maio 19, 2014

quando nos zangamos é às segundas. segunda é o dia mais a jeito para nos zangarmos. segunda é dia de depurar os excessos do fim de semana. o dia de preparar uma nova semana de excessos e abusos. por isso, quando precisamos, paramos  às segundas. rasgamos alguns rascunhos ou, então, passamo-los a limpo. às segundas renovamos ciclos.

se um dia decidirmos não renovar, espero que não o façamos a uma segunda. segunda não é dia de criar ideias novas. segunda é apenas dia de as depurar. de as lipo-aspirar.

hoje é segunda. e hoje choveu. e a mala feita para a semana já me parece mais leve do que ontem.

Herta Müller

"Quando Clara pragueja, todas as coisas têm mãe". (p. 12)

"A criança invadiu com seu riso a última frase e o silêncio que se lhe seguiu. E os seus dentes pareciam gravilha, metade deles enegrecidos e os outros lisos e brancos. No rosto da criança lia-se uma idade que a voz de criança não suportava. O rosto cheirava a fruta estragada." (p. 14)

"Atrás de uma mulher caminha uma sombra, a mulher é pequena e inclinada, a sombra mantém as distâncias. A mulher atravessa a relva e senta-se num banco junto do prédio.
A mulher está sentada, a sombra fica de pé. Não pertence à mulher, como a sombra da parede não pertence à parede. As sombras abandonaram à sorte os objectos a que pertencem. Pertencem somente àquele fim de tarde, que já passou." (p.24)

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012)

maio 17, 2014

na hora certa criamos a dúvida razoável. questionamos as nossas certezas, a nossa capacidade de sobrevivência. usamos palavras da moda, como resiliência, para ajustar ao estado de espírito. e na incapacidade de criarmos amigos, criamos inimigos invisíveis, apenas para não darmos conta da solidão. 
e depois é esta urgência inaudita da pele na pele, da minha e da tua, entenda-se. a boa notícia é que o cão não morreu. apareceu meio combalido e à distância, a medo. ele sabe do rubor do encontro após as distâncias. mas seja a vergonha o mal maior. essa pelo menos diz das peles que se encontraram.

Rui Nunes

"vieste com sinais de antiga alegria. E vi que não tinhas sido mais do que um trajecto, o percurso onde te transformaras num estrangeiro. Mas o que amei em ti foi a possibilidade de todos os caminhos por onde poderias ter ido e onde sempre te reconheceria. Isso, antes de saber que o meu destino era a realização de uma morte antecipada
e depois? nós temos a consciência de que não somos génios, do assim assim que somos, aborrecemos algumas palavras e delas nos rimos, e dos directores gerais da cultura, seus mansos servidores, e de outros sábios que mijam e cagam como nós, de calças abaixo, sentados nas sanitas, sem espanto de Alexandre, aliás sem nenhum espanto, monocórdicos e graves, que têm no futuro um caixão de primeira e um epitáfio ou um poema em memória de." (pp. 46-47)

"não te podia odiar, e era esse o castigo, porque te tornaras indiferente como lugar nenhum, e o que havia em ti era anterior aos meus olhos, estavas como se ninguém nunca te tivesse olhado, na desatenção dos que não esperam nem concebem quem os espere, perguntava-me o que me tinha levado a construir-te com materiais tão precários e a resposta era a outra pobreza que era a minha" (p.49)

Rui Nunes, "Os Deuses da Antevéspera", 1990

Rui Nunes


"A boca é um útero estéril, receptáculo onde o futuro se extingue. Vêem os dedos a seda mais quente e os olhos a implosão da curva, arco que torna inúteis as palavras, as desfaz no pranto da saliva, matéria anónima onde nos respiram os outros. E ascendo pelo breve presente furioso, os músculos contraídos, e na tua boca deponho quanto de teu. O duplo aquário repleto de água original.

