outubro 11, 2014

Bill Callahan


PLAY Bill Callahan - Jim Cain 

Jim Cain
I started out in search of ordinary things
How much of a tree bends in the wind
I started telling the story without knowing the end

I used to be darker, then I got lighter, then I got dark again
Something too big to be seen was passing over and over me
Well it seemed like the routine case at first
With the death of the shadow came a lightness of verse
But the darkest of nights, in truth, still dazzles
And I woke myself until I'm frazzled

I ended up in search of ordinary things
Like how can a wave possibly be?
I started running, and the concrete turned to sand
I started running, and things didn't pan out as planned

In case things go poorly and I not return
Remember the good things I've done
In case things go poorly and I not return
Remember the good things I've done
Done me in


Bill Callahan, 

outubro 10, 2014

©Antoine d’Agata: Untitled, from the series Inédites, Georgia, 2009

PLAY Tindersticks - A Night In

1
o sol ensina o único caminho
a voz da memória irrompe lodosa
ainda não partimos e já tudo esquecemos
caminhamos envoltos num alvéolo de ouro fosforescente
os corpos diluem-se na delicada pele das pedras

falam os rios deste regresso e pelas margens ressoam passos
os poços onde nos debruçámos aproximam-se perigosamente
da ausência e da sede procurámos os rostos na água
conseguimos não esquecer a fome que nos isolou
de oásis em oásis

hoje
é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar
o peso de súbitas cassiopeias nos olhos
quando o veludo da noite vem roer a pouco e pouco a planície

caminhamos ainda
sabemos que deixou de haver tempo para nos olharmos
a fuga só é possível para dentro dos fragmentados corpos
e um dia... quem sabe?
chegaremos

Al Berto, Tentativas para um regresso à Terra, 1980
in Medo, 1997

Morphine


©raquelsav

Há uma noite que nos segue e não sabemos se nos mente.
Esbatem-se os reflexos que desfazem os dias pintados da imagem.
Não sabemos onde existir, e o que somos do espelho: se noite, se dia.
Pouco entendemos: não sabemos se gostamos ou gostamos de gostar.
Na dúvida, não existimos, vamos existindo, entre o dia e a noite.

E ainda que nos minta, não podemos senão sê-lo, entre o esboço e a pintura.


outubro 05, 2014

Madredeus

©Gilles Peress

PLAY  Madredeus "Agora"

Canto à minha idade, ó ai,
Canto às côres que ainda são,
E ao amor que me dão
As manhãs deste mundo,
São,
Janelas para ver,
São ainda,
São
Vontades de ter
Um mundo sem armas
Na mão

Canto esta verdade, ó ai,
Canto à luz do meu sol,
Sol do meu mundo inteiro
Que queria guardar, ó ai,
Guardar para ti
Ter na mão e dar
Dar-te logo a ti
Mas há tantas armas aí...
- e eu, que força tenho?
- e tu que força tens?
- temos a voz só, cantamos alto,
- a nossa voz só, canta bem alto
É agora, é a hora
É agora, é a hora
Cantai de madrugada
Até ao sol raiar
Levai a vida boa
Cantai sempre cantai
E a cada pessoa
Cantai esta canção
Lembrai ao mundo inteiro
A sua condição
E assim cantai também
Como eu sempre cantei
Cantai o amor do mundo
E tudo o que está bem
Cantai a viva voz
Pela terra inteira
E assim se ensina a paz
Da melhor maneira

outubro 04, 2014


©Chris Steele-Perkins, Pakistan 1997

PLAY Sibelius - Etude op. 76 no. 2

Em que nome repousas,
quando o estado último das coisas não te basta?

Em que voz queres soar inteiro,
quando os fragmentos que colhes soam tão pouco a ti?

Sabes que te conheço
                          pelos nós
com que atas o firmamento à inquietude,
como se fossem meus os teus 
                         gritos sibilantes que te adivinham.

Talvez possas espreitar o limbo,
onde nada acontece.
Talvez devas rezar Adeus,
e simular um momento de despedida.
Ou, então, simplesmente forjar
                            um nome,
não sei...

mas sei que o estado último das coisas já não te basta,
e não tens onde
                           repousar.

