agosto 20, 2015

[#5] palimp­sesto

- Tu é que pediste para ler.
- Achas que li? Afinal, não vesti os óculos.
- A cegueira é tão conveniente, não é?
- E tu sabes o que tens estampado no rosto, não sabes?
- Sim. A clarividência inclui-me.
- Ah, és um metafísico, portanto.
- E tu, uma palerma.
Inspirámos em uníssono. Ambos, ruidosamente, forçando a exalação de um ar, em ambos, saturado.
(_________________)
Rompeste o silêncio:
- Vens renovar?
- Claro. Renovar é tudo o que está ao nosso alcance. Já tudo foi criado.
- Pelo menos há a esperança de que a fotografia saia melhor.

Creio que nos encontrámos. Não são fáceis os encontros. Um encontro nasce dessa força capaz de romper o egoísmo. E nós somos tão aleatórios para sermos síncronos.

- Posso pedir-te uma coisa?
- Diz.
- Acaba de escrever o poema que estavas a escrever. Eu não te interrompo, eu não olho mais para ti.
- Posso tentar. Mas quero que olhes tão perfeitamente para mim.
fotograma de Não Amarás (1988) de Krzysztof Kieslowski


"Terminaste? Gostaste? 
Pois aí está tudo o que representa o amor.
Há toalhas na casa de banho- podes limpar-te"

agosto 19, 2015


Brincamos às vidas
e, na hora da morte,
damos água ao caule,
na esperança de reanimar
a flor.

©André Kertész 
"AS PESSOAS PÕEM NOME A TUDO E A SI PRÓPRIAS TAMBÉM
(...)
Era uma vez uma rapariga chamada Judite. Mas o seu nome verdadeiro não era Judite. Só às vezes, em ocasiões muito íntimas, é que ela esteve quase para dizer tudo:
- Eu não me chamo Judite. 
(...)
Há quem sinta prazer em proceder como anónimo. Não é ao que o autor se refere. O anónimo sabe ver. 
(...)
ÀS VEZES O DIA COMEÇA À NOITE"

José de Almada Negreiros (1938)
Nome de Guerra, Assírio&Alvim, 2004
C-121

It seems so long ago, Nancy
Leonard Cohen

não muito longe nessa cidade com os seus milhares
de encontros às cegas houve também outras noites
como esta ao voltar para casa - os caminhos

mortos do regresso as mesmas perguntas - 
e é que apesar do amor dos braços
e das pernas abertas a solidão regressa

com as suas dúvidas

Pablo Garcia Casado (1972 - )
in Trípticos Espanhóis - 3.º, Relógio D'Água, 2004

agosto 18, 2015

©Daniel Blaufuks. Passos em Volta

    "Deus principia a inspirar-me terror. A minha unidade, sobretudo. A unidade fechada e imóvel. O universo passa bem sem mim, e o terror é uma inspiração sem mácula, dentro do que se pode alcançar.
    Não, não está ninguém junto à porta."

Herberto Helder (1963)
Os comboios que vão para Antuérpia in Passos em Volta, Assírio&Alvim, 2009

agosto 17, 2015

©Gérard Castello-Lopes Untitled, Lisboa, Portugal, Undated
"Às vezes, não és mais do que um suporte para o meu rancor.
Outras vezes, quero construir contigo toda a memória, só me lembrar de ti, seres tudo o que há para lembrar."