Dormir, é rápido. Mas a vigília, a grande construtora de idos


deste-me um murro na cara. E assim descobri os meus limites. Com precaução toquei a boca dolorida: era a minha, inchada, palpitante. Sentia-a pela primeira vez. Pediste-me: Bate-me. Respondi-te: não. E deixei-te perdido na recusa. Mas tu voltaste a agredir-me. E a pouco e pouco eu subia à minha integridade, à totalidade do meu ser. Percebia todos os sítios de mim e vivia essa plenitude com alegria

no entanto, depressa te apercebeste da minha felicidade e me obrigaste a atravessar o campo.

Se a meu lado me exigem a verdade, eu digo-a, mas o que digo é só a verdade exigida, aquela que é por ordem de quantos me fizeram a consciência e esperam hoje que eu cumpra como me estava reservado." (p.10)


"Recomeço. A vida é um instante dilatado à medida da vida" (p.13)


Rui Nunes, "Os deuses da antevéspera", 1990

maio 16, 2014

Florbela Espanca

PLAY X - Carminho - Tiago Bettencourt 
                   
                      X
Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o sol mais criador,
Mais refulgente a lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida,
— Quanto mais funda e lúgubre a descida
Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!

maio 15, 2014

acordo no sono em alvorada,
             às mãos do nosso encontro.
creio no eco da tua voz
             em acalentar o estio da noite alta.

somos nós. nós somos em estio.
na noite alta onde somos, nós.

somos no vazio,
            por não podermos ser,
no encontro da voz da noite alta,
            onde ser não podemos.

acordamos no sono,
             em silêncio de alvorada,
             às mãos do nosso encontro.

ambos sabemos da noite.
aconteceu nascermos depois da hora,
no silêncio e no vazio, de fora,
momento exacto do sono feito estio.


maio 11, 2014

Auto-retrato


PLAY James: "Five-O"

Há uns meses atrás escrevi:

A atitude fenomenológica de quem se auto-retata, de quem procura desprender-se de si e entender-se à (na) sua imagem.
A atitude pornográfica de quem, sorrateiramente, fotografa e expõe o momento em que o si se desprende:
- do ser em "corpo e alma" e se assume sob a forma de imagem;
- do que é para passar, também, a ser na imagem que constrói de si.
Mas a imagem é só uma e ilustra apenas um momento. Quantos momentos são necessários para nos definirmos? Quantos momentos deveremos assumir para passarmos a ser? 
O que permite, então, a fenomenologia entender quando reparte em momentos, em auto-retratos momentâneos, o todo? De quantos auto-retratos necessitamos para construir o álbum da nossa vida e torná-lo a expressão do nosso ser, um ser que se quer uno, mesmo após tanta partição?
Quanto desse ser construímos em função desse álbum que vamos compondo? Quanto dele podemos manipular para passarmos a rever-nos na imagem do que queremos ser e parecer?
Do que somos feitos afinal? Do que nascemos e construímos?
Questiono os direitos de autor, do autor dos nossos autoretratos que queremos preservar, da imagem, em si, que queremos manter pura e intocável enquanto nos vamos (re)definindo... como pode esse autor, que somos nós, libertar-se deste labirinto fractal de quem desenha o desenho e se vê e (re)vê nele, em espiral infinita?
(9/01/2014)

Alguns meses depois...

A questão não se prende tanto com o "ser" ou "não ser", mas antes com o "ir sendo" ou "não sendo"!

maio 09, 2014

só se chora à noite, depois da cara lavada.
apenas e só à noite, de cara lavada.
só se chora à noite apenas e só.
sem ninguém para assistir.
e à noite só se chora entre o desmaquilhante e o tónico que antecede o creme hidratante.
apenas e só.
só se chora à noite, no silêncio.
apenas e só depois da cara lavada.

antónio franco alexandre



1.
ligeiramente suspenso pensei: nunca mais
poderei esquecê-lo, as longas, secas
estradas; os passos na água, nus,
e a perfeita esfera dos versos;
o instante em que o céu é redondo e
inútil,
são-me memória deste chãos, deste cuspo
espantado, no silêncio aberto das coisas.

