setembro 29, 2015

PLAY Pēteris Vasks - Vox Amoris Chaarts  - Sebastian Bohren Fantasie für Violine und Streicher

DE TODAS AS FERIDAS
Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio:
Só uma vez no Outono a pedra reverdece - foi ontem;
foi quando o sal nas ruas era tão vermelho,
tão vermelho que se pensaria que era chegada a hora
a que se acena com os véus da meia-noite:
o tempo-de-tulipas dessa hora
em que o desejo enche o copo de toda a gente,
o berço e o caixão de toda a gente,
as pegadas de toda a gente,
a hora que liberta o gelo do teu olhar,
te faz arregaçar a tua sombra
e arranca aos sinos o seu silêncio quando danças.

Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio:
foi ontem
e jaz no sangue como nós dois.

Paul Celan
A morte é uma flor, Cotovia, 1998

setembro 27, 2015

©Harry Gruyaert. Mali. Town of Gao. 1988. Terrace of a local hotel.

PLAY PJ Harvey The dancer

MOLDURA VAZIA
Em toda a parte te encontro ansiando por emoldurar
Uma parte modesta da Sua imensidade,
Significando, suponho, uma data de céu
Da variedade azul e sem nuvens,
Sobre o velho cemitério, por exemplo,
Ou sobre a nova lixeira da cidade
Além da qual fica um campo e três espantalhos.

Um deles podia ser monge alemão, Eckkart,
Dizendo: "Se alguém nada procura,
Que direito tem a queixar-se de nada achar?"
Certo. Não havia um único melro
Vigiando o milho verde,
Por isso elevámos um pouco a moldura
Até onde o silêncio diz tudo.

Charles Simic (1938-2023)
Previsão de tempo para utopia e arredores, Assírio&Alvim, 2002

setembro 26, 2015

[#1] De ler alto

  "Vendo-se sozinho, sem nada de especial que fazer, Watt meteu o indicador no nariz, primeiro na narina esquerda, depois na narina direita. Mas, esta noite, não havia macacos no nariz de Watt.
    Passados breves momentos, porém, o cavalheiro reapareceu, a Watt. Vinha com roupa de viagem e trazia bengala! Mas nenhum chapéu na cabeça, nem nenhuma mala na mão.
    Antes de sair, fez a seguinte breve declaração.
   Oh! Veio tudo ter comigo outra vez, não há dúvida. Esse olhar! Esse desperto vazio cansado! O homem chega! Trazendo atrás dele todos os caminhos escuros, todos, todos dentro dele, os longos caminhos escuros, na sua cabeça, aos seus flancos, nas suas mãos e pés, e fica sentado no lusco-fusco vermelho, de dedo no nariz, à espera de que rompa a aurora. A aurora! O sol! A luz! Ah! Os longos dias azuis para a cabeça dele, para os seus flancos, e os estreitos trilhos para os seus pés, e toda a claridade para tocar e colher. Pela erva fora os estreitos caminhos musgosos, ossudos das raízes velhas, e as árvores espetadas, e as flores espetadas, e os frutos pendentes, e as borboletas brancas exaustas, e os pássaros sempre diferentes, voando como flechas a esconder-se. E todos os sons, que não significam nada. E, depois, à noite, o descanso da casa quieta, deixa de haver estradas, deixa de haver ruas, refugiamo-nos deitando-nos junto à abertura duma janela, chegam os pequenos sons que não pedem nada, não mandam nada, não explicam nada, não propõem nada, e a curta necessária noite vai acabar já, e o céu azul de novo vai vir sobre todos os lugares secretos sempre diferentes, mas sempre simples e indiferentes, sempre meros lugares, sítios de um frémito para lá do ir e vir, de um ser tão ligeiro e livre que é como o ser do nada. Como eu sinto tudo isso de novo, passado tanto tempo, aqui, aqui, e aqui, e nas minhas mãos, e nos meus olhos, como uma face erguida, uma face oferecida, toda confiança e inocência e candura, todo o velho solo e medo e fraqueza que se oferecem, para serem enxaguados com uma esponja e perdoados! Ah! Ou nunca senti isso até agora? Agora, que já não há garantias? Não me surpreenderia. Tudo perdoado e curado. Para sempre. Num momento. Amanhã. Seis, cinco, quatro horas ainda, da velha escuridão, do velho fardo, a clarear, a clarear. É que veio alguém, para ficar. Ah! Todos os velhos tempos conduziram a isto, todos os velhos meandros, as escadas sem um único patamar para uma pessoa se alçar, agarrando-se ao corrimão, contando os passos, a febre dos caminhos mais curtos por sob as longas pálpebras do céu, os caminhos bravios dos campos em que os nossos mortos caminham junto a nós, no cascalho escuro a última curva que se dobra de novo para a pequena cidadezinha, os encontros que cumprimos e os encontros a que faltámos, todas as delícias da mudança de lugar, urbana e rural, todos os existus e redditus,  encerrados e terminados. tudo conduzindo a isto, a este crepúsculo em que um homem de meia-idade está sentado a masturbar a bicanca, esperando o romper da aurora. (...)"

