abril 21, 2014

são quatro ou cinco juro que não são mais| ou serão tantas que lhes perdi a conta?| noves fora e já se lhe veem o bucho e as tripas por não caber em si de contente|como se o mundo precisasse de lhe conferir as vísceras para saber de que é feita a sua felicidade| poupem-me|__sim é uma metáfora mas não precisava de o dizer pois não?__ |a mim pouco me importa quantas foram é-me igual ao litro ou ao decímetro cúbico|__ para os mais quadrados a medir fluídos__ |de qualquer forma a felicidade não carece de Técnico Oficial de Contas ou de agrimensor que a espartilhe para a medir|por isso não quero saber se foram quatro se mil|dependerá sempre de uma qualquer unidade antropomórfica|__ e por isso não padronizada__| ou seja quatro podem ser mil| e afinal tudo o que de melhor existe é mesmo incomensurável| desde que sei que entre o zero e o uno há um infinito desinteressei-me pela arte de contar| e pode dizer-se que não sou infeliz|

abril 16, 2014

e se procuro a liberdade é porque ela me simplifica

abril 08, 2014

podem chamar-lhe realidades
até pode parecer que o são 
chego a suspeitar que realmente existam
por vezes até sinto apalpar a realidade
mas depois
nasce o poema

Al Berto

Vestígios
 
noutros tempos

quando acreditávamos na existência da lua

foi-nos possível escrever poemas e

envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído

pelas salivas proibidas - noutros tempos

os dias corriam com a água e limpavam

os líquenes das imundas máscaras



hoje

nenhuma palavra pode ser escrita

nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras

ou se expande pelo corpo estendido

no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se



onde se pode - num vocabulário reduzido e

obcessivo - até que o relâmpago fulmine a língua

e nada mais se consiga ouvir



apesar de tudo

continuamos e repetir os gestos e a beber

a serenidade da seiva - vamos pela febre

dos cedros acima - até que tocamos o místico

arbusto estelar

e

o mistério da luz fustiga-nos os olhos

numa euforia torrencial


Al-Berto
Horto de Incêndio

abril 07, 2014

Daniel Faria

Amarro dois degraus para não subir
Sozinho. Monto no meu cavalo- o meu cavalo
Não vai para minha casa
Medito sobre o rasto que não cabe no meu destino

Na nossa escada era difícil transportar os familiares defuntos

E os familiares enfermos- vê meu pai como me lembro
Como aprendi a amarrar as vergônteas das vides

A minha viagem é mais funda do que os rios

É mais funda a tua mão- vê como me lembro- ela sabe
Onde é que o meu corpo não suporta correntes

Amarro dois degraus para não subir


Daniel Faria (Poesia, Edições Quasi, 2006, p. 319)

abril 02, 2014

E, aliás, é tudo uma questão de colo.

Dos que nasceram sem colo e que por toda a vida o procuram, sem nunca o encontrar. Isto porque há colos grandes por esse mundo, mas nunca suficientemente maiores do que o colo onde não se nasceu. E há dos que nasceram com colo a mais, vivendo na ilusão do colo ser sempre tão grande que os ampara das quedas pela vida fora. E eles amadurecem e o colo fica sem espaço para abrigar a parte que cresce.

Não acho que possam existir colos à medida, são-o sempre em defeito ou em excesso. E por isso o jogo do equilíbrio é tão desenfreadamente mais grave no correr da idade.

A quem falta, um dia a mais de vida é um dia a menos que tem para o encontrar.

A quem excede, um dia a mais de vida é um centímetro de colo a menos porque os colos, desde que nascem, minguam até deixarem de existir, em algum dia, sem aviso.