Rui Nunes [1995]
Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado. Relógio D'Água, 1995
"E no entanto é verdade, faço aqui uma pergunta de todo escusada - o que vale mais: uma felicidade barata ou um sofrimento sublime? Caramba, o que vale mais? "

Fiódor Dostoiévski [1864]
Cadernos do Subterrâneo, Assírio&Alvim, 2000

[#4] palimp­sesto

"Ourém, Conservatória do Registo Civil, 11 de Agosto de 2015

     - Olá, estás boa?  - Silêncio.
    André, vê se te convences! Eles não te ouvem. Estão demasiado distantes de si para te poderem ouvir. Queres escrever um coral a quantas vozes? Não te chegam as tuas? E que pergunta escusada é essa? Não vês que não? Resta-te assim tanto tempo de vida que o possas gastar em perguntas inúteis? Pergunta-lhe o que lhe faz lembrar o cheiro desta casa; se já sentiu a fúria do vento a subir-lhe pelas pernas; se, pela manhã, bebeu o café ou se o degustou; se se lavou do banho da noite; se hoje já se masturbou... enfim, pergunta-lhe algo que a possa fazer sentir-se viva. V   I   V  A.  Já sabes as respostas, de qualquer forma!

   Ontem- a distância que criámos entre o que fomos e o imaginário que passamos a ser. Ontem- a palavra que branqueia o tempo e faz vacilar a dúvida e o erro que somos...

    Foda-se! Não consigo. É que não consigo concentrar-me! Basta!
   Por que é que tens de vir ter comigo com esses olhos lânguidos? É um pedido de socorro, é?  Eu só quero escrever de mim, para mim, sobre mim. Eu só quero poder desenhar uma gaveta fechada, para não ter de ver o que nela se encerra. Não quero ver. Não quero ver-te. Desaparece. Desaparece-me. Mas quem te deu autorização para entrares assim? Já disse que não me interessas, porra! Por que é que tenho de arcar com os teus dilemas de síndrome pré-menstrual? Quero lá saber dos teus excessos de testosterona. Queres o quê? Queres que eu te chame falsa, idiota? Queres que te arranque essa máscara ridícula com que enganas meio mundo e, quase, a ti? Ou preferes que esconda a minha mão debaixo da tua saia? Deixa de ser idiota. A única coisa verdadeira em ti são essas unhas. Autenticadas pela micose que nem fazes questão de esconder. Ostentas orgulho nelas porquê? Porque são feias e fracas? E por que raio as cortas rente e não as pintas como as outras gajas? Por que não as cobres de verniz-gel, a condizer com a tua dissimulação? Sabes o que isso é, ao menos, verniz-gel? Oh pá, deixa-me em paz. Eu só quero escrever de mim, para mim, sobre mim. Já disse. Pára de me fixar com esse olhos brilhantes. Vens renovar o quê? O cartão que te dá um número? O mesmo número de sempre? O número onde te escondes de borrasca em borrasca? Tens medo de quê, afinal? De admitir que o que tens te chega e sobra à tua pobre ambição? Que vagueias como quem vive? Por que fazes tanta questão de te boicotar? Por que negas despir-te?  Por que merda é que não queres ser feliz? Que enfado lírico! Estou farto de ti. De todos os outros iguais a ti. Farto do mundo. Larguem-me, porra. Eu leio-vos a milhas. Deixem-me em paz. Só quero paz! Só quero distância.

    Não acredito. Deixaste cair a porra do lápis de propósito, só para testar os meus dotes de Don Juan? És tão previsível!"

- Desculpa, posso?


agosto 14, 2015

Dostoiévski

    

"Olhou para a filha como um homem novo olha para as pernas de uma mulher na rua, e a filha teve medo.
    Mas não tenhas medo, eu sou bom.
    E o velho disse: em tempo de guerra não disparar é oferecer flores. Em tempo de paz não oferecer flores é disparar.
    Ela atravessou o pátio onde três guardas lhe apontavam uma arma e imaginou em cada guarda um homem que lhe estendia um ramo de flores. Mas duas armas dispararam e só uma não disparou."