Samuel Beckett (1953)
Watt,  Assírio&Alvim, 2005

©Julia Margaret Cameron (1815 -1879)
Portrait of Julia Prinsep Jackson. Cameron's niece and mother of the author Virginia Woolf]

Acordei com medo de não ser sábado:
manhã do rímel retardado e do lápis esbatido.
Enquanto não for domingo,
adormeço neste sábado
onde me abrigo e me esqueço,
sofro e enlouqueço.

Sábado é dia de ser real,
manhã do baton que já foi,
resquícios da base que já nada esconde.

Sábado é dia de ser -
de ser hoje tão imperfeitamente eu.

Acordei com medo de não ser sábado - mas sou.
"ONDE cheirar a merda
cheira a ser.
O homem podia muito bem deixar de cagar,
deixar de abrir a bolsa anal,
mas preferiu cagar
como poderia ter preferido viver
em vez de consentir em viver morto.

É que para não fazer cócó
teria que aceder
a não ser,
mas ele é que não foi capaz de se resolver a perder o ser,
isto é a morrer vivo.

Existe no ser 
algo particularmente tentador para o homem
algo que vem a ser justamente 
         O CÓCÓ
          (aqui rugido.)

Para existir basta que se condescenda em ser
mas para viver
é preciso ser alguém
é preciso ter OSSOS,
não ter medo de mostrar os ossos,
e de caminho perder a carne.

O homem sempre gostou mais da carne
do que da terra dos ossos.
É porque só o que havia era terra e madeira de ossos
e ele viu-se obrigado a ganhar a sua carne,
só o que havia era ferro e fogo
e merda não,
e o homem teve medo de ficar sem merda
ou antes desejou a merda
e para isso sacrificou o sangue.

Para ter merda,
quer dizer, carne,
ali onde só o que havia era sangue
e um ferro-velho de ossadas
e onde nada se ganhava em ser
mas onde só restava perder a vida
     o reche modo
     to edire
     de za
     tau dari
    do padera coco

Retirou-se o homem então, e fugiu.
E então os bichos comeram-no.

Não foi uma violação,
ele prestou-se a esse obsceno repasto.
(...)"

Antonin Artaud (1948)
Para Acabar de vez com o juízo de Deus, &etc.