mudo de rosto para ver-te. nenhum deus
te possui. o caule
do vento te cobre.
e descemos a luz, a transparência
os corredores solenes da lembrança
onde dormidas fúrias anoitecem.
confio na muda boca, ó gume fulvo
de ninguém!

as palavras existem no intervalo das palavras.
nenhuma imagem é o permanente futuro dos corpos
quando se enlaçam, quando se sonham
a colina e a água,
a cidade e o rosto
móvel da multidão apaixonada,
que se afasta correndo para o lado da terra
onde jamais arderam.
antónio franco alexandre
Segundas Moradas, 
in Poemas, pp. 299-300

maio 06, 2014

havia uma certa pedagogia que alimentava a ideia de que pensar muito sobre as coisas não só era a atitude correcta, como a que produziria felicidade... dei por mim a fazer uma "construção", um entendimento próprio sobre o amor, ou o conceito de amor... e de que é que isso me serviu? possivelmente para ter mais dificuldade em amar, achava eu que poderia amar melhor se o processo fosse mais consciente. tipo amar menos mas amar melhor.

e a dúvida que resta é se esta mensagem foi, ou não, gerada automaticamente, por um qualquer gerador de Spam.

maio 05, 2014

carregamos a existência todos os dias. todas as semanas, às segunda-feira,  insistimos na dieta. dizemos que hoje é que vai ser diferente. que tudo vai mudar. mas um espírito denso sofre de obesidade mórbida. não há banda gástrica que lhe resolva o excesso de peso.
mesmo assim não acabamos os dias à porta do cemitério. não abandonamos o corpo à espera do dia derradeiro no local mais prático aos donos do nosso cadáver. não desistimos. a internet está cheia de dietas milagrosas. benzemo-nos à Herbalife e à Depuralina... e afinal, daqui a pouco, é segunda-feira e tudo irá ser diferente. 

maio 03, 2014

chovam telhas de xisto em céus cinzentos 
e nasçam pés de sardinheiras rosas nos tectos mais próximos
eu olharei para tudo como se o fizesse pela primeira vez
não estranharei um mundo ao contrário.

profecia

PLAY radiohead · paranoid android

estranhei a ausência. pela primeira vez, em tempos que não sei determinar, mas vários, ele não se cruzou comigo hoje de manhã. será que o cão morreu?

se o cão não se cruzar comigo amanhã, amanhã ou amanhã, não poderei permanecer segura da sanidade que me resta. o mais certo é vir mesmo a enlouquecer, de uma vez.
o cão era louco. um louco mais louco a disfarçar a minha loucura.

a desordem de não me ter cruzado com o cão hoje já produziu efeitos. tudo o que sinto é tédio a correr nas veias. se o cão não se atravessar no meu caminho talvez a vontade seque de uma vez. e nem o Schopenhauer me poderá valer.

o esvoaçar da borboleta irá gerar o caos. eu sei. irei rebolar até secar e deixar de querer. e não mais a lógica da paixão será para o meu alcance, não mais.

se o cão não regressar, se o cão morreu serei desordem que endurece e se eterniza num corpo de vontades sem alma que o decore.

acho que o cão não irá voltar. acho que sequei a vontade. não há loucura que me reanime. não há cão que me acorde.

o cão morreu, e eu com ele, mesmo que o corpo insista em permanecer.


maio 02, 2014

poeiras

porque, às tantas, nem é uma questão de verdade. dessa até sabemos que não existe. quando muito é um problema de validade. de qualquer forma, a questão essencial reside na interpretação e não, propriamente, na existência.  interpretação mais ou menos acérrima. e talvez a dificuldade até nem seja a falta de flexibilidade na aceitação de diferentes interpretações. será tão somente a cegueira ou a teimosia existencial, de várias as partes, que dificultam o dialogo. a doença das pessoas que pensam, sim, a doença das pessoas que pensam muito é uma espécie de cegueira e teimosia existencial. mas talvez eu esteja errada, talvez eu pense demasiado. 

maio 01, 2014

só não revelo os 100tidos porque os desconheço!
não tenho nada de meu, menos ainda, na ordem das centenas.
SEMtidos e COMtidos?
serão!
mas meus?  com certeza que não!