Gonçalo M. Tavares (2004)
Biblioteca, Campo das Letras, 2006

[#3] palimp­sesto

- Sim, tens razão. Desculpa. Eu não faço ideia do que escreveste. Usei a palavra verborreias por mero exercício lexical. Enfim, para exercer o meu direito literário ao uso de palavreado acessório.
- Ah, afinal não sublinhas, apenas. Também escreves.
- Só escrevinho.
- És escritora?
- Não, deus me livre. Amo demasiado as palavras para querer ser escritora.
- Eu empresto-te o meu lápis, se quiseres. Este é dos que escreve.
- Esquece. Não preciso de criar matéria para exacerbar a minha mediocridade. Deixa-me ler o que escreveste.
- Não trouxeste os óculos.
- Eu não uso óculos.
- Claro que usas. Tu é que não sabes.
E li, sem óculos. Mastiguei a custo. Degluti em disfagia. Não engoli.
Senti que o tempo parou. Que parámos nós nele. Numa linha de tempo cru. Num espaço como nunca antes, real.
- Então, não sublinhas?
- Ordinário.

agosto 13, 2015

[#2] palimp­sesto

Hoje, voltei. Voltei a antes de ontem. O dia em que escrevias no bloco verborreias da tua memória, empilhando palavras como quem perfila tijolos numa parede sem fundações. Mas fui eu que deixei cair o lápis.
"Desculpa, posso?"- perguntavas.
E eu pensei que poder até podias mas que as minhas unhas estavam uma miséria e que a depilação já tinha dias.
"Não te preocupes com as unhas, só quero apanhar o teu lápis." - adivinhaste?
[O corpo da mulher, na sua perspectiva de mulher, há-de ser sempre uma vertigem. ]
Num movimento brusco, escondi os dedos, como se calçasse meias-pontas mas sem a candura de um elevé. Entregaste-me o lápis.
- Obrigada. Este não serve para escrever. Só serve para sublinhar.
Continuaste a escrever. E eu a sublinhar.

Vicent Tim Burton (1982)

Paul (Pal Funk) Angelo -Vilma Banky, 1920s
PLAY Peixe Pêndulo


"todas as pessoas e personalidades espontâneas são activas precisamente porque são lorpas e limitadas. (...) como consequência de serem limitadas, tomam as causas superficiais e secundárias por causas primeiras, desta maneira se convencendo mais fácil e prontamente do que os outros que acharam fundamento indefectível para as suas acções, e isso sossega-as; e é isso o  mais importante, o sossego. Porque, para se começar a agir, é necessário estar-se prévia e completamente em sossego e que não existam já dúvidas nenhumas. Então, e eu, por exemplo, como hei-de sossegar-me? Onde tenho eu causas primeiras em que me baseie, onde estão os fundamentos? Onde arranjá-los? Exercito-me no raciocínio e, como consequência, para mim qualquer causa primeira arrasta consigo uma outra, ainda mais primeira, e assim por diante até ao infinito. "

Fiódor Dostoiévski [1864]
Cadernos do Subterrâneo, Assírio&Alvim, 2000


©HU-untitled, 2012 oil on paper mounted on plywood 89x45 cm

"And I move out of love.
If only there was only no consequence.
I'd watch it all turn to dust"

Primeira Lei de Newton: Todo o corpo continua no estado de repouso ou de movimento rectilíneo uniforme, a menos que seja obrigado a mudá-lo por forças a ele aplicadas.
Segunda Lei de Newton: A resultante das forças que agem num corpo é igual à variação da quantidade de movimento em relação ao tempo.
Terceira Lei de Newton:Se um corpo A aplicar uma força sobre um corpo B, receberá deste uma força de mesma intensidade, mesma direção e sentido oposto à força que aplicou em B.
  
Qual a direcção e intensidade da força que anula a nossa inércia?

O que podemos esperar da resultante das nossas forças?

Como se poderá definir melhor o nosso movimento? Na velocidade média ou na velocidade instantânea?

Quando esperar que a força que exercemos num corpo tenha como resposta uma força de igual intensidade, em sentido contrário?