[#1] Síndrome de Estocolmo

©Robert Demachy - Struggle, 1904
PLAY Radiohead Paranoid Android

 P r i s ã o     q u e     r e n d e

setembro 22, 2015

[#2] manual de sobrevivência

©raquelsav. 21 setembro 2015




Quando espíritos grandes se revelam, simplesmente...

setembro 15, 2015

Joan Vilatobà. En quin punt del cel et trobaré?, circa 1903-1904© Hereus de Joan VilatobàCortesía Galería A34

"Falámos tanto ou tão pouco que de repente o silêncio que se fez foi essa patada no peito de que guardamos a marca quando agora choramos, quando estendemos as mãos carregadas de dedos mortos, sonhámos tanto que mais de uma vez tivemos de matar, que mais de uma vez estoiraram os olhos sob a pólvora das lágrimas e as tuas mãos voaram estilhaçadas, jogámos tanto que para não nos perdermos arriscámos tudo, até tornarmos a morte uma coisa nossa, tão nossa que é ela que anda agora vestida com a nossa pele e os nossos ossos, escorregando pelas paredes de cabeça p'ra baixo ou subindo pelo interior dos bicos, olhando do alto o sangue que ficou no centro, entre os carris, passando de cadafalso em cadafalso com os lábios furados pelas unhas, com a cintura roxa das dentadas da noite, da miséria dos dias."

António José Forte (1983)
Uma Faca nos Dentes,  Parceria A. M. Pereira, 2003
"Mas aqui estava outra coisa que Watt nunca havia de saber, por não ter prestado a devida atenção ao que se passava à sua volta. Não é que esse conhecimento fosse de algum préstimo para Watt, ou de algum dano, ou lhe causasse algum prazer, ou algum desprazer, que não era nada disso. Mas achou estranho pensar nessas pequenas mudanças, os pequenos ganhos, as pequenas perdas, as coisas que se acrescentam, as coisas que se tiram, a luz dada, a luz tirada, e todas as vãs oferendas à hora, estranho pensar em todas essas pequenas coisas que se agregam ao que chega, ao que está, ao que se vai, estranho não saber nada delas, nada das que existiam desde que ele existia, nada do momento em que tinham vindo, e de como tinham vindo, e como era tudo então comparado com o antes, nada do tempo que tinham perdurado, e como tinham perdurado, e que importava isso, nada do momento em que se tinham ido, e de como tinham ido, e de como era tudo então comparado com o antes, antes de terem vindo, antes de terem ido."

Samuel Beckett (1953)
Watt, Assírio&Alvim, 2005

setembro 07, 2015

©Daniel Blaufuks
    "Não basta ser sincero. Não basta ser sincero uma vez, mas sempre. Para que a nossa vida não fique sendo apenas o reflexo de determinado momento em que fomos sinceros. São tão diferentes as idades da vida de cada um que quem não vai por essa diferença é porque parou numa delas. As idades da vida não se passam por alto: ou se vivem ou ficam por viver. Ou se gasta a sinceridade de cada idade da vida, ou ela toma o incremento de um organismo dentro do nosso organismo, uma excrescência, uma protuberância, um tumor, um tumor maligno, ruim, um cancro!
    Não basta ser sincero toda a vida. Depois de tudo ainda é necessário que a nossa sinceridade seja perigosa. Perigosa para o mesmo e para a sociedade. Não deixemos a sociedade assentar arraiais sem primeiro ter reconhecido pessoalmente a cada um. A ver se, por fim, ela deixa de se ofender com o nosso sincero caso pessoal. A ver se ela acaba por uma vez com aquilo de dar mostras bem duras de ter ficado ofendida com a nossa sinceridade. Ou terá de ser sempre assim? Para ela, a nossa sinceridade será sempre a impertinência de um extraviado, a loucura de um isolado?!"

José de Almada Negreiros (1938)
Nome de Guerra, Assírio&Alvim, 2004

______________________________&____________________________

"Sentir-se próximo dos que veem, não porque começa a ver mas porque os arrasta - aos que veem - para o campo onde todos são cegos."

