setembro 30, 2016

setembro 09, 2016

Cesariana

No fim da tarde eu observo as abelhas
na sua telepatia intermitente.
Um cuco canta. As rãs, ao simples movimento
dos meus pés, saltam para dentro da água.
E a casa em frente alberga outros fantasmas
que se recusam ao meu imaginário.
Pergunto a esta paisagem pela minha paisagem.
Nenhuma voz interna aqui dilata o espaço
e vem chegando o vento.
Ouço-o cantar na folhagem em flor
das laranjeiras.
O homem está presente: a escada junto ao muro,
a terra bem tratada de um faval em flor
das laranjeiras.
O homem está presente: a escada junto ao muro,
a terra bem tratada de um faval ao longe.
Não posso aceitar esta solidão
que o céu, agora em concha, fechou
dentro do dia contra a natureza.
Esta casa repele a minha vida.
Com os olhos cheios de lágrimas,
aguardo que a memória apunhale a casa
e crie para mim outras moradas.

Armando Silva Carvalho | Sentimento dum Acidental | Contexto de Poesia | 1981
China
(Final do século XVI)

Beber, empanturrar-se, fornicar, à mão comer das raparigas
Vai-se a energia e o sangue que há nas veias.
Perdes a esporra, mijas sangue e tutano
Sem azeite, na candeia, a vasa seca.
Então nunca tinhas dos prazeres bastante
Agora são por demais maleitas e dolências.
Que bela montanha: por ela própria voltada e derrubada.
E no final - para que servem - os remédios?

Poemas anónimos (Turcos, Mongóis, Chineses e incertos) | Assírio & Alvim | 2004

setembro 06, 2016

último adeus II

O navio desatraca
imagino um grande desastre sobre a terra
as lições levantam voo,
agudas
pânicos felinos debruçados na amurada

e na deck chair
ainda te escuto folhear os últimos poemas
com metade do sorriso

Ana Cristina César (1979) | Poética | Companhia das Letras | 2013
recuperação da adolescência

é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço

Ana Cristina César (1979) | Poética | Companhia das Letras | 2013

setembro 01, 2016

agosto 31, 2016

©raquelsav | Agosto2016| Mosteiro- Pitões das Júnias
"Por fim, foi à magia que coube a honra de se instalar entre os meus escombros e, ainda hoje, quando me passeio entre eles, descubro vestígios. Mas na maior parte das vezes trata-se de um lugar sem projecto nem limite, onde existem até materiais que me são estranhos, sem falar na sua disposição. E a coisa em ruínas, não sei o que é, o que foi, nem, por consequência, se não tratará menos de ruínas do que de uma sólida confusão de coisas eternas, se é que é esta a expressão correcta. É, em todo o caso, um lugar sem mistério, a magia abandonou-o, considerando-o sem mistério. E se não vou até lá de boa vontade, vou porventura com um pouco mais de boa vontade do que a outro lugar qualquer, surpreso e tranquilo, diria como um sonho, mas nem assim, nem assim. Mas este não é um desses lugares a que se vai, mas sim daqueles lugares onde, por vezes, nos encontramos sem saber como, e que não se abandonam quando se quer, e onde nos encontramos sem qualquer prazer, mas com menos desprazer, porventura, do que nos lugares de onde nos podemos afastar ao sentirmo-nos mal neles, lugares misteriosos, cheios de mistérios conhecidos. Escuto e oiço-me ordenar um mundo imóvel, em desequilíbrio, sob um dia frágil e calmo, sem mais, suficiente para o ver, compreendem, e também ele imóvel. E oiço murmurar que tudo se verga e curva, como sob o peso de fardos, mas aqui não há fardos, e também o solo, difícil de transportar, bem como o dia, para um fim que parece não existir. Pois que fim existe para estas solidões para quem a verdadeira claridade nunca existiu, nem o equilíbrio, nem a base, mas sempre essas coisas pendentes resvalando num aluimento sem fim, sob um céu sem memória de manhã, nem esperança de tarde. Essas coisas, que coisas, vindas de onde, feitas de quê?" 

Samuel Beckett (1951) | Molloy | Relógio d'Água | 2003
©raquelsav |Agosto2016| Santa Maria do Bouro
PARTO
Ao Luís Jorge
Contigo
este vínculo de parto,
à mistura
com o silêncio das coisas...

que crescem

Maria Teresa Horta | Destino | Quetzal | 1998

agosto 19, 2016

nothing really ends

©Luigi Pirandello | Diana e la Tuda | 1926

"Ela foi uma flor que se aspira e se deita fora - quase sem reparar - cismando na imortalidade da alma. As suas palavras raras e baixinhas, pronunciadas com medo de pousar, entristeciam-me, e a sua palidez que os negros cabelos emolduravam, dava-lhe o ar duma criatura que não pertencia a este mundo.

Se eu pudesse cinematografar a vida e a morte de uma flor, cinematografava a sua vida. Não valia nada - o que vale um pássaro, e em questões afectivas, em ternura, tinha a profundidade do mundo -  a do silêncio - a do sonho.

Não sei dizer se existiu, se a criei, e o que na realidade me interessa é o que ela disse à grande nódoa de humidade da parede.