[#11] Jingle
  A beleza da física que te define não está na força de que dispões mas na que estás disposto a aplicar.
(17/04/2013)
©Angelo (Funk Pál) Idõzavar, 1965 
POEMA
(para Mário Cesariny)

Moveu-se o automóvel - mas não devia mover-se
não devia!

Ontem à meia-noite três relógios distintos bateram:
primeiro um, depois outro e outro:
o eco do primeiro, o eco do segundo, eu sou o eco do terceiro

Eu sou a terceira meia-noite dos dias que começaram

Pregões de varina sem peixe
- o peixe morreu ao sair da água
e assim já não é peixe

Assim como eu que vivo uma VIDA EXTREMA

António Maria Lisboa (1928-1953)
Poemas, Biblioteca Editores Independentes (Assírio&Alvim), 2008

agosto 12, 2015

"O homem gosta de criar e de construir caminhos, é indiscutível. Mas por que gosta também apaixonadamente da destruição e do caos? (...) Não será possível que o homem goste da destruição e do caos porque tem um medo instintivo de alcançar o objectivo e concluir a construção do edifício? Talvez só de longe goste do edifício e não de perto. Talvez apenas goste de construí-lo e não de viver nele, oferecendo-o, depois, aux animaux domestiques, ou seja, às formigas, aos carneiros, etc., etc. Quanto às formigas, essas têm outros gostos. Têm um só admirável edifício deste género, indestrutível- o formigueiro. "

Fiódor Dostoiévski [1864]
Cadernos do Subterrâneo, Assírio&Alvim, 2000

[#1] palimp­sesto

Ontem, vi-te. Fui à Conservatória do Registo Civil e conheci-te. Renovavas o nome. Patenteavas o desespero, nessa imitação barata a que chamas vida.
"Que mais me irá acontecer?" - dizias.
E eu senti o cheiro da borralha, dos ossos desfeitos em fogo, quando a cinza, semi-apagada, nem de fertilizante serve.
A memória intersticial não dá para mais, principalmente se as urgências do corpo se sobrepõem a determinações literárias:
"Podia jurar que nunca te vi mais gordo". - disse.
"Ah, deve ser dos medicamentos, fizeram-me engordar"- brincaste.
Tudo o que senti foi vergonha. Não tanto por não te ter reconhecido mas porque o mais que me apetecia era foder-te ali, por inteiro. Não sei se me leste o pensamento ou se o murmurei, descuidadamente, mas juro que te ouvi dizer:
"Hoje, sim. Agora, também”.

Aguardámos em silêncio na bicha. Renovámos os cartões e eu encenei uma despedida:
- Prazer em conhecer-te.
- O prazer foi todo meu!
- Todo? Acho que não!
E sorrimos.

[Ourém, Conservatória do Registo Civil, 2015]
"Não será que a tendência recente dos websites "-cam", que consubstanciam a lógica de A vida em Directo (nestes websites, podemos seguir continuamente um acontecimento ou o que se passa num dado local: a vida de uma pessoa em sua casa, a vista de uma rua, etc.), revela esta mesma necessidade urgente do Olhar fantástico do Outro, como garantia da existência do sujeito? "Só existo na medida em que sou olhado constantemente..." (Como observa Claude Lefort, um fenómeno semelhante é o do aparelho de televisão que está ligado em permanência, mesmo quando ninguém está a ver, isto serve como garantia mínima de existência de um elo social). Assim, estamos na situação da inversão tragicómica da noção orwelliana-benthamiana da sociedade panóptica, na qual somos (potencialmente) "observados durante todo o tempo" e não temos lugar onde não possamos esconder do olhar omnipresente do Poder: aqui, a ansiedade surge perante a perspectiva de não se estar exposto em permanência ao olhar do Outro. O sujeito precisa do olhar da câmara como uma espécie de garantia ontológica da sua existência..."

