abril 18, 2016

"Que peso tinha então, comparado com vivências de tal amplitude e profundidade, o vulgar amor físico por uma mulher? Arnheim teve de admitir com tristeza que pesava tanto como a constatação, que resumia toda a sua vida, de que todos os caminhos do espírito partem da alma, mas nenhum lá regressa! É certo que muitas mulheres tinham desfrutado de relações íntimas com ele, mas, quando não se tratava de naturezas parasitárias, eram mulheres activas, cultas, ou artistas, pois com estes dois tipos, as mulheres por conta e independentes, era possível um entendimento claro. As exigências morais do seu carácter tinham-no levado sempre para relações em que o instinto e os inevitáveis conflitos que a ele se ligam eram contidos dentro de limites razoáveis. Mas Diotima era a primeira mulher que atingia a sua vida mais secreta, para lá dos limites da moral, e por isso ele a olhava por vezes com uma certa inveja. Afinal ela não era mais do que a esposa de um funcionário, do melhor estilo, é certo, mas sem cultura humana superior que só o poder confere, e ele estava em condições de aspirar à filha de um magnata americano ou da alta aristocracia britânica, se quisesse casar-se. Havia momentos em que sentia renascer em si os primeiros conflitos do quarto de criança, um orgulho infantil ingenuamente cruel ou o choque da criança de boas famílias que é levada pela primeira vez à escola pública, de tal modo que a sua paixão crescente lhe parecia uma ameaça vergonhosa. E quando, nesse momento, regressava aos negócios com a superioridade gélida só possível num espírito morto para o mundo renascido, a fria razão do dinheiro, imune a qualquer contaminação, surgia-lhe como um poder extraordinariamente puro, quando comparado com a força do amor.
    Mas isso significava apenas que chegara para ele a hora em que o prisioneiro não compreende como pôde deixar que lhe tirassem a liberdade sem se defender até à morte. Na verdade, quando Diotima dizia "Que são os acontecimentos do mundo? Un peu de bruit autour de notre âme..." - nesses momentos sentia que todo o edifício da sua vida estremecia.
 
Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades | Dom Quixote | 2014 | 4.ª Ed.
(Trad. João Barrento)