são desordenados, desgastam-te e não te compram caminhos fáceis. Os passos enchem a rua vazia, de possessivos rastos. A energia não se rende aos olhos fechados porque não tens como fugir, ao que subtilmente te foi entregue. Os passos são teus, mas desordenados.

E como um grito soa a tão pouco, quando só conheces armas de silêncio.



Rui Nunes


és só um homem esquecido pela terra,
os que te cercam não te reconhecem,
nada sabem das tuas mãos, dos teus olhos,
da coisa mais ínfima que seja tua.
Tu vês os que te cercam, mas eles
rodeiam-te da tua ausência
com a perseverança de sobreviventes

do mundo aos lábios: a separação
do olhar de Deus

Rui Nunes, Ofício de Vésperas, Relógio D'Água

dezembro 20, 2014

Madredeus


Coisas pequenas são
Coisas pequenas
São tudo o que eu te quero dar
E estas palavras são
Coisas pequenas
Que dizem que eu te quero amar.
Amar, amar, amar
Só vale a pena
Se tu quiseres confirmar
Que um grande amor não é
Coisa pequena
Que nada é maior que amar.
E a hora
Que te espreita
É só tua.
Decerto, nao será
Só a que resta;
A hora
Que esperei a vida toda,
É esta.
E a hora
Que te espreita
É derradeira.
Decerto já bateu
À tua porta.
A hora
Que esperaste a vida inteira,
É agora.

dezembro 19, 2014

António Franco Alexandre

Sem palavras nem coisas

1

acendo o ramo e a folha cai nos dedos,
cai no azul e alarga-se, cai devagar, acendo
as pálpebras (neste perigo mudo de escolher dividindo
o som de tiros altos em volta ao corredor),
cai sobre o som, cai sobre as pálpebras, e 
os olhos de granito onde espreitam as folhas;
dividindo, separando, escolhendo, ilusão de cenário com
ramos acesos, os dedos (entra pela esquerda
o projector caindo, como luz sobre os tiros) no
azul devagar das veias abertas, dividindo,
as unhas, a minúcia, e alarga-se, cai
sobre os ramos, e os braços, as mãos
misturadas, o sexo, a boca, o
ouvido; acendo as veias e os
tiros caindo, a bala misturada no sangue,
até virar a página e respirar
o vento de asas, divido, separo, escolho
de pé no corredor entornando os cabelos,
cai sobre os tiros, cai certeira,
entorna o sexo no azul dos dedos,
dividindo o granito, acendo
o cenário e as pálpebras separam
os ramos dos braços, cai sobre as veias,
cai no silêncio e espalha-se e cobre
o som das asas altas, e entorna
o projector nos olhos, escolhendo, dividindo,
sai ao som dos tiros e acende a boca,
e alarga-se, cai sobre o vento, respira
as unhas misturadas, devagar separo
a luz das folhas, e os tiros sobre os dedos
espreitam no silêncio, as pálpebras, a minúcia,
até virar os ramos no corredor aberto,
dividindo, separando, escolhendo as balas dos
projectores, caindo
cai no azul, cai dos ramos nas
folhas dos tiros,
cai sobre a página, e as asas misturadas,
as pálpebras, deste perigo mudo de escolher
dividindo, cai no azul e alarga-se, cai
devagar, acendo
o ramo e a folha cai dos dedos.
2
entrar de repente pelos olhos adentro e escancarar
as árvores: mas aquilo que amaste perdura.
junto da água morna os animais aguardam o ruído
vegetal da noite, e as luzes bocejam
a mansidão das pernas esticadas: o amor
não tem tempo, e dura no que amaste.
Dura de repente nos olhos abertos e
a água respira no flanco dos animais
bocejando devagar a chegada da noite e das 
redes e os passos mornos dos caçadores,
e as luzes escancaradas do silêncio. Dura
esticado nas árvores, dura mansamente sem 
palavras nem coisas, sem tempo para
aguardar as mãos do caçador e as redes
mornas respirando sobre a água: aquilo
que amaste perdura.