Slavo Žižek (2005)
Lacrimae Rerum,  Orfeu Negro, 2013
Mapa de Desencontros

I
Abrigo-te
mais uma vez
há muito tempo
disseste aqui
hei-de morrer
voltas sempre 
a esta morada
ris-te e partes
no telhado frágil
caem as primeiras
águas de Inverno.

III
Olhamos o amor e a morte
desdobrando-se no tempo
nas rugas das suas estações
demasiado tempo mantemos
a ilusão de uma diferença
mas o tempo comprime-se
naquele momento breve
em que a nossa vontade
julga poder prescindir dele.

Carlos Alberto Machado (2000)
Registo Civil- poesia reunida. Assírio&Alvim, 2009
A Minha Mão Acariciando


Acabou tudo
o corpo na areia fria
retenho muito tempo a imagem
unem-se as vagas em assalto
final 
resisto.

V
Desloco para a tua retina
todos os pasmos do crime
impressionante não é tanto
o sangue que inunda a cama
o latejar do coração sob 
o punho que desfere o golpe
mortal é o pensamento
que dá a força ao acto
que destroça o cérebro
golpeia uma a uma as amarras
o teu corpo sob o meu amolece
e os teus olhos encerram
as imagens que não verei.

VI
A tua medida será esta bem sabes
uma hora nem mais é a medida exacta
o tempo que o antigo veneno celta
vai demorar a percorrer-te o corpo
há tanto tempo que sabemos disto
o espanto é adivinhar-te agradecida
e saber do meu gozo de cada segundo
dessa hora como a hora da minha morte.

Carlos Alberto Machado (2000)
Registo Civil- poesia reunida. Assírio&Alvim, 2009

agosto 10, 2015

©Angelo (Funk Pál) Részegek utcája, 1928

Somos iguais - tão perfeitamente distintos.
Ambos sabemos que o tanto que nos identifica
é o muito que nos distingue.
Não seremos, por isso, melhores.
Nem piores - somente diferentes,
pelo tão iguais que somos.

E é assim que nos amamos:
amamo-nos a nós mesmos,
como ninguém nos soube ensinar.

Pudesse o regresso ser ponto de partida
e o ai de um nada que doeu
guardasse o instante-  em pó-
da ferida.
 ©Nikos Economopoulos. Greece, Preveza.
Carnival. My son Dimitris and my daughter Lina.

PLAY Fat Freddy Frenesim de Canibalismo Ritual
fotograma de Loin des Hommes de David Oelhoffen (2014)

"Balducci fez o gesto de passar a lâmina no pescoço. O árabe, cuja atenção fora atraída para a conversa, observava-o inquieto, e Daru sentiu uma cólera súbita contra esse homem, contra todos os homens e sua estúpida maldade, contra os seus ódios incansáveis e inextinguível sede de sangue."

Albert Camus (1957)
O Hóspede in O Exílio e o Reino, Edição Livros do Brasil

agosto 08, 2015

©Gerard Castello Lopes
PLAY Linda Martini Volta

Beberei o avesso do copo
e o pingo que restar
partilharei contigo.
Seremos um-
pingo e corpo-
no avesso de um erro.

©Shomei Tomatsu, Morning Light and an Organ Bach, Tokyo, 1971
"Solenemente vos digo: eu quis insecto, reiteradas vezes. E nem disso tive a honra. Meus senhores, garanto-vos que ter consciência muito desenvolvida é uma doença, uma doença no verdadeiro sentido do termo. A vida quotidiana contentava-se já bem demais com a consciência normal, ou seja, uma consciência inferior a metade ou três quartos da que é apanágio do homem evoluído do nosso desgraçado século XIX, de um homem que tivesse, para cúmulo, a especial infelicidade de viver em Petersburgo, a cidade mais abstracta e mais premeditada do planeta."