Gonçalo M. Tavares (2010)
Matteo perdeu o emprego, Porto Editora, 2010

"É a sensação mais horrorosa que possa imaginar-se aparecer de repente a verdade a uma pessoa que faz por iludir-se. O Antunes desejava que a festa tivesse ainda mais brilho, mais artifício, mais música, mais barulho, mais fantasia, mais vertigem. Ele queria a verdadeira mentira, essa que vale tanto de noite como a verdade de dia. Mas por mais que fizesse não conseguia deixar de ver diante de si em todos os homens e em todas as mulheres caricaturas grotescas, estrangeiras, tortas, incompreensíveis, inúteis, vivas, em carne e osso, como gente, hediondas, malditas, metamorfoses que não prosseguem, que ficam informes, aos pedaços, mal feitas, mal fabricadas, erradas, empecilhos, envenenadores da memória, mascarados, oiro de cenografia vista ao pé, papelão a fingir carne, barato e sem ilusão. Eles tinham esgotada a imaginação: incapazes de ironia e de optimismo, esmagados pela realidade, esborrachados pela vida, impossibilitados, estampados, inválidos, parados. Nem verdade nem mentira, nada! Nem desequilíbrio nem erro, nada! Bonecos, fantoches, sem saída, corpos sem alma, almas que morreram primeiro do que os corpos! Gente que ia de passagem e ali ficou para sempre. Copiam, repetem, imitam, representam, mas de repente a sina escurece outra vez. Ficam os foles em vez da respiração."


José de Almada Negreiros (1938)
Nome de Guerra, Assírio&Alvim, 2004
©raquelsav2015.Set. Fuente Dé

P   A   Z

rima com

F   U   G   A   Z 


agosto 20, 2015

[#5] palimp­sesto

- Tu é que pediste para ler.
- Achas que li? Afinal, não vesti os óculos.
- A cegueira é tão conveniente, não é?
- E tu sabes o que tens estampado no rosto, não sabes?
- Sim. A clarividência inclui-me.
- Ah, és um metafísico, portanto.
- E tu, uma palerma.
Inspirámos em uníssono. Ambos, ruidosamente, forçando a exalação de um ar, em ambos, saturado.
(_________________)
Rompeste o silêncio:
- Vens renovar?
- Claro. Renovar é tudo o que está ao nosso alcance. Já tudo foi criado.
- Pelo menos há a esperança de que a fotografia saia melhor.

Creio que nos encontrámos. Não são fáceis os encontros. Um encontro nasce dessa força capaz de romper o egoísmo. E nós somos tão aleatórios para sermos síncronos.

- Posso pedir-te uma coisa?
- Diz.
- Acaba de escrever o poema que estavas a escrever. Eu não te interrompo, eu não olho mais para ti.
- Posso tentar. Mas quero que olhes tão perfeitamente para mim.
fotograma de Não Amarás (1988) de Krzysztof Kieslowski


"Terminaste? Gostaste? 
Pois aí está tudo o que representa o amor.
Há toalhas na casa de banho- podes limpar-te"

agosto 19, 2015


Brincamos às vidas
e, na hora da morte,
damos água ao caule,
na esperança de reanimar
a flor.

©André Kertész 
"AS PESSOAS PÕEM NOME A TUDO E A SI PRÓPRIAS TAMBÉM
(...)
Era uma vez uma rapariga chamada Judite. Mas o seu nome verdadeiro não era Judite. Só às vezes, em ocasiões muito íntimas, é que ela esteve quase para dizer tudo:
- Eu não me chamo Judite. 
(...)
Há quem sinta prazer em proceder como anónimo. Não é ao que o autor se refere. O anónimo sabe ver. 
(...)
ÀS VEZES O DIA COMEÇA À NOITE"

José de Almada Negreiros (1938)
Nome de Guerra, Assírio&Alvim, 2004
C-121

It seems so long ago, Nancy
Leonard Cohen

não muito longe nessa cidade com os seus milhares
de encontros às cegas houve também outras noites
como esta ao voltar para casa - os caminhos

mortos do regresso as mesmas perguntas - 
e é que apesar do amor dos braços
e das pernas abertas a solidão regressa

com as suas dúvidas

Pablo Garcia Casado (1972 - )
in Trípticos Espanhóis - 3.º, Relógio D'Água, 2004

agosto 18, 2015

©Daniel Blaufuks. Passos em Volta

    "Deus principia a inspirar-me terror. A minha unidade, sobretudo. A unidade fechada e imóvel. O universo passa bem sem mim, e o terror é uma inspiração sem mácula, dentro do que se pode alcançar.
    Não, não está ninguém junto à porta."