POEMA CONCERTINA
(fole fechado)
poemaconcertina
(abre o fole)
POE M A C O N C E R TINA
(abre o fole mais um pouco)
P  O  E  M  A    C  O  N  C  E  R  T  I  N  A 
(abre o fole mais mais um pouco)
P   O   E   M   A     C   O   N   C   E   R   T   I   N   A  
(vá lá, assim não dá)

POEMA CONCERTINA
(por favor!)
anitrecnoc ameop
( :P nham nham nham nham nham :P)

assim, não há meio de (se) concertar!

PLAY


https://www.youtube.com/watch?v=tw8Ac06BWas
estava capaz de me cansar de ti
só para
           enfim
                     descansar
                                     um pouco

(volto já)

Parece-me que o cão é louco. Só a loucura justifica que atente a vida nas rodas do meu carro todos os dias de manhã, à mesma hora, ou não? O limbo de audácia e medo com que (não) se atenta à vida encerra em si alguma lógica de loucura? Ou porque cão é cão, sem uso de razão, nem a loucura lhe assiste?

Mas se a razão depende de um número de casos tornados regra, talvez sejam os dias a ser loucos e não, propriamente, o cão. Mas certo é que o uso da regra não se afigura evidente neste caso. Não tanto pela evidência, ou pelo caso, mas mais pela regra em si. Pelo significado de r e g r a e tudo o que isso implica. À lógica canina não se aplicam raciocínios dedutivos.

De qualquer forma, a minha alma arraçada a enguia também não ajuda a esta coisa de fazer dos casos lei. O padrão é difícil de encontrar em espíritos esquivos. E isso nada tem a ver com o cão. Já esqueci o cão. Quer dizer, esqueci-o por agora. Todos os dias ele faz questão de me lembrar que existe. Que existe na bravura de ser cão que arrisca a vida nas rodas do meu carro. E ganha, ganha sempre, aquele cão. Por isso não o posso esquecer. Enquanto ele existir posso sempre dizer que ele é louco. Posso sempre esquecer a minha própria loucura. É essa a regra que nos salvaguarda da loucura. Não perder de vista alguém mais louco do que nós. Regra, sim, definida entre o medo e o esquecimento.

abril 21, 2014

são quatro ou cinco juro que não são mais| ou serão tantas que lhes perdi a conta?| noves fora e já se lhe veem o bucho e as tripas por não caber em si de contente|como se o mundo precisasse de lhe conferir as vísceras para saber de que é feita a sua felicidade| poupem-me|__sim é uma metáfora mas não precisava de o dizer pois não?__ |a mim pouco me importa quantas foram é-me igual ao litro ou ao decímetro cúbico|__ para os mais quadrados a medir fluídos__ |de qualquer forma a felicidade não carece de Técnico Oficial de Contas ou de agrimensor que a espartilhe para a medir|por isso não quero saber se foram quatro se mil|dependerá sempre de uma qualquer unidade antropomórfica|__ e por isso não padronizada__| ou seja quatro podem ser mil| e afinal tudo o que de melhor existe é mesmo incomensurável| desde que sei que entre o zero e o uno há um infinito desinteressei-me pela arte de contar| e pode dizer-se que não sou infeliz|

abril 16, 2014

e se procuro a liberdade é porque ela me simplifica

abril 08, 2014

podem chamar-lhe realidades
até pode parecer que o são 
chego a suspeitar que realmente existam
por vezes até sinto apalpar a realidade
mas depois
nasce o poema

Al Berto

Vestígios
 
noutros tempos

quando acreditávamos na existência da lua

foi-nos possível escrever poemas e

envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído

pelas salivas proibidas - noutros tempos

os dias corriam com a água e limpavam

os líquenes das imundas máscaras



hoje

nenhuma palavra pode ser escrita

nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras

ou se expande pelo corpo estendido

no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se



onde se pode - num vocabulário reduzido e

obcessivo - até que o relâmpago fulmine a língua

e nada mais se consiga ouvir



apesar de tudo

continuamos e repetir os gestos e a beber

a serenidade da seiva - vamos pela febre

dos cedros acima - até que tocamos o místico

arbusto estelar

e

o mistério da luz fustiga-nos os olhos

numa euforia torrencial


Al-Berto
Horto de Incêndio

abril 07, 2014

Daniel Faria

Amarro dois degraus para não subir
Sozinho. Monto no meu cavalo- o meu cavalo
Não vai para minha casa
Medito sobre o rasto que não cabe no meu destino

