março 27, 2014

L. Wittgenstein

2.01231
Para conhecer um objecto tenho de conhecer não as suas propriedades externas mas todas as suas propriedades internas.

2.06
A existência e a não existência de estados de coisas é a realidade.

L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus

março 25, 2014

Al Berto

Os Amigosno regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência

Al Berto, in  A noite progride puxada à sirga, 1987, 
Antologia da Poesia Portuguesa do Sec. XII ao Sec. XXI, p. 1901

março 24, 2014

Daniel Faria

Labirinto III

No meio do caminho da nossa vida
No meio do poema, havia
Uma pedra onde reclinar a cabeça.

A mulher andava no meio das estradas
Por sobre o mundo tecendo e destecendo
Duas asas que o pai soldava para o filho.
No meio do filho estava o labirinto

E o touro de Ariadne puxado por um fio
Lavrando
No coração de Teseu tão manso
No meio da idade aonde existe
O primeiro sinal do solestício

Daniel Faria (Poesia, 2006, p.68)

março 23, 2014

daniel faria

Não levantemos os homens que se sentam à saída
Porque se movem em seus carreiros interiores
Equilibram com dificuldade uma ideia
Qualquer coisa muito nítida, semelhante
A uma folha vazia
E põem ninhos nas árvores para se libertarem
Da gaiola terrível, invisível muitas vezes
De tão dura
Não nos aproximemos dos homens que põem as mãos nas grades
Que encostam a cabeça aos ferros
Sem outras mãos onde agarrar as mãos
Sem outra cabeça onde encostar o coração
Não lhes toquemos senão com os materiais secretos
Do amor.
Não lhes peçamos para entrar
Porque a sua força é para fora e a sua espera
É a fé inabalável no mistério que inclina
Os homens por dentro
Não os levantemos
Nem nos sentemos ao lado deles. Sentemo-nos
No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos
A qualquer instante


Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 127)

março 22, 2014

fernando guimarães

O grito
É possível que a noite venha ao nosso encontro quando estivermos
sozinhos. Seria assim que compreenderíamos um destino
que nos pertence, talvez a imagem esperada das nuvens que procuram
um céu apenas tecido. Sabemos de que se ocupam as mãos ao sentirem
o mesmo estremecimento que existe no interior simples das veias. Por isso é outra
a sombra que continua quase esquecida, os súbitos contornos
de uma voz que depois se afasta sem pressa. Nela se perde
a mesma imagem que se tinha encontrado como se fosse o sobressalto
dos nossos olhos, a largura dos cabelos soltos. Talvez comecem
a recordar de novo a luz cercada agora de uma ferida. Quem 
estava próximo para escutar o que seria esse rumor? Os lábios
encontraram um sulco e tudo ali principia devagar a acolher-nos. Depois
veremos como pelo corpo o sangue fica serenamente escrito.

Fernando Guimarães (O Anel Débil, 1992) 
em Antologia da poesia portuguesa do Sec. Xiii ao Sec. XXI

março 21, 2014

daniel faria


Sunam (2 Rs 4, 8-37)

O absurdo pode sempre visitar-te quando quiser
Tens um lugar para ele. Em cada dia uma nova entrada.
Tens a memória e sobre o banco à tarde
A mulher. Vamos construir - disse - um quarto no terraço
Quatro paredes de tijolo e uma lâmina ao centro
Uma cadeira, uma mesa. A bilha
Ficará connosco e beberá aqui.

O absurdo pode sempre visitar-te quando estiveres no campo
E o teu filho te disser: a minha cabeça
Pondo a mão sobre a nuca, tendo largado a foice.
O absurdo pode sempre parar à tua porta
Com o teu filho sobre o jumento pardo
Pode sempre visitar-te no rosto da mulher
- Era meio-dia sobre os meus joelhos -
E chamarás. Abrirás em cada dia
Uma nova entrada por onde possa visitar-te
Sentar-se aí ao teu lado. Onde costumas envelhecer.

Daniel Faria (Poesia,  2006, p. 157)

março 18, 2014

daniel faria

Explicação da Ausência

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer- fosse abertura
E a saudade é tudo ser igual.

Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 110)

março 15, 2014

Raquel Nobre Guerra

Marcial Afectivo
                                 these hands melt then disengage
                                                    Mike Van Portfleet

falo meu amor de limpar a boca
de beijos que sejam menos que beijar
à francesa, hímenes jugulares sucedendo
para dentro, aceso poema monumento só de ida
desimpedidamente esplanada atingindo de chapa na face
falo a alta velocidade de abocar as coisas indo montando nelas
de ocupar as casas as camas para engravidar da matéria ao espírito falo
de fechar o corpo num verso branco do Herberto
do antídoto das mãos como discos solares

Raquel Nobre Guerra (Groto Sato, 2013-2a Ed., p.26)

março 14, 2014

Daniel Faria

Acontecera que as coisas se destruíssem sem que nelas sobrevivesse
E era tarde.
Sozinho em tempos não fora a falta de ninguém
E o que doía não tinha o quisto da doença
Só o espaço sereno das coisas que se deixam.
Acontecera que nada se fizera fora
Do coração.
Acontecera que passara a noite a abrir os olhos
Para não se interromper
A estender a mão para estar vivo
E certo de que nem ele próprio se abeiraria de si mesmo
Pois ocupara-se rigorosamente de ausentar-se.
Mesmo se caminhara muito devagar
Sem outro meio para esperar que o visitassem.
Ele que é agora o que nunca repousou
O que nunca encontrará o sítio do sossego
A não ser que haja o equilíbrio na vertigem
Uma luz parada no meio da voragem.


Daniel Faria (Poesia, 2006, p.76)

março 13, 2014

©raquelsav


PLAY Pietro Mascagni: Cavalleria rusticana - Intermezzo


falo de uma espécie de barco de terno embalo. ninho e seio. peito de acalentar. colo de levar. abraço de trazer. 

falo de uma espécie de novo sono. original adormecer. berço de quietude. leve mergulho. água imagem de mãe.

falo de uma espécie de alvorada. suave aurora. regresso e longitude. mansa viagem e despertar. fino desembrulho.

sim, falo de uma espécie de novo acordar. em paz que se possa adivinhar_______________

Daniel Faria

Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.


                                 Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 78)



Na impossibilidade da amizade ter um fim,
continuar a amar é dizer adeus.
                                                 Daniel Faria 

Daniel Faria

Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos 
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim 

E bebe

Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 39)

março 12, 2014

sobre o paraíso ou sobre uma mulher e uma garrafa de vinho tinto


[pego na garrafa para a encetar]
somente decantar no meu olhar 
o corpo fluído da mulher sentada
e assentar em finas memórias
as suspensas partículas dos seus gestos

[encho o copo bem cheio]
corpo denso de invasões florais
especiarias verdes frutos carnais 
Touriga e Carbenet

[sirvo-me de aroma]
a mulher crua
vinho de cor em escrita
de contraste em luz 
na parede que se diga 

[é tinto]
cheiro a sangue da mulher 
transparência de si 
o corpo 
rede absurda 

[trago o oxigénio ao copo]
dissecados os taninos
no corpo jovem
do tinto de casca de uva

[é lágrima no vinho que o copo verte. digo]
o álcool em vapor flui no corpo da mulher casta
tinto frutado Syrah 
oxigénio que se afasta
e regressa no olhar profundo 
da lágrima da mulher

[e é o eco do silêncio do copo depois do brinde. responde]
silêncio_______________

[sirvo-me de um gole na língua inteira, à boca cheia]
mulher que se inspira 
textura ácida verdadeira
delicada pele 
maquilhagem caseira 

[não sou mulher! diz]
nem essência-mulher
nem lógica-mulher


[e inspiro-a pla boca e sorvo-a plo nariz]

[és mulher em carne sólida. de sangue em lágrima vertida no copo depois do eco do silêncio do brinde. corpo absurdo sentado, sólido e concreto... aqui! não, não és imagem de mulher. és o seu olhar. és o seu rosto. és mecanicamente mulher. naturalmente mulher! distraidamente mulher]

[e aqui me confesso, no paraíso, exposto]
encho o copo novamente, bem cheio,
da mulher
do corpo da mulher
da mulher no seu corpo
e bebo-o num só trago

Daniel Faria


Separei os braços
Exilei o coração

Doeu-me tanto
que não sei chorá-lo

Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 391)


Nas pálpebras
da noite
Chorei
cadências
que me ensinaram
que o Amor    Ama-se

Assim teus
Olhos.
Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 9)