Herberto Helder (1963)
Os comboios que vão para Antuérpia in Passos em Volta, Assírio&Alvim, 2009

agosto 17, 2015

©Gérard Castello-Lopes Untitled, Lisboa, Portugal, Undated
"Às vezes, não és mais do que um suporte para o meu rancor.
Outras vezes, quero construir contigo toda a memória, só me lembrar de ti, seres tudo o que há para lembrar."

Rui Nunes [1995]
Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado. Relógio D'Água, 1995
"E no entanto é verdade, faço aqui uma pergunta de todo escusada - o que vale mais: uma felicidade barata ou um sofrimento sublime? Caramba, o que vale mais? "

Fiódor Dostoiévski [1864]
Cadernos do Subterrâneo, Assírio&Alvim, 2000

[#4] palimp­sesto

"Ourém, Conservatória do Registo Civil, 11 de Agosto de 2015

     - Olá, estás boa?  - Silêncio.
    André, vê se te convences! Eles não te ouvem. Estão demasiado distantes de si para te poderem ouvir. Queres escrever um coral a quantas vozes? Não te chegam as tuas? E que pergunta escusada é essa? Não vês que não? Resta-te assim tanto tempo de vida que o possas gastar em perguntas inúteis? Pergunta-lhe o que lhe faz lembrar o cheiro desta casa; se já sentiu a fúria do vento a subir-lhe pelas pernas; se, pela manhã, bebeu o café ou se o degustou; se se lavou do banho da noite; se hoje já se masturbou... enfim, pergunta-lhe algo que a possa fazer sentir-se viva. V   I   V  A.  Já sabes as respostas, de qualquer forma!

   Ontem- a distância que criámos entre o que fomos e o imaginário que passamos a ser. Ontem- a palavra que branqueia o tempo e faz vacilar a dúvida e o erro que somos...

    Foda-se! Não consigo. É que não consigo concentrar-me! Basta!
   Por que é que tens de vir ter comigo com esses olhos lânguidos? É um pedido de socorro, é?  Eu só quero escrever de mim, para mim, sobre mim. Eu só quero poder desenhar uma gaveta fechada, para não ter de ver o que nela se encerra. Não quero ver. Não quero ver-te. Desaparece. Desaparece-me. Mas quem te deu autorização para entrares assim? Já disse que não me interessas, porra! Por que é que tenho de arcar com os teus dilemas de síndrome pré-menstrual? Quero lá saber dos teus excessos de testosterona. Queres o quê? Queres que eu te chame falsa, idiota? Queres que te arranque essa máscara ridícula com que enganas meio mundo e, quase, a ti? Ou preferes que esconda a minha mão debaixo da tua saia? Deixa de ser idiota. A única coisa verdadeira em ti são essas unhas. Autenticadas pela micose que nem fazes questão de esconder. Ostentas orgulho nelas porquê? Porque são feias e fracas? E por que raio as cortas rente e não as pintas como as outras gajas? Por que não as cobres de verniz-gel, a condizer com a tua dissimulação? Sabes o que isso é, ao menos, verniz-gel? Oh pá, deixa-me em paz. Eu só quero escrever de mim, para mim, sobre mim. Já disse. Pára de me fixar com esse olhos brilhantes. Vens renovar o quê? O cartão que te dá um número? O mesmo número de sempre? O número onde te escondes de borrasca em borrasca? Tens medo de quê, afinal? De admitir que o que tens te chega e sobra à tua pobre ambição? Que vagueias como quem vive? Por que fazes tanta questão de te boicotar? Por que negas despir-te?  Por que merda é que não queres ser feliz? Que enfado lírico! Estou farto de ti. De todos os outros iguais a ti. Farto do mundo. Larguem-me, porra. Eu leio-vos a milhas. Deixem-me em paz. Só quero paz! Só quero distância.