Na nossa escada era difícil transportar os familiares defuntos

E os familiares enfermos- vê meu pai como me lembro
Como aprendi a amarrar as vergônteas das vides

A minha viagem é mais funda do que os rios

É mais funda a tua mão- vê como me lembro- ela sabe
Onde é que o meu corpo não suporta correntes

Amarro dois degraus para não subir


Daniel Faria (Poesia, Edições Quasi, 2006, p. 319)

abril 02, 2014

E, aliás, é tudo uma questão de colo.

Dos que nasceram sem colo e que por toda a vida o procuram, sem nunca o encontrar. Isto porque há colos grandes por esse mundo, mas nunca suficientemente maiores do que o colo onde não se nasceu. E há dos que nasceram com colo a mais, vivendo na ilusão do colo ser sempre tão grande que os ampara das quedas pela vida fora. E eles amadurecem e o colo fica sem espaço para abrigar a parte que cresce.

Não acho que possam existir colos à medida, são-o sempre em defeito ou em excesso. E por isso o jogo do equilíbrio é tão desenfreadamente mais grave no correr da idade.

A quem falta, um dia a mais de vida é um dia a menos que tem para o encontrar.

A quem excede, um dia a mais de vida é um centímetro de colo a menos porque os colos, desde que nascem, minguam até deixarem de existir, em algum dia, sem aviso.

É tudo uma questão de colo e de alma que, quando amadurece, só sabe endurecer.

abril 01, 2014

Camus


  " (...) A escravatura, ah, isso não, nós somos contra! Que se seja constrangido a instalá-la em sua casa, ou nas fábricas, bom, está na ordem das coisas, mas gabar-se disso é o cúmulo.
  Sei bem que não se pode passar sem dominar ou ser-se servido. Todo o homem tem necessidade de escravos como de ar puro. Mandar é respirar, não é desta opinião? E até os mais deserdados chegam a respirar. O último na escala social tem ainda o cônjuge ou o filho. Se é celibatário, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se sem que outrem tenha o direito de responder. «Ao pai não se responde», conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda a razão pode opor-se outra: nunca mais se acabava. (...)»

CAMUS, Albert, A Queda, (trad. de José Terra) Editora Livros do Brasil, Lisboa, 1971.

março 30, 2014

"Wish away the nightmare
You've got a light, you can feel it on your back
A light, you can feel it on your back
Jigsaws falling into place"
adormecer assim aos pés do poema
pés bem assentes no ar
e sonhar e sonhar e sonhar
poema-sonho
poema-pesadelo
e eu que o vivo só de lê-lo

Alexande O'Neill

PLAY "Poema do Desamor" TiagoBettencourt


Poema do Desamor 
Desmama-te desanca-te desbunda-te
Não se pode morar nos olhos de um gato
Beija embainha grunhe geme
Não se pode morar nos olhos de um gato
Serve-te serve sorve lambe trinca
Não se pode morar nos olhos de um gato
Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te
Não se pode morar nos olhos de um gato
Arfa arqueja moleja aleija
Não se pode morar nos olhos de um gato
Ferra marca dispara enodoa
Não se pode morar nos olhos de um gato
Faz festa protesta desembesta
Não se pode morar nos olhos de um gato
Arranha arrepanha apanha espanca
Não se pode morar nos olhos de um gato

Alexande O'Neill 

março 29, 2014

António Ramos Rosa


Estar só é estar no íntimo do mundo

Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo

António Ramos Rosa
Poemas inéditos

in http://mal-situados.blogspot.pt/search/label/antónio%20ramos%20rosa

março 28, 2014

Rigveda (1700-1100 a. C.)


