agosto 19, 2014

Armando Silva Carvalho

©Thomas Hoepker GERMANY. Hamburg. 1954. Old woman in a snowstorm

Folhas traídas     

           1
Eis o Teatro da Casa.
Choro diante da topografia dos sentidos,
o coração da Mãe cresce na cabeça.
As cenas mais cruéis quase flutuam,
não tenho posição,
não posso preservar mais tempo
as águas do instinto.
Destroem-me o umbigo as vozes invocadas 
em torno da rosácea, matriz,
metamorfose.
Este palco, este corpo.
Se corro para o mundo afogam-me as palavras.
Ajoelho a alma até sentir na boca
os teus lábios em sangue,
esse surdo rumor cuja fome
não cabe nos recitativos.
Ó tu, mãe teatral, simulacro do berço
em que pariste este inferno de folhas já traídas,
minha coroa de glória, mãos que mexem no sexo,
em que parte da casa habitas estas noites?
Cada sentido meu- disseste- será
um dos teus filhos.
Choram na minha boca as mínimas crianças 
que puseste no mundo.
Mãe infeliz que caminhas nas lágrimas
e vestes devagar o medo e o sepulcro.
Ao olhar o meu corpo crescem-me os teus seios,
os meus ouvidos são o som da tua voz
e a minha língua treme nos teus dentes cerrados.
Posso mudar de sexo em cada instante
porque gritas sem dó e sem idade
dentro dos meus sonhos.
Hoje posso louvar-te, amar-te
ou devorar-te:
a memória é um espelho 
que a morte arrasta atrás de si
pela garganta.

    2
Pouco sorrias. Rias.
Vejo-te sentada no alto dos teus dias
quando as manhãs
não eram mais do que um sítio inquietante
em que a medo pousavam
os lábios de uma vida ao abandono.
Como és da cor da terra
não sei que nuvem baça
te cobre agora a boca e te dilata
os membros
-desfeitos eles também na longa 
caminhada.
Nenhuma ave louca compôs os teus vestidos
ou trouxe atrás de si
essa água quebrada que o teu olhar
recolhe.
Dizer que agora és nada
é já negar-me a fala
que me abre a garganta em sulcos
de silêncio.
Não posso acreditar que estás
somente em ondas de memória
como um feto.
Quando coloco as tuas mãos na minha testa
os teus braços descaem 
para o seio da terra
- não há no universo lugar para os teu pés,
e o teu cabelo
nem as florestas chegam a petrificá-lo.
Beijo o teu rosto e sabe-me a palavras.
Talvez nalguma lágrima
pudesse descobrir o gosto
do teu seio.
   
 3
Hoje - vejo-te de costas,
entre bichos caseiros, peças de riscado.
És grande como o castanheiro
e o meu corpo devora a tua sombra.
És feita devagar pelos meus sentidos.
Não há crime que baste aos nossos sexos.
Posso gritar tão longe no teu ventre
que a terra para mim será pequena.
Poderosa força amedrontada
que me pões de rastos.
De joelhos te peço: vem calar-me a boca.
Não quero este caminho de palavras
para passear contigo entre a memória.
És mais solene - quando me abandonas.
És mais altiva - como nunca foste.
Todo o amor que faço é para ti
a mais ampla das grutas,
um rio de sangue e leite, a morte
apetecida desses seres diários
que tu espantas com a mão
- ruidosa rainha.
Surges na noite orientando o esperma,
não tens eira nem beira,
tu, ó derradeira,
agora como no princípio.
E o meu grito tropeça contra o teu silêncio.
Pergunto aos deuses por que estás comigo
e me empurras a língua para o seio
da treva.
Todo o amor que digo se enrosca
aos teus cabelos
e desço, frase a frase,
lá onde arrefecemos entre o fogo e lágrimas.
Agora e para sempre vejo-te de costas
e deixas-me mais velho.
Entre bichos caseiros, peças de riscado,
não te cansas e cortas 
o pão da minha infância.
Porque a memória é um espelho
que a morte arrasta atrás de si
até ao fim do mundo.

