abril 05, 2016

"Podemos começar pela singular predilecção que o pensamento científico tem por explicações mecânicas, estatísticas, materiais, às quais, poderia dizer-se numa imagem, foi arrancado o coração. Ver na bondade apenas uma forma especial de egoísmo; relacionar as emoções com secreções internas; constatar que o ser humano é formado, em ou nove décimos, por água; explicar a célebre liberdade moral do carácter como apêndice mental automático do comércio livre; atribuir a beleza a uma digestão fácil e a bons tecidos adiposos; reduzir a procriação e o suícidio a gráficos anuais que mostram como necessidade aquilo que parece ser a mais livre das decisões; estabelecer afinidades entre o êxtase e a demência; equiparar o ânus e a boca, como extremidade rectal e oral da mesma coisa...: este tipo de concepções, que, por assim dizer, põem a descoberto o truque por trás do passe da mágica das ilusões humanas, contam sempre uma espécie de preconceito favorável que as faz passar por particularmente científicas. O que aí amamos é, de facto, a verdade; mas à volta desse amor nu há um gosto pela desilusão, a violência, a inexorabilidade, a fria intimidação e a seca admoestação, uma maliciosa predilecção, ou pelo menos uma involuntária emanação emocional desse tipo.
     Por outras palavras, a voz da verdade vem acompanhada por um ruído suspeito, mas aqueles a quem ela mais directamente diz respeito não querem ouvir falar disso.
 
Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)