Roberto Juarroz

©Brassai
PLAY  Sibelius Violin Concerto - Maxim Vengerov, Daniel Barenboim, Chicago S.O. (CSO)

Registar todos os dados, 
embora não saibamos decifrá-los.

Registar, por exemplo, 
que também os esquecimentos têm diferentes cores
e há assim esquecimentos verdes ou vermelhos,
que sustêm seguramente olhares vegetais
ou apagam sombrios desníveis da vida.
E registar que há lembranças completamente transparentes,
lembranças que não sabemos de quê, mas lembranças,
excessos de memória
ou esquinas de não ser no que foi.

Registar que os sonhos geram cristais
que servem como lentes para olhar o mundo
e também o seu revés.
Registar que há flores sem perfume
e perfumes sem flor que não se encontram,
materiais para acabar de construir o homem
e materiais para começar a construir deus,
caminhos até tudo e até nada,
amores com os olhos para cima
e amores com os olhos para baixo
e até amores sem olhos,
dura, violentamente cerceados.

Registar que entre o céu e a terra tudo acontece,
mas também que tudo acontece às vezes entre a terra e a terra,
embora os sinos toquem em momentos equivocados
ou com sons que são para outra coisa.

Registar as palavras de perto e nunca de longe,
como os rostos e a morte.

E registar o mais palpável, as ausências,
as que sempre o foram,
as que nunca o foram,
o seu desafio ao ser,
a sua correcção do ser
a partir do oásis do não-ser.

Sim. Registar todos os dados,
embora não haja quem os decifre.
Talvez no final não haja necessidade de os decifrar. 

Roberto Juarroz, Poesia Vertical, Campo das Letras

setembro 21, 2014

©raquelsav

Há abraços que nunca se fecham:
não sabemos como os iniciar,
não saberíamos como os findar.

Há abraços que morrem sem terem nascido.

Edmundo de Bettencourt

©Chris Steele-Perkins
Japan. Tokyo. Virtual Reality helmets. Tokyo motor show
PLAY Eddie Vedder - Guaranteed


A máquina prisioneira

A máquina acabava o dia a mastigar
e aos poucos os dentes lhe caíam
perdendo-se na espuma do ar negro,
ondulante, da fábrica.

Um desejo insubmisso
de cercar os átomos gigantes
vinha encher um braço
donde surgia um corpo
lacerado
sangrento!
e donde surgia um braço
cheio de sangue novo
que libertava a máquina!

A sorrir desdentada
a máquina adormecia...

Edmundo de Bettencourt, Poemas de Edmundo de Bettencourt, 

Assírio & Alvim


Guaranteed

On bended knee is no way to be free
Lifting up an empty cup, I ask silently
All my destinations will accept the one that's me,
So I can breathe...

Circles they grow and they swallow people whole
Half their lives they say goodnight to wives they'll never know
A mind full of questions, and a teacher in my soul
And so it goes...

Don't come closer or I'll have to go
Holding me like gravity are places that pull
If ever there was someone to keep me at home
It would be you...

Everyone I come across, in cages they bought
They think of me and my wondering, but I'm never what they thought
I've got my indignation, but I'm pure in all my thoughts
I'm alive...

Wind in my hair, I feel part of everywhere
Underneath my being is a road that disappeared
Late at night I hear the trees, they're singing with the dead
Overhead...

Leave it to me as I find a way to be
Consider me a satellite, forever orbiting
I knew all the rules, but the rules did not know me
Guaranteed


setembro 20, 2014

©raquelsav

"Dai de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede"

©Herbert List (1903-1975)
GREECE. Attica. Glifadha near Sounion. "Mise en scene with George HOYNINGEN-HUENE"

O contrário de vivo é um gesto de braço solto para baixo.
Não há como resistir à gravidade quando nos demitimos de ser (a termos sido por algum momento).
Entre um extremo e o outro há um meio pelo qual, nem sempre, queremos passar. Nele mora a liberdade. Porque a liberdade também vive na indiferença do equilíbrio, esse lugar onde nos demitimos de ser.