    Não acredito. Deixaste cair a porra do lápis de propósito, só para testar os meus dotes de Don Juan? És tão previsível!"

- Desculpa, posso?


agosto 14, 2015

Dostoiévski

    

"Olhou para a filha como um homem novo olha para as pernas de uma mulher na rua, e a filha teve medo.
    Mas não tenhas medo, eu sou bom.
    E o velho disse: em tempo de guerra não disparar é oferecer flores. Em tempo de paz não oferecer flores é disparar.
    Ela atravessou o pátio onde três guardas lhe apontavam uma arma e imaginou em cada guarda um homem que lhe estendia um ramo de flores. Mas duas armas dispararam e só uma não disparou."

Gonçalo M. Tavares (2004)
Biblioteca, Campo das Letras, 2006

[#3] palimp­sesto

- Sim, tens razão. Desculpa. Eu não faço ideia do que escreveste. Usei a palavra verborreias por mero exercício lexical. Enfim, para exercer o meu direito literário ao uso de palavreado acessório.
- Ah, afinal não sublinhas, apenas. Também escreves.
- Só escrevinho.
- És escritora?
- Não, deus me livre. Amo demasiado as palavras para querer ser escritora.
- Eu empresto-te o meu lápis, se quiseres. Este é dos que escreve.
- Esquece. Não preciso de criar matéria para exacerbar a minha mediocridade. Deixa-me ler o que escreveste.
- Não trouxeste os óculos.
- Eu não uso óculos.
- Claro que usas. Tu é que não sabes.
E li, sem óculos. Mastiguei a custo. Degluti em disfagia. Não engoli.
Senti que o tempo parou. Que parámos nós nele. Numa linha de tempo cru. Num espaço como nunca antes, real.
- Então, não sublinhas?
- Ordinário.

agosto 13, 2015

[#2] palimp­sesto

Hoje, voltei. Voltei a antes de ontem. O dia em que escrevias no bloco verborreias da tua memória, empilhando palavras como quem perfila tijolos numa parede sem fundações. Mas fui eu que deixei cair o lápis.
"Desculpa, posso?"- perguntavas.
E eu pensei que poder até podias mas que as minhas unhas estavam uma miséria e que a depilação já tinha dias.
"Não te preocupes com as unhas, só quero apanhar o teu lápis." - adivinhaste?
[O corpo da mulher, na sua perspectiva de mulher, há-de ser sempre uma vertigem. ]
Num movimento brusco, escondi os dedos, como se calçasse meias-pontas mas sem a candura de um elevé. Entregaste-me o lápis.
- Obrigada. Este não serve para escrever. Só serve para sublinhar.
Continuaste a escrever. E eu a sublinhar.

Vicent Tim Burton (1982)

Paul (Pal Funk) Angelo -Vilma Banky, 1920s
PLAY Peixe Pêndulo


"todas as pessoas e personalidades espontâneas são activas precisamente porque são lorpas e limitadas. (...) como consequência de serem limitadas, tomam as causas superficiais e secundárias por causas primeiras, desta maneira se convencendo mais fácil e prontamente do que os outros que acharam fundamento indefectível para as suas acções, e isso sossega-as; e é isso o  mais importante, o sossego. Porque, para se começar a agir, é necessário estar-se prévia e completamente em sossego e que não existam já dúvidas nenhumas. Então, e eu, por exemplo, como hei-de sossegar-me? Onde tenho eu causas primeiras em que me baseie, onde estão os fundamentos? Onde arranjá-los? Exercito-me no raciocínio e, como consequência, para mim qualquer causa primeira arrasta consigo uma outra, ainda mais primeira, e assim por diante até ao infinito. "

Fiódor Dostoiévski [1864]
Cadernos do Subterrâneo, Assírio&Alvim, 2000


©HU-untitled, 2012 oil on paper mounted on plywood 89x45 cm

"And I move out of love.
If only there was only no consequence.
I'd watch it all turn to dust"

Primeira Lei de Newton: Todo o corpo continua no estado de repouso ou de movimento rectilíneo uniforme, a menos que seja obrigado a mudá-lo por forças a ele aplicadas.
Segunda Lei de Newton: A resultante das forças que agem num corpo é igual à variação da quantidade de movimento em relação ao tempo.
Terceira Lei de Newton:Se um corpo A aplicar uma força sobre um corpo B, receberá deste uma força de mesma intensidade, mesma direção e sentido oposto à força que aplicou em B.
  