março 11, 2014

Gonçalo M. Tavares

solidão e liberdade


Se o homem que dança torto à beira dos abismos cai, e se os dois braços não são suficientes, por vezes surge (mais na ficção do que no outro lado mas surge) um braço, um terceiro braço. É ele que salva. Eis uma forma metafórica de falar das ligações afectivas que salvam, desse terceiro braço- o braço do amigo.
Digamos que o tamanho do corpo depende da quantidade de ligações- uma interpretação da frase de Novalis: a solidão não tem sempre a quantidade um. Existe a solidão magra, a solidão bem constituída e, ainda, a solidão obesa (excesso de ligações, ligações dispensáveis). Porém a sabedoria, desde os estóicos aos mestres budistas, sempre foi firme: destruir ligações ou pelo menos deixá-las cair. Não depender de: objectos, pessoas, hábitos. Desligar-se, portanto. E esta sabedoria poderá ser descrita assim: quanto mais a tua solidão se aproxima do um (1), mais tranquilo ficarás no Mundo. Objectivo: nem paixões positivas, nem negativas, tudo neutro.
As ligações são diminuições de liberdade, eis uma ideia antiga: a indiferença como sinónimo de liberdade; mas também, a ligação como estimulação indirecta do medo: as ligações aumentam os pontos onde temos medo.
O expoente máximo do entendimento da ligação, qualquer que ela seja, como ligação perigosa surge na imagem de um suplício arcaico que consistia em "atar um homem são a um cadáver"; ligação a um morto, a uma massa que não se mexe, mas que nos ameaça; massa que é, ela própria, uma matéria que assusta, que nos põe em causa.


Gonçalo M. Tavares (Atlas do corpo e da imaginação, 2013, pp. 129-130)

março 09, 2014

arqui-te-crua

©raquelsav

PLAY A Naifa - Émulos

sono. muito sono
e ainda agora acordei.
não estou certamente determinada
sobre os émulos do chão em que aterro
ou do letargo da noite ou da vigília da insónia:
em nenhum há paixão que adivinhe vida
conseguisse eu entender porque saltei,
ou não saltei, por o entender

sangue. muito sangue

na guelra da força que chora bruta por dentro
tão erraticamente imanente 
tão erraticamente crua
pavoneando-se orgânica entre a matéria sentida e a matéria pensante,
lugar que habito perfeitamente líquida e imprescindível

leis. muitas leis
das que se escrevem na conjugação dos verbos nus:
ter ser estar querer roubar saltar foder ir voltar beber etc.
no tempo oral e na pessoa da liberdade.
leis geometricamente imprecisas, medidas de luz e breu
onde não se adivinham, reluzentes,
os pigmentos do ser e do mundo 
que se espalham noutros mundos
sem direitos a remissões e agradecimentos

firme. muito firme
o pé que pisa as migalhas que deixei cair por direito
descrevo- passo a redundância- arqui-te-crua a casa 
em espaço tão higiénico, de não se querer viver
ou banho que não lava esta urgência felina: escrever o mundo sobre a forma de paixão, num poema esfoliante do corpo e da ideia que me assola

não confio não confio não confio 
em mim

continua desenhadamente na minha ideia
a confusão:
ideia criadora? ideia canibal?
ideia da razão e da sua mecânica concreta:
      puta que se vende por meia tuta

hoje habito o contraditório
na urgência felina do mundo- o meu. esclareça-se:
recôndito lugar sem chave
não a encontro
não a descubro
não a deixo descobrir, na luz 
do breu nasce o medo de o tornar maior:  
       o mundo- o meu. esclareça-se.

palavra. pouca palavra
sem palavra que se adivinhe
nas indefinidas formas da conjugação verbal dos verbos nus e crus

fui. fomos
voltei. voltámos
fui. fomos
e bebemos (juntos) do silêncio


(9-3-2014)


o poema é o instrumento de medição da paixão, na vida

março 08, 2014

Charlie Chaplin


Discurso de Charlie Chaplin em "O grande ditador" 



"O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém extraviámo-nos. A cobiça envenenou a alma do homem ... levantou no mundo as muralhas do ódio ... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criámos a época da velocidade, mas sentimo-nos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado na penúria. Os nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; a nossa inteligência, emperdenidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos muito pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas duas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido."

março 07, 2014

Krishna Dvapayana Vyasa (?)

Diálogo do Lago no Mahabharata - A Grande luz!

À beira de um lago, Darma interroga Yudishsthira, o último dos pândava a resistir à tentação de saciar a sede nas suas águas.

Dharma diz: não beba da água que é minha. Só lhe concederei tal permissão se me responder às perguntas:
- O que é mais rápido que o vento?
E Yudishsthira respondeu: O pensamento.
– O que pode cobrir toda a terra?
A escuridão.
– Quais são mais numerosos? Os vivos ou os mortos?
Os vivos pois os mortos não o são mais.
– Dá-me um exemplo de espaço.
Minhas duas mãos juntas.
– Um exemplo de tristeza.
A ignorância
– De veneno.
O desejo.
– Um exemplo de derrota.
A vitória.
– Qual é o animal mais astucioso?
Aquele que o homem ainda não conseguiu encontrar.
– O que apareceu primeiro? O dia ou a noite?
O dia. Mas ele precedeu a noite apenas por um dia.
– Qual é a causa do mundo?
O amor.
– Qual é o teu contrário?
Eu mesmo.
– O que é a loucura?
Quando Um caminha esquecido.
– E a revolta? Porque os homens se revoltam?
Para encontrar a beleza, tanto na vida quanto na morte.
– O que é inevitável, para cada um de nós?
(após pequena pausa para refletir)
A felicidade.
– E qual é a grande maravilha?
Todos os dias a morte desfere golpes à nossa volta, várias pessoas fazem a passagem para aquilo que entendemos como morte, e mesmo assim nós vivemos como seres eternos. É esta a maior das maravilhas, respondeu."