nāsadīya sūkta
"Hino da Criação" (10.129)

1. [No início] não existia nem o existente nem o não-existente; não existia o espaço vazio nem o céu acima dele. O que havia então? Em que lugar? Quem zelava [por tudo]? Havia água [ou] o céu infinito? ||

2. Não existia então a morte nem a imortalidade. A noite e o dia não se distinguiam. [Mas] algo existia, sem ar, por própria vontade, [e] nada mais havai para além disso ||

3. No início o infinito estava oculto de escuridão; sem qualquer outro sinal, tudo isto era água. O espírito contido no nada pelo poder de Tapas surgiu ||

4. O desejo foi o primeiro a aparecer nele; eis a primeira origem do pensamentos. Os Rsis encontraram com sabedoria nos seus corações o elo entre o existente e o não-existente ||

5. Este pensamento desenvolveu-se. Existia em cima? Existia em baixo? Surgiram [então] os lugares de origem; surgiram os poderes. Houve um impulso em baixo; houve outro em cima ||

6. Quem realmente pode saber? Quem na verdade poderá dizer? Houve em dia origem? Deu-se a criação? Os deuses apareceram depois do universo ter sido criado. Quem então sabe de onde surgiu isto tudo? ||

7. Uma vez criação aparecida - talvez se tenha formado por si mesma ou talvez não - aquele que zela por ela, no mais alto dos céus, só ele sabe - ou será que não ||

(in Bhagavad-gita, Ésquilo trad. José Carlos Calazans, p. 286)

março 27, 2014

L. Wittgenstein

2.01231
Para conhecer um objecto tenho de conhecer não as suas propriedades externas mas todas as suas propriedades internas.

2.06
A existência e a não existência de estados de coisas é a realidade.

L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus

março 25, 2014

Al Berto

Os Amigosno regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência

Al Berto, in  A noite progride puxada à sirga, 1987, 
Antologia da Poesia Portuguesa do Sec. XII ao Sec. XXI, p. 1901

março 24, 2014

Daniel Faria

Labirinto III

No meio do caminho da nossa vida
No meio do poema, havia
Uma pedra onde reclinar a cabeça.

A mulher andava no meio das estradas
Por sobre o mundo tecendo e destecendo
Duas asas que o pai soldava para o filho.
No meio do filho estava o labirinto

E o touro de Ariadne puxado por um fio
Lavrando
No coração de Teseu tão manso
No meio da idade aonde existe
O primeiro sinal do solestício

Daniel Faria (Poesia, 2006, p.68)

março 23, 2014

daniel faria

Não levantemos os homens que se sentam à saída
Porque se movem em seus carreiros interiores
Equilibram com dificuldade uma ideia
Qualquer coisa muito nítida, semelhante
A uma folha vazia
E põem ninhos nas árvores para se libertarem
Da gaiola terrível, invisível muitas vezes
De tão dura
Não nos aproximemos dos homens que põem as mãos nas grades
Que encostam a cabeça aos ferros
Sem outras mãos onde agarrar as mãos
Sem outra cabeça onde encostar o coração
Não lhes toquemos senão com os materiais secretos
Do amor.
Não lhes peçamos para entrar
Porque a sua força é para fora e a sua espera
É a fé inabalável no mistério que inclina
Os homens por dentro
Não os levantemos
Nem nos sentemos ao lado deles. Sentemo-nos
No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos
A qualquer instante


Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 127)

março 22, 2014

fernando guimarães

O grito
É possível que a noite venha ao nosso encontro quando estivermos
sozinhos. Seria assim que compreenderíamos um destino
que nos pertence, talvez a imagem esperada das nuvens que procuram
um céu apenas tecido. Sabemos de que se ocupam as mãos ao sentirem
o mesmo estremecimento que existe no interior simples das veias. Por isso é outra
a sombra que continua quase esquecida, os súbitos contornos
de uma voz que depois se afasta sem pressa. Nela se perde
a mesma imagem que se tinha encontrado como se fosse o sobressalto
dos nossos olhos, a largura dos cabelos soltos. Talvez comecem
a recordar de novo a luz cercada agora de uma ferida. Quem 
estava próximo para escutar o que seria esse rumor? Os lábios
encontraram um sulco e tudo ali principia devagar a acolher-nos. Depois
veremos como pelo corpo o sangue fica serenamente escrito.