É tudo uma questão de colo e de alma que, quando amadurece, só sabe endurecer.

abril 01, 2014

Camus


  " (...) A escravatura, ah, isso não, nós somos contra! Que se seja constrangido a instalá-la em sua casa, ou nas fábricas, bom, está na ordem das coisas, mas gabar-se disso é o cúmulo.
  Sei bem que não se pode passar sem dominar ou ser-se servido. Todo o homem tem necessidade de escravos como de ar puro. Mandar é respirar, não é desta opinião? E até os mais deserdados chegam a respirar. O último na escala social tem ainda o cônjuge ou o filho. Se é celibatário, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se sem que outrem tenha o direito de responder. «Ao pai não se responde», conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda a razão pode opor-se outra: nunca mais se acabava. (...)»

CAMUS, Albert, A Queda, (trad. de José Terra) Editora Livros do Brasil, Lisboa, 1971.

março 30, 2014

"Wish away the nightmare
You've got a light, you can feel it on your back
A light, you can feel it on your back
Jigsaws falling into place"
adormecer assim aos pés do poema
pés bem assentes no ar
e sonhar e sonhar e sonhar
poema-sonho
poema-pesadelo
e eu que o vivo só de lê-lo

Alexande O'Neill

PLAY "Poema do Desamor" TiagoBettencourt


Poema do Desamor 
Desmama-te desanca-te desbunda-te
Não se pode morar nos olhos de um gato
Beija embainha grunhe geme
Não se pode morar nos olhos de um gato
Serve-te serve sorve lambe trinca
Não se pode morar nos olhos de um gato
Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te
Não se pode morar nos olhos de um gato
Arfa arqueja moleja aleija
Não se pode morar nos olhos de um gato
Ferra marca dispara enodoa
Não se pode morar nos olhos de um gato
Faz festa protesta desembesta
Não se pode morar nos olhos de um gato
Arranha arrepanha apanha espanca
Não se pode morar nos olhos de um gato

Alexande O'Neill 

março 29, 2014

António Ramos Rosa


Estar só é estar no íntimo do mundo

Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo

António Ramos Rosa
Poemas inéditos

in http://mal-situados.blogspot.pt/search/label/antónio%20ramos%20rosa

março 28, 2014

Rigveda (1700-1100 a. C.)


nāsadīya sūkta
"Hino da Criação" (10.129)

1. [No início] não existia nem o existente nem o não-existente; não existia o espaço vazio nem o céu acima dele. O que havia então? Em que lugar? Quem zelava [por tudo]? Havia água [ou] o céu infinito? ||

2. Não existia então a morte nem a imortalidade. A noite e o dia não se distinguiam. [Mas] algo existia, sem ar, por própria vontade, [e] nada mais havai para além disso ||

3. No início o infinito estava oculto de escuridão; sem qualquer outro sinal, tudo isto era água. O espírito contido no nada pelo poder de Tapas surgiu ||

4. O desejo foi o primeiro a aparecer nele; eis a primeira origem do pensamentos. Os Rsis encontraram com sabedoria nos seus corações o elo entre o existente e o não-existente ||

5. Este pensamento desenvolveu-se. Existia em cima? Existia em baixo? Surgiram [então] os lugares de origem; surgiram os poderes. Houve um impulso em baixo; houve outro em cima ||

6. Quem realmente pode saber? Quem na verdade poderá dizer? Houve em dia origem? Deu-se a criação? Os deuses apareceram depois do universo ter sido criado. Quem então sabe de onde surgiu isto tudo? ||

7. Uma vez criação aparecida - talvez se tenha formado por si mesma ou talvez não - aquele que zela por ela, no mais alto dos céus, só ele sabe - ou será que não ||

(in Bhagavad-gita, Ésquilo trad. José Carlos Calazans, p. 286)

março 27, 2014

L. Wittgenstein

2.01231
Para conhecer um objecto tenho de conhecer não as suas propriedades externas mas todas as suas propriedades internas.

2.06
A existência e a não existência de estados de coisas é a realidade.

L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus

março 25, 2014

Al Berto

Os Amigosno regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência

Al Berto, in  A noite progride puxada à sirga, 1987, 
Antologia da Poesia Portuguesa do Sec. XII ao Sec. XXI, p. 1901

março 24, 2014

Daniel Faria

Labirinto III

No meio do caminho da nossa vida
No meio do poema, havia
Uma pedra onde reclinar a cabeça.