in http://manateesp.blogspot.com/2007/09/dilogo-do-lago-no-mahabharata-grande.html

março 06, 2014

Pedro Mexia



Vamos morrer
Vamos morrer, mas somos sensatos,
e à noite, debaixo da cama,
deixamos, simétricos e exactos,
o medo e os sapatos. 

Pedro Mexia (em Senhor Fantasma, 2007) da Antologia da Poesia do Séc XIII ao Séc. XXI, p. 2095

março 05, 2014

Daniel Faria

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.


Daniel Faria
Poesia
Quasi edições


in http://mal-situados.blogspot.pt/search/label/daniel%20faria

março 04, 2014

raquel nobre guerra



Quanto de Areia e Brita

os nossos mestres estão mortos insisto
não exagero que perdemos coragem
até à mãe que pariu isto da beata viva

deram-nos a cruz de latada por onde o diabo trepa
separando por jóias os ocidentais dramas
tudo indica que fosse templo de uma reza trena
um still mudo que dissesse que é urgente tocar
à dura-mater do zoo genético, digo

aos que juram que hão-de salvar isto pela literacia
dêem-me as vossas azias cubro-as de cimento quente
esvazio-vos as barrigas, se havemos de nos ler todos
por mãos gitanas

lembrando a médica teórica da mesótes
foi o oráculo enganando que se enganou
estava torto etc, sublinhe-se a morte facilita
a cerveja assiste no limbo perfeito dos deuses
e seus anexos suicidas

torceram-nos ainda as mãos como molhando-as
sobre a cama não é certo o que dormir
e uma presença de coisas exuberando não chega
para que se imponha ao homem a própria vida

adunámos corpo a corpo multiplicámos fornicámos
até ser virgem a porcaria 

deitámo-nos fora com um murro sensualmente
e abrimos as persianas sobre isto

muitos paraísos seguidos de paraísos e muita merda
a cobrir-nos por cima

Raquel Nobre Guerra (Groto Sato, 2012, p.20)

março 01, 2014

Fernando Pessoa- Bernardo Soares

208.
Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. Tenho uma moral muito simples - não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha de haver no mundo. Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem. Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando julgo que o faço. Sei eu que males produzo se dou esmola? Sei eu que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros vítimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura. Os beneficíos são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente. Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam. Se adoeço, o que mais me pesa é que obrigo alguém a tratar-me, coisa que me repugnaria de fazer a outrem. Nunca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu adoecido, me visitaram, sofri cada visita como um incómodo, um insulto, uma violação injustificável da minha intimidade decisiva. Não gosto que me dêem coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também - aos mesmos ou a outros, seja a quem for. Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou a inofensividade encarnada. Mas não sou mais do que isso, não quero ser mais do que isso. Tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência - nada no coração. Não tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os místicos de todos os misticismos ou, antes e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando esses misticismos são activos, quando pretendem convencer a inteligência alheia, ou mover a vontade alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo. Considero-me feliz por não ter já parentes. Não me vejo assim na obrigação, que inevitavelmente me pesaria, de ter que amar alguém. Não tenho saudades senão literariamente. Lembro a minha infância com lágrimas, mas são lágrimas rítmicas, onde já se prepara a prosa. Lembro-a como uma coisa externa e através de coisas externas; lembro só as coisas externas. Não é o sossego dos serões da província que me enternece da infância que vivi neles, é a disposição da mesa para o chá, são os vultos dos móveis em torno da casa, são as caras e os gestos físicos das pessoas. É de quadros que tenho saudades. Por isso, tanto me enternece a minha infância como a de outrem: são ambas, no passado que não sei o que é, fenómenos puramente visuais, que sinto com a atenção literária. Enterneço-me, sim, mas não é porque lembro, mas porque vejo. Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas - estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) -, isto é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio, não sei bem de quê. É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu: Transeunte de tudo - até da minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada - centro abstracto de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz, nem me importa.
Bernardo Soares (Livro do Desassossego, 2009, pp.219-221)