agosto 12, 2015

[#1] palimp­sesto

Ontem, vi-te. Fui à Conservatória do Registo Civil e conheci-te. Renovavas o nome. Patenteavas o desespero, nessa imitação barata a que chamas vida.
"Que mais me irá acontecer?" - dizias.
E eu senti o cheiro da borralha, dos ossos desfeitos em fogo, quando a cinza, semi-apagada, nem de fertilizante serve.
A memória intersticial não dá para mais, principalmente se as urgências do corpo se sobrepõem a determinações literárias:
"Podia jurar que nunca te vi mais gordo". - disse.
"Ah, deve ser dos medicamentos, fizeram-me engordar"- brincaste.
Tudo o que senti foi vergonha. Não tanto por não te ter reconhecido mas porque o mais que me apetecia era foder-te ali, por inteiro. Não sei se me leste o pensamento ou se o murmurei, descuidadamente, mas juro que te ouvi dizer:
"Hoje, sim. Agora, também”.

Aguardámos em silêncio na bicha. Renovámos os cartões e eu encenei uma despedida:
- Prazer em conhecer-te.
- O prazer foi todo meu!
- Todo? Acho que não!
E sorrimos.

[Ourém, Conservatória do Registo Civil, 2015]