Sei que chorou mas não a ouvi chorar. Ninguém a ouviu, ninguém deu por ela. Passou como uma sombra. Habituou-se. As lágrimas sumiu-as, meteu-as para dentro. A dor aprendeu a contê-la. Habituou-se a queixar-se à grande nódoa de humidade da parede. E o principal para mim foi essa queixa que ninguém ouviu no mundo; foi o que os seus olhos verdes de espanto decifraram naquele arabesco da parede. Podes porventura conceber isto? Uma dor que não deixa vestígio, um sonho ignorado que não deixa vestígio, que passa no mundo e não deixa vestígios - a dor despercebida, as lágrimas contidas que se não chegam a chorar?

Posso dizer que só dei por ela depois de morta. As horas belas perdi-as a sonhar, quando a vida estava a meu lado. Eu não vivi! Só agora é que me lembro dela, como duma tarde que viesse devagarinho na ponta dos pés, e se fixasse num minuto, no silêncio, nas coisas suspensas na luz - nos botões quase a abrir.

Estraguei tudo, estraguei a minha vida e a sua vida.

O dia de hoje não existe para mim: só penso com sofreguidão no dia de amanhã. Ora amanhã é a morte. E sucede também que só dou pelas coisas belas da vida, depois que passaram por mim, e que as não posso ressuscitar. Há na vida um único momento. Um momento que sorri. Que concentra em si todos os momentos. Troquei-o pelo absurdo. Troquei a vida pela morte. Só agora seus olhos verdes de espanto me chamam, seus olhos que exprimem o irreal e o mundo todo, seus olhos cheios de dor represa e de sonho coado por lágrimas....

É que há entre figuras que compõem o meu ser, duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma que crê, outra que não crê. Há uma capaz de todas as cobardias, outra capaz de todas as audácias. Há uma pronta para todos os rasgos e outra que a observa e comenta.

Mas há entre as figuras que compõem o meu ser, uma que está calada. É a pior. Olha para mim e basta olhar para mim para que eu estremeça.- Por muito que me acuses, já eu me tenho acusado muito mais!

Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos teus olhos, a sofreguidão profunda dos teus olhos, que me reclamam como um abismo de dor e de espanto onde encontro enfim a vida!

Se te quisesse descrever, não te podia descrever. Sei que me pertences e que te pertenço."      

Raul Brandão (1917) Húmus | Relógio d'Água | 2015
"Há um não sei quê de monstruoso neste mundo, que bebe todas as lágrimas e leva todos os gritos. E não se farta. Há não sei quê que reclama dor."

Raul Brandão (1917) Húmus | Relógio d'Água | 2015

Enfim temos
as duas mãos cheias de luz -
as estrofes da noite, as agitadas
águas batem de novo nas orlas
da margem, no sono cru,
sem olhos, dos animais no canavial
depois do abraço - então
voltamo-nos para a encosta
lá fora, contra o céu
branco que desce
frio sobre o
monte, a cascata de brilhos,
e cristaliza, gelo,
como caído de estrelas.

Na tua fronte
quero viver o pequeno
tempo, esquecido, deixar
passar silencioso
o meu sangue pelo teu coração


Einmal haben
wir beide Hände voll Licht -
die Strophen der Nacht, die bewegten
Wasser treffen den Uferrand
wieder, den rauhen, augenlosen
Sclaf der Tier im Schilf
nach der Umarmung - dann
stehen wir gegen den Hang
draußen, gegen den weißen
Himmel, der kalt
über den Berg
kommt, die Kaskade Glanz,
und erstarrt ist, Eis,
wie con Sternen herab

Auf deiner Schläfe
will ich die kleine Zeit
lebeb, vergeßlich, lautlos
wandern lassen
mein Blut durch dein Herz.
  
Johannes Bobrowski (1917 - 1965) | Como um respirar - antologia poética | 1990 | Edições Cotovia |Tradução João Barrento

agosto 18, 2016

"A primavera é um fenómeno eléctrico.

Na primeira tentativa da flor há fealdade e ao mesmo tempo candura; depois, da noite para o dia uma gota de tinta como uma gota de leite. Basta que à névoa se misture o sol, para entreabir, ainda informe. Todos os seres, antes de se vestir, são abortos: têm medo de nascer belos.

Às vezes basta um dia. Dum instante para o outro, poeira azul, entontecimento, sonho...

E isto não é só material. Neste mistério há certa dor, certa tontura, há até espanto. É um olhar que se abre para o mundo. Pela emoção a árvore comunica com o universo e manifesta uma vontade que triunfa sobre a dor inconsciente.

Entre a árvore, o céu e a terra há um compromisso de ternura."

Raul Brandão (1917) Húmus | Relógio d'Água | 2015
"Desapareceu a morte e eis-me aqui preso a esta criatura de olhos tristes fitos em mim. Para sempre! Até as coisas mais belas se transformam em absurdo e me pesam como chumbo. Pesa-me a tua amizade, pesa-me o teu amor - para sempre.

A pobreza e a humildade não se toleram para sempre."