Fernando Guimarães (O Anel Débil, 1992) 
em Antologia da poesia portuguesa do Sec. Xiii ao Sec. XXI

março 21, 2014

daniel faria


Sunam (2 Rs 4, 8-37)

O absurdo pode sempre visitar-te quando quiser
Tens um lugar para ele. Em cada dia uma nova entrada.
Tens a memória e sobre o banco à tarde
A mulher. Vamos construir - disse - um quarto no terraço
Quatro paredes de tijolo e uma lâmina ao centro
Uma cadeira, uma mesa. A bilha
Ficará connosco e beberá aqui.

O absurdo pode sempre visitar-te quando estiveres no campo
E o teu filho te disser: a minha cabeça
Pondo a mão sobre a nuca, tendo largado a foice.
O absurdo pode sempre parar à tua porta
Com o teu filho sobre o jumento pardo
Pode sempre visitar-te no rosto da mulher
- Era meio-dia sobre os meus joelhos -
E chamarás. Abrirás em cada dia
Uma nova entrada por onde possa visitar-te
Sentar-se aí ao teu lado. Onde costumas envelhecer.

Daniel Faria (Poesia,  2006, p. 157)

março 18, 2014

daniel faria

Explicação da Ausência

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer- fosse abertura
E a saudade é tudo ser igual.

Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 110)

março 15, 2014

Raquel Nobre Guerra

Marcial Afectivo
                                 these hands melt then disengage
                                                    Mike Van Portfleet

falo meu amor de limpar a boca
de beijos que sejam menos que beijar
à francesa, hímenes jugulares sucedendo
para dentro, aceso poema monumento só de ida
desimpedidamente esplanada atingindo de chapa na face
falo a alta velocidade de abocar as coisas indo montando nelas
de ocupar as casas as camas para engravidar da matéria ao espírito falo
de fechar o corpo num verso branco do Herberto
do antídoto das mãos como discos solares

Raquel Nobre Guerra (Groto Sato, 2013-2a Ed., p.26)

março 14, 2014

Daniel Faria

Acontecera que as coisas se destruíssem sem que nelas sobrevivesse
E era tarde.
Sozinho em tempos não fora a falta de ninguém
E o que doía não tinha o quisto da doença
Só o espaço sereno das coisas que se deixam.
Acontecera que nada se fizera fora
Do coração.
Acontecera que passara a noite a abrir os olhos
Para não se interromper
A estender a mão para estar vivo
E certo de que nem ele próprio se abeiraria de si mesmo
Pois ocupara-se rigorosamente de ausentar-se.
Mesmo se caminhara muito devagar
Sem outro meio para esperar que o visitassem.
Ele que é agora o que nunca repousou
O que nunca encontrará o sítio do sossego
A não ser que haja o equilíbrio na vertigem
Uma luz parada no meio da voragem.


Daniel Faria (Poesia, 2006, p.76)

março 13, 2014

©raquelsav


PLAY Pietro Mascagni: Cavalleria rusticana - Intermezzo


falo de uma espécie de barco de terno embalo. ninho e seio. peito de acalentar. colo de levar. abraço de trazer. 

falo de uma espécie de novo sono. original adormecer. berço de quietude. leve mergulho. água imagem de mãe.

falo de uma espécie de alvorada. suave aurora. regresso e longitude. mansa viagem e despertar. fino desembrulho.

sim, falo de uma espécie de novo acordar. em paz que se possa adivinhar_______________

Daniel Faria

Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.


                                 Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 78)



Na impossibilidade da amizade ter um fim,
continuar a amar é dizer adeus.
                                                 Daniel Faria 

Daniel Faria

Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos 
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim 

E bebe

Daniel Faria (Poesia, 2006, p. 39)