Ser vivo é um braço no ar onde o sangue custa a chegar.


Jacqueline Du Pré



Demorando-se 
em tudo o que é água
este dia primaveril termina

Issa, O Crisântemo Branco: Antologia de Haiku

Ed. Pedra Formosa


Trailer Hilary and Jackie

Filme com notas biográficas  de  Jacqueline Du Prè

setembro 08, 2014

Roberto Juarroz

©Harry Gruyaert Mali. Town of Gao. 1988. Terrace of a local hotel.

Há palavras que não dizemos
e que pomos sem dizê-las nas coisas.

E as coisas guardam-nas,
e um dia respondem-nos com elas
e salvam-nos o mundo,
como um amor secreto
em cujos dois extremos
há uma só entrada.

Não haverá uma palavra
dessas que não dizemos
que tenhamos colocado
sem querer no nada?

Roberto Juarroz

setembro 07, 2014

©raquelsav

Ser sombra. Não marcar a areia. Depurar a matéria. Expurgar o excesso que nos faz sombra de nós. 
Ser leve ou, então, não ser.
                                                                              
The land returns to how it has always been
Thyme carried on the wind(...)
Cruel nature has won again
©raquelsav 

A chuva chove e eu chovo com ela.
Chovo com a chuva, enquanto a chuva chove.

setembro 01, 2014

- o que é estar morto?
- é um braço para baixo.

agosto 31, 2014

©raquelsav
PLAY Yann Tiersen - Rue des Cascades 

A casa é fria porque o vazio, quando sopra, é de norte.
Não são chaves que destrancam as portas,
são as mãos,
as que atam e desatam os nós
na garganta do alpendre.
A gargantilha enleia a garganta,
mas não a aquece.
A casa é fria porque o vazio soprou,
e quando sopra é de norte.
A casa é fria porque o calor, quando nasce, é de dentro.
E hoje a casa está tão vazia.

RUE DES CASCADES
When I'm asleep in Cascade Street
When I'm asleep in Cascade Street
I don't, I don't
See anything

When I'm asleep in Cascade Street
When I'm asleep in Cascade Street
I hear, I hear
Nothing, nothing

In the cascade, in the cascade
You washed me

When I wake up in Cascade Street
When I wake up in Cascade Street
I feel nothing
I feel nothing

When I'm asleep in Cascade Street
When I'm asleep in Cascade Street
I don't remember
I don't remember

In the cascade, in the cascade
You washed me

When I wake up in Cascade Street
When I wake up in Cascade Street
I feel nothing
I feel nothing

In the cascade, in the cascade
You washed me



agosto 30, 2014

©raquelsav
-Olha, a árvore caiu. Achas que se magoou?
-As árvores, quando caem, não se magoam porque não têm mãos. 

agosto 29, 2014

©Ferdinando Scianna FRANCE, Paris- french researcher Jean Pierre VIGIER


...ocorreu-me que não há equações difíceis, há-as apenas possíveis e impossíveis. E basta mudar um sinal, uma incógnita, um número para transformar uma na outra. Das possíveis, as que mais gosto são as indeterminadas, por admitirem infinitas soluções.


Are you such a dreamer
To put the world to rights?
I stay home forever
Where two and two always makes up five

I lay down the tracks
Sandbag and hide
January has april's showers
And two and two always makes up five

Its the devil's way now
There is no way out
You can scream it, you can shout
It is too late now

Because

You have not been paying attention

agosto 27, 2014

©raquelsav
Há livros transformados em árvores de folha caduca, que se perdem no tempo em chão de prateleira cheia. Constam da infindável lista de espera para transplante. Aguardam, no órgão ansiado, o eterno retorno à ideia que os viu nascer, antes de o serem em folha-papel.

Eu espero com eles, a chegada desse dia, e lançarei ao vento cada uma das suas folhas mortas, para as ver renascer em essência. Um livro consubstancia-se na sua imaterialidade. Possui-lo apenas pode ser sinónimo de transportar o seu sentido, em alguma parte de nós, perto do sítio que nos faz ser.