A mulher andava no meio das estradas
Por sobre o mundo tecendo e destecendo
Duas asas que o pai soldava para o filho.
No meio do filho estava o labirinto

E o touro de Ariadne puxado por um fio
Lavrando
No coração de Teseu tão manso
No meio da idade aonde existe
O primeiro sinal do solestício

Daniel Faria (Poesia, 2006, p.68)

março 23, 2014

daniel faria

Não levantemos os homens que se sentam à saída
Porque se movem em seus carreiros interiores
Equilibram com dificuldade uma ideia
Qualquer coisa muito nítida, semelhante
A uma folha vazia
E põem ninhos nas árvores para se libertarem
Da gaiola terrível, invisível muitas vezes
De tão dura
Não nos aproximemos dos homens que põem as mãos nas grades
Que encostam a cabeça aos ferros
Sem outras mãos onde agarrar as mãos
Sem outra cabeça onde encostar o coração
Não lhes toquemos senão com os materiais secretos
Do amor.
Não lhes peçamos para entrar
Porque a sua força é para fora e a sua espera
É a fé inabalável no mistério que inclina
Os homens por dentro
Não os levantemos
Nem nos sentemos ao lado deles. Sentemo-nos
No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos
A qualquer instante


Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 127)

março 22, 2014

fernando guimarães

O grito
É possível que a noite venha ao nosso encontro quando estivermos
sozinhos. Seria assim que compreenderíamos um destino
que nos pertence, talvez a imagem esperada das nuvens que procuram
um céu apenas tecido. Sabemos de que se ocupam as mãos ao sentirem
o mesmo estremecimento que existe no interior simples das veias. Por isso é outra
a sombra que continua quase esquecida, os súbitos contornos
de uma voz que depois se afasta sem pressa. Nela se perde
a mesma imagem que se tinha encontrado como se fosse o sobressalto
dos nossos olhos, a largura dos cabelos soltos. Talvez comecem
a recordar de novo a luz cercada agora de uma ferida. Quem 
estava próximo para escutar o que seria esse rumor? Os lábios
encontraram um sulco e tudo ali principia devagar a acolher-nos. Depois
veremos como pelo corpo o sangue fica serenamente escrito.

Fernando Guimarães (O Anel Débil, 1992) 
em Antologia da poesia portuguesa do Sec. Xiii ao Sec. XXI

março 21, 2014

daniel faria


Sunam (2 Rs 4, 8-37)

O absurdo pode sempre visitar-te quando quiser
Tens um lugar para ele. Em cada dia uma nova entrada.
Tens a memória e sobre o banco à tarde
A mulher. Vamos construir - disse - um quarto no terraço
Quatro paredes de tijolo e uma lâmina ao centro
Uma cadeira, uma mesa. A bilha
Ficará connosco e beberá aqui.

O absurdo pode sempre visitar-te quando estiveres no campo
E o teu filho te disser: a minha cabeça
Pondo a mão sobre a nuca, tendo largado a foice.
O absurdo pode sempre parar à tua porta
Com o teu filho sobre o jumento pardo
Pode sempre visitar-te no rosto da mulher
- Era meio-dia sobre os meus joelhos -
E chamarás. Abrirás em cada dia
Uma nova entrada por onde possa visitar-te
Sentar-se aí ao teu lado. Onde costumas envelhecer.

Daniel Faria (Poesia,  2006, p. 157)

março 18, 2014

daniel faria

Explicação da Ausência

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer- fosse abertura
E a saudade é tudo ser igual.

Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 110)

março 15, 2014

Raquel Nobre Guerra

Marcial Afectivo
                                 these hands melt then disengage
                                                    Mike Van Portfleet

falo meu amor de limpar a boca
de beijos que sejam menos que beijar
à francesa, hímenes jugulares sucedendo
para dentro, aceso poema monumento só de ida
desimpedidamente esplanada atingindo de chapa na face
falo a alta velocidade de abocar as coisas indo montando nelas
de ocupar as casas as camas para engravidar da matéria ao espírito falo
de fechar o corpo num verso branco do Herberto
do antídoto das mãos como discos solares

Raquel Nobre Guerra (Groto Sato, 2013-2a Ed., p.26)

março 14, 2014

Daniel Faria

Acontecera que as coisas se destruíssem sem que nelas sobrevivesse
E era tarde.
Sozinho em tempos não fora a falta de ninguém
E o que doía não tinha o quisto da doença
Só o espaço sereno das coisas que se deixam.
Acontecera que nada se fizera fora
Do coração.
Acontecera que passara a noite a abrir os olhos
Para não se interromper
A estender a mão para estar vivo
E certo de que nem ele próprio se abeiraria de si mesmo
Pois ocupara-se rigorosamente de ausentar-se.
Mesmo se caminhara muito devagar
Sem outro meio para esperar que o visitassem.
Ele que é agora o que nunca repousou
O que nunca encontrará o sítio do sossego
A não ser que haja o equilíbrio na vertigem
Uma luz parada no meio da voragem.


Daniel Faria (Poesia, 2006, p.76)

março 13, 2014

©raquelsav


PLAY Pietro Mascagni: Cavalleria rusticana - Intermezzo


falo de uma espécie de barco de terno embalo. ninho e seio. peito de acalentar. colo de levar. abraço de trazer. 

falo de uma espécie de novo sono. original adormecer. berço de quietude. leve mergulho. água imagem de mãe.

falo de uma espécie de alvorada. suave aurora. regresso e longitude. mansa viagem e despertar. fino desembrulho.

sim, falo de uma espécie de novo acordar. em paz que se possa adivinhar_______________

Daniel Faria

Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.


                                 Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 78)



Na impossibilidade da amizade ter um fim,
continuar a amar é dizer adeus.
                                                 Daniel Faria 

Daniel Faria

Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos 
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim 

E bebe

Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 39)

março 12, 2014

sobre o paraíso ou sobre uma mulher e uma garrafa de vinho tinto


[pego na garrafa para a encetar]
somente decantar no meu olhar 
o corpo fluído da mulher sentada
e assentar em finas memórias
as suspensas partículas dos seus gestos

[encho o copo bem cheio]
corpo denso de invasões florais
especiarias verdes frutos carnais 
Touriga e Carbenet

[sirvo-me de aroma]
a mulher crua
vinho de cor em escrita
de contraste em luz 
na parede que se diga 

[é tinto]
cheiro a sangue da mulher 
transparência de si 
o corpo 
rede absurda 

[trago o oxigénio ao copo]
dissecados os taninos
no corpo jovem
do tinto de casca de uva

[é lágrima no vinho que o copo verte. digo]
o álcool em vapor flui no corpo da mulher casta
tinto frutado Syrah 
oxigénio que se afasta
e regressa no olhar profundo 
da lágrima da mulher

[e é o eco do silêncio do copo depois do brinde. responde]
silêncio_______________

[sirvo-me de um gole na língua inteira, à boca cheia]
mulher que se inspira 
textura ácida verdadeira
delicada pele 
maquilhagem caseira 

[não sou mulher! diz]
nem essência-mulher
nem lógica-mulher


[e inspiro-a pla boca e sorvo-a plo nariz]

[és mulher em carne sólida. de sangue em lágrima vertida no copo depois do eco do silêncio do brinde. corpo absurdo sentado, sólido e concreto... aqui! não, não és imagem de mulher. és o seu olhar. és o seu rosto. és mecanicamente mulher. naturalmente mulher! distraidamente mulher]

[e aqui me confesso, no paraíso, exposto]
encho o copo novamente, bem cheio,
da mulher
do corpo da mulher
da mulher no seu corpo
e bebo-o num só trago

Daniel Faria


Separei os braços
Exilei o coração

Doeu-me tanto
que não sei chorá-lo

Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 391)