Fiódor Dostoiévski [1864]
Cadernos do Subterrâneo, Assírio&Alvim, 2000
    "Nunca o caminho percorrido é o mais acertado logo que reavemos a nossa capacidade de autocrítica e nos imaginamos pelo outro que não percorremos. O percurso que não fizemos é sempre melhor, e o melhor que teríamos feito, só porque se pensa que se se pensasse não se faria. Nós sabemos: somos um erro - mas a consciência disso isola-nos do erro alheio. Qualquer que seja a conduta humana não é falsa nem verdadeira - É (embora se possa pensar e sentir sempre errada).
    Assim, também, a existência do Universo não necessita de demonstração, porquanto ele existe e mesmo que não existisse, era assim que existia. A investigação deste Universo, de que falo, e há tal como o vou descobrindo e não como os outros o encontraram, fá-la-ei como me aprouver, sem ter que dar contas a ninguém, nem ter de pedir licença para o que possa dizer, pois desde o início é para mim mesmo que afirmo e que afirmo, antes de mais, para meu uso pessoal.
    Não me peça, grandes explicações os que, tímidos, ignoram ou temem a afirmação exaltada, o erro e a verdade requerida; não me perguntem os timoratos pelos fundamentos das minhas afirmações, porque se perguntam é porque não são Livres! porque não Amam! Os que não afirmam não estão - fora disso não há ignorantes. A verdade não se pensa - sabe-se; o que se pensa é a explicação da verdade."

António Maria Lisboa [1928-1953]
in Edoi Lelia Doura: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por Herberto Helder, Assírio&Alvim, 1985

agosto 07, 2015

©Othmar Herbst Paysage Hivernal, ca. 1960
PLAY Melody Gardot Wicked Ride
Sem linguagem que(d)escreva [tão grande o universo das palavras dos nossos dias] e à página tantas das palavras que aprendi e usei, não encontrei modo de o dizer.

Firmo-me, por isso, na cadência de um sorriso: três quartos de rio pela (im)perfeição do nosso barco.
RÊVE OUBLIÊ
Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti

Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna

Continuar a dar tiros e a modificar a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre a neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo

Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada

Abrir-se a janela para entrarem estradas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha

E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro

E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata

António Maria Lisboa [1928-1953]
in Edoi Lelia Doura: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por Herberto Helder, Assírio&Alvim, 1985



fotograma de Citizen Kane de Orson Welles (1941)
"- Eu recordo-me de absolutamente tudo, jovem. É a minha maldição. É uma das maiores maldições infligidas ao homem: a sua memória. Eu fui o seu maior amigo, e comigo ele comportava-se como um porco. Não que Charlie fosse grosseiro. Mas ele fazia grosserias. Talvez não tenha sido seu amigo. Mas, se não fui, ninguém foi. TaIvez eu tenha sido a sua escada.
- O senhor ia falar sobre Rosebud.
- Você tem um bom charuto? Há aqui um médico jovem que acha que vou parar de fumar.
- Não tenho, sinto muito.
- Eu mudei de assunto. Que velho desagradável eu me tornei! Você é jornalista e quer saber a minha opinião sobre Charlie Kane. Bom, creio que ele tinha alguma grandeza interior... mas guardou-a para si. Ele nunca se entregava, nunca dava coisa alguma... apenas te deixava uma gorjeta. EIe tinha uma mente generosa. Nunca vi ninguém com tantas opiniões! Mas nunca acreditou em nada, exceto em Charlie Kane. Nunca teve uma convicção na vida, excepto Charlie Kane. Acho que morreu sem nenhuma. Deve ter sido desagradável. Claro, nós morremos sem saber o que é a morte, mas sabemos o que estamos a deixar, acreditamos em algo. Você não tem mesmo um charuto?
- Desculpe, Sr. Leland.
- Tudo bem.