Qual a direcção e intensidade da força que anula a nossa inércia?

O que podemos esperar da resultante das nossas forças?

Como se poderá definir melhor o nosso movimento? Na velocidade média ou na velocidade instantânea?

Quando esperar que a força que exercemos num corpo tenha como resposta uma força de igual intensidade, em sentido contrário?


[#11] Jingle
  A beleza da física que te define não está na força de que dispões mas na que estás disposto a aplicar.
(17/04/2013)
©Angelo (Funk Pál) Idõzavar, 1965 
POEMA
(para Mário Cesariny)

Moveu-se o automóvel - mas não devia mover-se
não devia!

Ontem à meia-noite três relógios distintos bateram:
primeiro um, depois outro e outro:
o eco do primeiro, o eco do segundo, eu sou o eco do terceiro

Eu sou a terceira meia-noite dos dias que começaram

Pregões de varina sem peixe
- o peixe morreu ao sair da água
e assim já não é peixe

Assim como eu que vivo uma VIDA EXTREMA

António Maria Lisboa (1928-1953)
Poemas, Biblioteca Editores Independentes (Assírio&Alvim), 2008

agosto 12, 2015

"O homem gosta de criar e de construir caminhos, é indiscutível. Mas por que gosta também apaixonadamente da destruição e do caos? (...) Não será possível que o homem goste da destruição e do caos porque tem um medo instintivo de alcançar o objectivo e concluir a construção do edifício? Talvez só de longe goste do edifício e não de perto. Talvez apenas goste de construí-lo e não de viver nele, oferecendo-o, depois, aux animaux domestiques, ou seja, às formigas, aos carneiros, etc., etc. Quanto às formigas, essas têm outros gostos. Têm um só admirável edifício deste género, indestrutível- o formigueiro. "

Fiódor Dostoiévski [1864]
Cadernos do Subterrâneo, Assírio&Alvim, 2000

[#1] palimp­sesto

Ontem, vi-te. Fui à Conservatória do Registo Civil e conheci-te. Renovavas o nome. Patenteavas o desespero, nessa imitação barata a que chamas vida.
"Que mais me irá acontecer?" - dizias.
E eu senti o cheiro da borralha, dos ossos desfeitos em fogo, quando a cinza, semi-apagada, nem de fertilizante serve.
A memória intersticial não dá para mais, principalmente se as urgências do corpo se sobrepõem a determinações literárias:
"Podia jurar que nunca te vi mais gordo". - disse.
"Ah, deve ser dos medicamentos, fizeram-me engordar"- brincaste.
Tudo o que senti foi vergonha. Não tanto por não te ter reconhecido mas porque o mais que me apetecia era foder-te ali, por inteiro. Não sei se me leste o pensamento ou se o murmurei, descuidadamente, mas juro que te ouvi dizer:
"Hoje, sim. Agora, também”.

Aguardámos em silêncio na bicha. Renovámos os cartões e eu encenei uma despedida:
- Prazer em conhecer-te.
- O prazer foi todo meu!
- Todo? Acho que não!
E sorrimos.