O paraíso será, como na imaginação de J. L. Borges, uma espécie de livraria. Mas de estante vazia, repleta de livros invisíveis, que concretizaram a metamorfose da crisálida de papel em borboleta de ideia, que encherão de movimento e cor - da palavra-  o espaço outrora tão lotado, mas tão perfeitamente vago.

(um silêncio para a deixar voar)

Herta Müller

©Josef Koudelka - Romania, Constanta. 1994.
Location shooting of the film 'Ulysse's Gaze', directed by Theo Angelopoulos
      "Estávamos na plataforma, ela que queria ficar mais três semanas e eu que tinha de querer que ela desaparecesse imediatamente. Não houve despedidas. Depois o comboio partiu e lá dentro como cá fora não houve mãos a acenar.
     Os carris estavam vazios, as minhas pernas mais fracas que dois fios. Andei metade da noite a percorrer o caminho da estação para casa. Não queria chegar jamais. Nunca mais consegui adormecer de noite.
     Queria que o amor voltasse a crescer como a erva cortada. Que ele cresça de modo diverso, como os dentes nas crianças, como o cabelo, como as unhas. Que ele cresça como queira. Assustava-me a frialdade do lençol e depois o calor que aparecia sempre que eu estava deitada.
     Quando, meio ano depois do seu regresso, Tereza morreu, eu quis desfazer-me da minha memória, mas dá-la a quem. A última carta de Tereza chegou depois da sua morte:
     Já só consigo respirar como os vegetais no quintal. Tenho uma saudade física de ti.
     O amor por Tereza voltou a crescer. Obriguei-o a isso e tive de precaver-me. Precaver-me de Tereza e de mim, como eu nos conhecia antes da visita. Tive de amarrar as mãos a mim própria. Elas queriam escrever a Tereza, dizer-lhe que eu ainda nos conhecia. Que a frialdade que tenho em mim revolve um amor contra a razão."

"Porquê e quando e como é que o amor amarrado se mistura com os esquadrões de assassínio. Queria gritar todas as pragas que não domino.

Que Deus castigue
Quem ama e parte
Que Deus o castigue
Com o passo do escaravelho
O zumbido do vento
O pó da terra.

Gritar pragas, mas a que ouvido.
Hoje é a erva que me escuta quando falo de amor. A mim parece-me que esta palavra não é honesta consigo mesma."

     "Também tinha dito a Kurt: Agarra-te a Tereza. Uma amizade não é um casaco que possa herdar de ti, opinou ele. Posso enfiá-la. Vista de fora, até poderia servir, mas não aqueceria por dentro.
     Tudo o que se dizia tornava-se definitivo. Espezinhar tanto com as palavras na boca como com os pés na erva, eram assim todas as despedidas.
     Quem ama e parte, esse éramos nós próprios. Tínhamos levado a maldição da cantiga ao seu máximo expoente:

Que Deus castigue
Quem ama e parte
Que Deus o castigue
Com o passo do escaravelho
O zumbido do vento
O pó da terra."

     "A morte de Tereza doeu-me como se eu tivesse duas cabeças a embater uma com a outra. Numa havia o amor ceifado, na outra, o ódio. Queria que o amor voltasse a crescer. Ele cresceu como erva e palha entrelaçadas e era a afirmação mais fria na minha testa. Era a minha planta mais estúpida"



Herta Müller,
A terra das Ameixas verdes
2009


agosto 23, 2014

Manuel Cintra

©Cartier Bresson Brooklyn, New York, 1947

gostava de correr à minha frente de repente
durante um desses dias em que corro atrás de mim
e mandar-me parar largar as solas os sapatos
o comboio o ordenado o horário apertado, parar
sentar-me como se sentam esses velhos
coxos sobre um banco cerca do meio dia
e desembrulham a bucha começam a comer isso
tudo e também a luz do sol
com as duas mãos e as outras todas