Nas pálpebras
da noite
Chorei
cadências
que me ensinaram
que o Amor    Ama-se

Assim teus
Olhos.
Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 9)

março 11, 2014

Gonçalo M. Tavares

solidão e liberdade


Se o homem que dança torto à beira dos abismos cai, e se os dois braços não são suficientes, por vezes surge (mais na ficção do que no outro lado mas surge) um braço, um terceiro braço. É ele que salva. Eis uma forma metafórica de falar das ligações afectivas que salvam, desse terceiro braço- o braço do amigo.
Digamos que o tamanho do corpo depende da quantidade de ligações- uma interpretação da frase de Novalis: a solidão não tem sempre a quantidade um. Existe a solidão magra, a solidão bem constituída e, ainda, a solidão obesa (excesso de ligações, ligações dispensáveis). Porém a sabedoria, desde os estóicos aos mestres budistas, sempre foi firme: destruir ligações ou pelo menos deixá-las cair. Não depender de: objectos, pessoas, hábitos. Desligar-se, portanto. E esta sabedoria poderá ser descrita assim: quanto mais a tua solidão se aproxima do um (1), mais tranquilo ficarás no Mundo. Objectivo: nem paixões positivas, nem negativas, tudo neutro.
As ligações são diminuições de liberdade, eis uma ideia antiga: a indiferença como sinónimo de liberdade; mas também, a ligação como estimulação indirecta do medo: as ligações aumentam os pontos onde temos medo.
O expoente máximo do entendimento da ligação, qualquer que ela seja, como ligação perigosa surge na imagem de um suplício arcaico que consistia em "atar um homem são a um cadáver"; ligação a um morto, a uma massa que não se mexe, mas que nos ameaça; massa que é, ela própria, uma matéria que assusta, que nos põe em causa.


Gonçalo M. Tavares (Atlas do corpo e da imaginação, 2013, pp. 129-130)

março 09, 2014

arqui-te-crua

©raquelsav

PLAY A Naifa - Émulos

sono. muito sono
e ainda agora acordei.
não estou certamente determinada
sobre os émulos do chão em que aterro
ou do letargo da noite ou da vigília da insónia:
em nenhum há paixão que adivinhe vida
conseguisse eu entender porque saltei,
ou não saltei, por o entender

sangue. muito sangue

na guelra da força que chora bruta por dentro
tão erraticamente imanente 
tão erraticamente crua
pavoneando-se orgânica entre a matéria sentida e a matéria pensante,
lugar que habito perfeitamente líquida e imprescindível

leis. muitas leis
das que se escrevem na conjugação dos verbos nus:
ter ser estar querer roubar saltar foder ir voltar beber etc.
no tempo oral e na pessoa da liberdade.
leis geometricamente imprecisas, medidas de luz e breu
onde não se adivinham, reluzentes,
os pigmentos do ser e do mundo 
que se espalham noutros mundos
sem direitos a remissões e agradecimentos

firme. muito firme
o pé que pisa as migalhas que deixei cair por direito
descrevo- passo a redundância- arqui-te-crua a casa 
em espaço tão higiénico, de não se querer viver
ou banho que não lava esta urgência felina: escrever o mundo sobre a forma de paixão, num poema esfoliante do corpo e da ideia que me assola

não confio não confio não confio 
em mim

continua desenhadamente na minha ideia
a confusão:
ideia criadora? ideia canibal?
ideia da razão e da sua mecânica concreta:
      puta que se vende por meia tuta

hoje habito o contraditório
na urgência felina do mundo- o meu. esclareça-se:
recôndito lugar sem chave
não a encontro
não a descubro
não a deixo descobrir, na luz 
do breu nasce o medo de o tornar maior:  
       o mundo- o meu. esclareça-se.

palavra. pouca palavra
sem palavra que se adivinhe
nas indefinidas formas da conjugação verbal dos verbos nus e crus

fui. fomos
voltei. voltámos
fui. fomos
e bebemos (juntos) do silêncio


(9-3-2014)