Raul Brandão (1917) Húmus | Relógio d'Água | 2015

Notícias do Fundo

PLAY Ornatos Violeta | Notícias do Fundo

Dá notícias do fundo
Como passam teus dias
Diz se a razão nos chega para viver
Se amor nos serve,
Amor não dá de comer
Fico melhor assim
Em todo o caso vai pensando em mim

Se tocámos em alguma coisa
Se me chamas por algum motivo
Se nos podem ver
Se nos podem tocar

Meu desejo
É morrer na paz do teu beijo
Sem futuro
É lutar por um beijo mais puro

Eu vou estar sempre aqui
Nada vai mudar
Sinto-te arder no meu fundo
Eu vou estar sempre aqui
Nada vai mudar
Sinto-te entrar no meu mundo
Fundo

Nós tocámos em algumas coisas
Nós seguimos por alguns sentidos
Se nos podem ver
Não nos podem tocar

Meu desejo
É morrer na paz do teu beijo
Sem futuro
É lutar por um beijo mais puro.


Ornatos Violeta

agosto 05, 2016

mudam-se os tempos...

"15 de Novembro
Debaixo destes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la. O sino toca a finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimónia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu pudesse restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor de mata-borrão. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criptogâmica, nascida ai acaso num sítio húmido. Têm o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem, ressurgem sem razão aparente e de um dia para o outro num palmo de Universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos sais, exalam os mesmos gases, e supuram uma escorrência fosforescente, que corresponde talvez a sentimentos, a vícios ou a discussões sobre a imortalidade da alma.
As paixões dormem, o riso postiço criou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza, e só um ruído sobreleva, o da morte que tem diante de si o tempo ilimitado para roer. Há aqui ódios que minam e contaminam, mas como o tempo chega para tudo, cada ano minam um palmo. A paciência é infinita e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a cor da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manha anda e desanda, e por mais que se escute, não lhe ouvem os passos. Na aparência é a insignificância a lei da vida: é a insignificância que governa a vila. É a paciência, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: - Tem paciência - e os seus dedos ágeis tecem uma teia de ferro. Não há obstáculo que a esmoreça - Tem paciência - e rodeia, volta atrás, espera ano atrás de ano, e olha com os mesmos olhos sem expressão e o mesmo sorriso estampado. Paciência... Paciência... Já a mentira é de outra casta, faz-se de mil cores e toda a gente a acha agradável. - Pois sim... pois sim."

Raul Brandão (1917) | Húmus | Relógio d'Água | 2015
APESAR DE TUDO
Passou muito tempo. O que trouxemos connosco das nossas casas,
tudo se rompeu, se gastou, se sumiu.

O som do bater da porta no ardor-do-sol
a voz que dizia no corredor "como vens tarde",
o pente branco com que se penteava a mulher em frente ao espelho,
um cigarro que fumávamos à janela numa noite de-primavera
empurrando a cauda da Ursa Menor,
a sombra de duas mãos por sob a lâmpada, entre dois pratos de fruta, -

Tudo quanto trouxemos connosco dentro de nossas trouxas,
aquelas peúgas brancas que usávamos outrora de verão na praia,
e as ceroulas brancas e as camisolas desportivas que se diriam assentar-bem no corpo de Abril,
e ainda a tesourinha com que cortava outrora a nossa irmã mais-nova as unhas no peitoril-da-janela
e os reflexos das vidraças que tremiam sobre suas faces e suas mãos,
tudo isso se desfiou, se despedaçou, se gastou,
enferrujou também a tesourinha, quebraram--se-lhe as pontas,
é como a andorinha morta - ali no chão sobre a pedra -
ao lado da máquina de barbear e do sabão do mar -
não reparamos nela - cortamos as unhas dos pés, cortamos os calos
 é como uma chave ferrugenta - não serve - as fechaduras quebraram-se.

Tudo quanto trouxemos connosco em nossas trouxas e em nossas malas
tudo se rompeu, se gastou. Não resta nada.

Apesar de tudo, de vez em quando, à hora em que anoitece
e a Ursa Menor pendura seu pequenino-farol à entrada da tenda
cavando uma pequena vala com suas unhas na terra seca,
o Petros e o Vassílis ou o Ti' Andónis
procurando dentro da trouxa certa colher perdida ou o púcaro,
suas mãos ficam-lentas - esquecem-se
e à sua volta o ar torna-se redondo e imóvel como o azeite dentro da dorna
e o silêncio fica como a pedra-de-moinho quando lhe cortam a água.

Então ouvimos de súbito aquele esquecido som
como se cortassem com esta tesourinha os papéis do guarda-pratos em véspera de Natal,
como se erguidos nas pontas dos pés acendêssemos na lua o nosso cigarro.

E então sabemos que lá-bem-no-fundo das nossas malas,
por debaixo das não-lavadas camisas e das esburacadas peúgas,
resta ainda uma toalhinha bordada de familiar serenidade
e aquela sombra de duas mãos amadas como duas grandes secas parras.

E é estranho. Queremos chorar.              
                   
Giánnis Ritsos (1909 - 1990) | Antologia | Fora do Texto | 1993 | Trad. Custódio Magueijo