Leland & Thompson, "Citizen Kane" (1941) de Orson Welles

agosto 06, 2015

António José Forte e Aldina (Ilustração)
Uma rosa na tromba de um elefante, Parceria A. M. Pereira, 2014

 Inge Morath © The Inge Morath Foundation. USA. New York City. 1958.
The perfect eyebrow at Helena Rubinstein Beauty School
PLAY Aldina Duarte Assinatura: Arte do Fado PT.2

DECISÕES
    "Devemos ser capazes de superar facilmente um estado lastimável, ainda que com uma energia forçada. Levanto-me da poltrona, dou a volta à mesa, solto a cabeça e o pescoço, deixo os olhos ganhar luz, distendo os músculos à sua volta. Vou ao encontro de todos os sentimentos, recebo A. de forma esfuziante quando ele chegar, aceito amavelmente B. na minha sala, absorvo sofregamente, quando vem C., tudo o que se diz, apesar do sofrimento e do esforço.
    Mas, mesmo que as coisas se passem assim, cada erro que não possa ser evitado entravará tudo, o que é leve e o que é pesado, e eu vou ter de andar para trás em círculo.
    Por isso, o melhor conselho é aceitar tudo, comportarmo-nos como uma massa pesada e, ainda que nos sintamos impelidos por um vendaval, não ceder à tentação de dar um único passo desnecessário, olhar os outros com olhos de bicho, não sentir o menor arrependimento, esmagar com as próprias mãos aquilo que ainda resta da vida como um fantasma, ou seja, aumentar ainda o último silêncio, próprio do túmulo, e não aceitar mais nada a não ser ele.
    Um gesto característico de um estado de espírito como este é o de passar com o dedo mínimo pelas sobrancelhas."


Franz Kafka [1883-1924]
Parábolas e fragmentos, Assírio&Alvim, 2012
©Philippe Halsman 1954 USA. NYC. 1954. Salvador DALI.
PLAY Das Kabinette - The cabinet
PLAY The KVB Never Enough

Cruzam-se infâncias perdidas
onde sobram seres maternais.
Há vazio à boca cheia
e pintam-se máscaras ávidas de silêncio.
Talvez amanhã.

agosto 05, 2015

Reductio ad absurdum


"UM CRUZAMENTO
Tenho um animalzinho muito especial, meio gato, meio borrego. É uma herança do meu pai,mas só ganhou esta forma já no meu tempo, antes era mais borrego do que gato, mas agora tem a mesma percentagem de ambos. Do gato, a cabeça e as garras, do borrego, o tamanho e a forma, de ambos, os olhos trémulos e meigos, o pêlo macio e curto (...) Ele tem a inquietação de ambos, a do gato e a do borrego, por muito diferentes que sejam. Mas por isso ele se sente tão apertado na sua pele."

Franz Kafka [1883-1924]

Parábolas e fragmentos, Assírio&Alvim, 2012
"Dantes era funcionário, agora já não. Era um funcionário mau. Grosseirão, era um gozo para mim sê-lo. Não aceitava luvas, estais a ver, tinha de ter a minha compensação - nem que fosse dessa maneira. (...). Às vezes os requerentes chegavam-se à minha mesa para uma informação, eu rangia os dentes è laia de resposta e sentia um gozo insaciável quando conseguia pô-los aflitos. Conseguia-o quase sempre. Eram quase todos uns encolhidos- pois, requerentes."

Fiódor Dostoiévski [1864]
Cadernos do Subterrâneo, Assírio&Alvim, 2000
"Entretanto, apesar de tudo, embora seja sem dúvida possível supor-se isto e aquilo, e ainda aqueloutro, e talvez até... além disso, onde é que não ocorrem incongruências?... Se pensarmos bem, há qualquer coisa nisto... Digam o que disserem, acontecem coisas destas no mundo - raramente, mas acontecem."

Nikolai Gógol [1836]
O Nariz, Assírio&Alvim, 2002

agosto 02, 2015

Tabu

Tabu um filme de Manuel Gomes

"E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor."

Herberto Helder
Poesia Toda, Assírio&Alvim, 1990