[Ourém, Conservatória do Registo Civil, 2015]
"Não será que a tendência recente dos websites "-cam", que consubstanciam a lógica de A vida em Directo (nestes websites, podemos seguir continuamente um acontecimento ou o que se passa num dado local: a vida de uma pessoa em sua casa, a vista de uma rua, etc.), revela esta mesma necessidade urgente do Olhar fantástico do Outro, como garantia da existência do sujeito? "Só existo na medida em que sou olhado constantemente..." (Como observa Claude Lefort, um fenómeno semelhante é o do aparelho de televisão que está ligado em permanência, mesmo quando ninguém está a ver, isto serve como garantia mínima de existência de um elo social). Assim, estamos na situação da inversão tragicómica da noção orwelliana-benthamiana da sociedade panóptica, na qual somos (potencialmente) "observados durante todo o tempo" e não temos lugar onde não possamos esconder do olhar omnipresente do Poder: aqui, a ansiedade surge perante a perspectiva de não se estar exposto em permanência ao olhar do Outro. O sujeito precisa do olhar da câmara como uma espécie de garantia ontológica da sua existência..."

Slavo Žižek (2005)
Lacrimae Rerum,  Orfeu Negro, 2013
Mapa de Desencontros

I
Abrigo-te
mais uma vez
há muito tempo
disseste aqui
hei-de morrer
voltas sempre 
a esta morada
ris-te e partes
no telhado frágil
caem as primeiras
águas de Inverno.

III
Olhamos o amor e a morte
desdobrando-se no tempo
nas rugas das suas estações
demasiado tempo mantemos
a ilusão de uma diferença
mas o tempo comprime-se
naquele momento breve
em que a nossa vontade
julga poder prescindir dele.

Carlos Alberto Machado (2000)
Registo Civil- poesia reunida. Assírio&Alvim, 2009
A Minha Mão Acariciando


Acabou tudo
o corpo na areia fria
retenho muito tempo a imagem
unem-se as vagas em assalto
final 
resisto.

V
Desloco para a tua retina
todos os pasmos do crime
impressionante não é tanto
o sangue que inunda a cama
o latejar do coração sob 
o punho que desfere o golpe
mortal é o pensamento
que dá a força ao acto
que destroça o cérebro
golpeia uma a uma as amarras
o teu corpo sob o meu amolece
e os teus olhos encerram
as imagens que não verei.

VI
A tua medida será esta bem sabes
uma hora nem mais é a medida exacta
o tempo que o antigo veneno celta
vai demorar a percorrer-te o corpo
há tanto tempo que sabemos disto
o espanto é adivinhar-te agradecida
e saber do meu gozo de cada segundo
dessa hora como a hora da minha morte.

Carlos Alberto Machado (2000)
Registo Civil- poesia reunida. Assírio&Alvim, 2009

agosto 10, 2015

©Angelo (Funk Pál) Részegek utcája, 1928

Somos iguais - tão perfeitamente distintos.
Ambos sabemos que o tanto que nos identifica
é o muito que nos distingue.
Não seremos, por isso, melhores.
Nem piores - somente diferentes,
pelo tão iguais que somos.

E é assim que nos amamos:
amamo-nos a nós mesmos,
como ninguém nos soube ensinar.

Pudesse o regresso ser ponto de partida
e o ai de um nada que doeu
guardasse o instante-  em pó-
da ferida.
 ©Nikos Economopoulos. Greece, Preveza.
Carnival. My son Dimitris and my daughter Lina.

PLAY Fat Freddy Frenesim de Canibalismo Ritual
fotograma de Loin des Hommes de David Oelhoffen (2014)

"Balducci fez o gesto de passar a lâmina no pescoço. O árabe, cuja atenção fora atraída para a conversa, observava-o inquieto, e Daru sentiu uma cólera súbita contra esse homem, contra todos os homens e sua estúpida maldade, contra os seus ódios incansáveis e inextinguível sede de sangue."

Albert Camus (1957)
O Hóspede in O Exílio e o Reino, Edição Livros do Brasil

agosto 08, 2015

©Gerard Castello Lopes
PLAY Linda Martini Volta

Beberei o avesso do copo
e o pingo que restar
partilharei contigo.
Seremos um-
pingo e corpo-
no avesso de um erro.