3

enquanto escreve, lês, os tiros vão caindo
sobre o que amaste, e as luzes
dividem o silêncio,
as redes nas mãos do caçador
abrem na água o corredor das unhas,
enquanto aguardas caem os ramos, cai
o projector da noite no bocejo morno
das asas misturadas,
enquanto divides, separas os animais
e as árvores, o flanco dos olhos
e a minúcia do tempo, caem
as pálpebras no sangue, enquanto escolhes
e as pernas se escancaram,
as folhas duram no azul das coisas,
acendo o amor e as balas inclinam-se
nos passos do granito,
enquanto esperas junto da água e 
as luzes se acendem sobre os dedos
o amor perdura de dentro dos tiros,
dividindo, escolhendo, aguardando, a chegada
da noite sobre os pulsos, os ramos,
enquanto entras nas veias o projector
inclina-se no tempo, cai
nas redes esticadas do silêncio,
separando o que amaste das unhas
dos animais que aguardam a minúcia
da água caindo, enquanto dura
a ilusão do cenário sobre o vento,
vê, enquanto os ramos duram nos olhos
do caçador, e as pálpebras mornas bocejam,
são as folhas que caem dos ramos acesos
sobre a água, sobre os olhos mansos
dos animais que aguardam junto às redes,
sobre o azul dos dedos, sobre os passos 
dos projectores da noite de repente inclinados,
sobre as mão esticadas do silêncio, 
sobre o que amaste, vê, sobre
o que perdura, enquanto aguardas
e divides, 
enquanto escreves, lês, cai sobre o que amaste,
caem os tiros altos sobre o que amas.

4
se perdura nos tiros, se perdura
entre os ramos acesos e a queda dos tiros,
porque perdura, sem palavras nem coisas,
nos olhos do silêncio junto à água
aguardando o ruído vegetal da noite,
nos espaços das redes quando caem,
porque pedura, vê, nas mãos do caçador
enaqunto apago um a um os projectores
e as folhas caem no corredor dos dedos
e perdura, vê, nas pernas inclinadas,
nas veias mansamente abertas, no flanco
da água,
sem tempo para escolher, separar,
dividir, perdura de repente dentro das asas,
vê, perdura na minúcia dos pulsos,
o que amaste perdura, não tem tempo
para se perder,
palavras que dividam, vê, coisas que te separem,
redes que caiam no silêncio das mãos,
folhas que guardem
a ilusão do caçador.

5
então me deito junto água e entro
de repente nos pulsos: o que amei perdura,
vão-se apagando lentamente as asas
inclinadas dos projectores, as pálpebras
bocejam a alegria do azul dos dedos,
estendo os braços e os animais aguardam
de dentro das redes esticadas, abertas,
e um pássaro pousa nos ramos, nas folhas,
seguro do silêncio onde os tiros caem
sobre a água e devagar mergulham,
e respiram no fundo um corredor imóvel.


(António Franco Alexandre
Poemas)

dezembro 17, 2014

... Gente grande segue um sonho e acalenta outros. Gente grande fode com hora marcada e de camisola vestida. Gente grande não mente mas não sabe o que é a verdade. Gente grande não se perde porque tem medo de se encontrar. Gente grande chega ao fim sem pelo meio passar....

dezembro 16, 2014

PLAY Sérgio Godinho Ser ou não ser
Ser ou não ser gente
ter ou não ter sonhos
mais exactamente
vir
à tona dos sonhos
Ter sempre a certeza das dúvidas
por via das dúvidas saber o que achar
Dobradores do ferro
sopradores do vidro
na margem do erro ser
claro como o vidro
Ter sempre a destreza da prática
por via da prática saber o que achar
Ah, morrer, dormir, talvez sonhar
mas então
que outros sonhos virão?
Morrendo, vivendo, dormindo
talvez que sonhando …
Ter sempre a certeza da música
por via da música tocar e cantar
Sedutores da musa
amadores da musa
mesmo que difusa
ser
a imagem de alma
Ter sempre a clareza da fábula
por via da fábula saber o que achar
Dedos semelhantes
às velozes aves
mesmo que distante
ouvir
o chamar das aves
Ter sempre a afoiteza do pássaro
por via do pássaro subir e pousar
Ah, morrer, dormir, talvez sonhar
mas então
que outros sonhos virão?
Morrendo, vivendo, dormindo
talvez sonhando …
Ter sempre a certeza da música
por via da música tocar e cantar
Gente grande ensina o caminho, de casa para o trabalho, ao carro, ou às pernas, para o poder fazer de olhos fechados. Gente grande serve-se da dor com prato cheio e ainda repete da refeição. Gente grande empresta o corpo a todos menos a si próprio. Gente grande guarda as lágrimas para as horas vagas e disfarça o vermelho dos olhos com conjuntivite.... 

Roberto Juarroz

©raquelsav. MontBlanc
Ir até ao extremo é ficar sem lugar,
porque o extremo não é um lugar,
mais além não há espaço
e quem foi até ao extremo
já não pode retroceder.
Ir até ao extremo consiste precisamente
em achar a impossibilidade do regresso.
Ou talvez tão-só 
a impossibilidade.
E o impossível não precisa de lugar.

Roberto Juarroz
Poesia Vertical