respirar aquilo que quase nunca já

me entra pelos poros das narinas
nem por outros espalhados pelos passos
corridos mais depressa do que eu ando
a perder no tempo em que corro e pouco sinto
aquele em que me não sento
nem quando bebo o tão café tão curto
distante desse sorvo amargo que não cabe
em barcos ocos quanto mais em chávenas

mas corro sempre corro tudo corro como

se o tempo e o recheio estivessem encanados
num longo corredor, e a saída 
que não deve estar no fundo
me passasse sempre ao lado
e eu ao lado dela
lançando a mão segundos tarde
demais para a reter
por isso corro tento espero
parar um dia no momento certo
atirar para a minha frente as duas mãos
e sobretudo as outras todas direito
ao cheiro que não sinto já no sol

talvez demore muito esteja velho e coxo

na mão ainda o embrulho a fome a bucha
ou mesmo o apetite sobre o banco cerca 
do meio dia

Manuel Cintra, Bicho de Sede

Ulmeiro, 1986

Manuel Cintra


às vezes ancorado a um
sítio como a uma palavra
dessas que se gastam
e depois já não se gostam

a um som. dos que entraram
na íris, por uma abertura
na falta de ar, e saíram
para o bolso,
esse beco que temos sempre
de um lado ou de outro
das calças que forram as pernas
que correm na memória, e fogem
levando o bolso 
cheio

às vezes ancorado a um
sítio como se fosse às vezes
ancorado a dois.

Manuel Cintra, Bicho de Sede
Ulmeiro, 1986

agosto 21, 2014

fotograma de Persona de Ingmar Bergman
PLAY Eddie Vedder - Guaranteed

"On bended knee is no way to be free Lifting up an empty cup, I ask silently
All my destinations will accept the one that's me,
so I can breathe...(...)
Everyone I come across, in cages they bought
They think of me and my wondering, but I'm never what they thought
I've got my indignation, but I'm pure in all my thoughts
I'm alive...(...)
Leave it to me as I find a way to be Consider me a satellite, forever orbiting
I knew all the rules, but the rules did not know me
Guaranteed."

Talvez o fogo maternal de incandescência lunar,
a urgência de pele,
aquele lugar de rosto.
Talvez o sorriso posto para dar,
em chão de receber,
talvez mais um dia.

Cobre-se a voz cantante de melodia salobra,
sopro de pássaro de ninho infértil,
música árida, terra atroz.

Sem o norte dos pés, sós, a sabedoria, o nada,
é estrada que não é caminho,
mas encosto.

Para lá do sol há um rosto, há uma pele,
há um fogo maternal que exala
emergência de lugar.

Adivinha-se na carne crua,
na sua, as chagas de chegar,
talvez um dia,
talvez aos pés, sós, à voz desse lugar,
e lés-a lés, de grito posto, o silêncio cantar
                                              (no seu rosto).


agosto 19, 2014

©Josef Koudelka ROMANIA. Bukovina. 2001.
PLAY Sophie Hunger - Shape


"O relógio tiquetaqueava até no espelho. O pescoço de Tereza era demasiado comprido, os olhos, demasiado pequenos, as omoplatas, demasiado salientes, os dedos demasiado grossos, o traseiro, demasiado chato, as pernas, demasiado tortas. Tudo o que eu via em Tereza devolvia-me hediondamente o olhar no tiquetaque do relógio. Desde que me fora proibido afagar as borlas das pantufas do pai que nenhum outro relógio tiquetaqueara assim tão alto.
    Porias este vestido no Inverno, perguntou Tereza. O vestido não tinha cinto. Eu disse, sim, e vi que Tereza era feia, porque o tiquetaque do relógio a despedaçava. Logo depois, sem espelho, a feiura vulgar de Tereza tornou-se invulgar. Mais bela que em mulheres que eram imediatamente belas."

Herta Müller
A terra das Ameixas verdes

©H. C. Bresson-Lenin-leningrad-soviet-union-1973
PLAY Maya Plisetskaya, age 61, dances Dying Swan Camille Saint-Saëns's 

Há dias em que nascemos em defeito, sem sabermos nunca se é o mundo que o é em excesso. Hoje tudo me parece grande. Tão completamente maior.