    4
Agora estás sozinha à mesa do cobalto.
E como adolescente obstinada
comungas muros brancos
na secura da cal
(sinistra nos deus olhos)
- ó imaculada.
Os punhos nos ouvidos não são a força
bastante para empurrar o som
até às nuvens, ó idolatrada.
Querias tanto à terra com os seus gatos,
criaturas do sol no teu regaço azul,
que nenhuma palavra te protege
da minha boca em fúria,
- amada e destruída até aos ossos.
Às vezes quando no silêncio acordo
a perguntar por ti e
habitas o meu corpo,
que mais posso fazer do que arranhar na noite
a tua carne fria, ó desamparada?
Na folhagem do sangue eu afogo
a cabeça,
percorro com a língua a rede dos pulmões,
o meu eco atravessa toda a natureza
- porque não respondes?
E lentamente o teu olhar flutua.
Trazes na mão o peso
dos meus dias e ouço-te dizer:
a terra não resiste ao fogo do meu ventre,
ao ar que me respiras,
às águas surdas em que me bebeste.


Armando Silva Carvallho
in Sentimento dum Acidental
1981

agosto 18, 2014

©Gilles Peress ZAIRE. Goma. 1994
PLAY Pietro Mascagni: Cavalleria rusticana

Não é de ontem que o teu grito é uma iteração que aguça os mesmos gumes de toda a tua história. São os puzzles que resolves que te definem, como as tuas indecisões que se repetem peça por peça. Não conheces outra imagem, outra forma de a recortar, nesse teu jeito recorrente de ser.

Estás cansada. E então? Diz-me algo que eu não saiba. Não nasceste já assim, no tédio de saberes que a diferença não existe se não fores igual?

Não há têmpera que molde a austenite gasta. Não há imaginação que te reinvente. É um tempo, o teu tempo. Um tempo de dizeres:
- Basta! 

(Pensas que amanhã será outro dia?)

agosto 14, 2014

©Trent Park
AUSTRALIA. Sydney. From Dream/Life series. 1999
A faded chalk drawing in the pavement in Hyde Park. 

Rimo-nos à superfície, tememos o rasgo e o ardor das feridas na carne funda.
Medimos o tempo pelo tamanho do cabelo. E fingimos não reparar que o tamanho das unhas não certifica a distância dos dias. As unhas estão maiores. E cravam a carne dos dias, mais e mais. A marca de hoje, de ontem mais profunda que a de ontem, de anteontem. Não há como fugir à carne em campanha de cabelo comprido.

Despimo-nos com um sorriso, emprestamos os olhos à cegueira e prometemos cortar o cabelo, para nos perdermos nos dias.


Herta Müller




"Não sabia o que são quatro anos. Se os tinha pendurados em mim ou na roupa. O último ano estava pendurado no armário. Tinha-me maquilhado todas as manhãs no último ano. Maquilhado tanto mais quanto menos queria viver."
©Sergio Larrian. CHILE. Valparaiso. Passage Bavestrello. 1952.
Herta Müller,
A terra das Ameixas verdes

agosto 12, 2014

@raquelsav
Chamo liberdade ao que eu gosto que me prenda,
e lanço à água as ancoras que não me deixam afundar.
Elas não me impedem da viagem.
Impelem-me na busca de um destino.
Acreditasse eu nele, no destino,
que transportaria comigo um grito eterno.
Mas não viajo de mãos vazias, 
só não é nítido o que nelas levo.



Viajar

©Thomas Hoepker, 1964, Portugal, Zona rural

"O verdadeiro viajante é aquele que descobre a necessidade de bússolas simbólicas para a sua travessia. (...) A quinquilharia exótica que os turistas arrastam como memória material da sua errância não passa de um equívoco. A viagem não tem nada para dar-nos, além da morte das nossas ilusões e de um novo nascimento. Isto está reflectido no extraordinário poema de Konstantinos Kaváfis:
(...) Não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.
Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te. (...) "
J. T. Mendonça

agosto 11, 2014

José Tolentino Mendonça

@raquelsav

A voz solitária do homem

Há palavras que escrevemos mais depressa

o terror dessas palavras derruba
o passado dos homens
são tão pouco: vestígios, índices, poeira
mas nada lhes é desconhecido 
as horas em que vigiamos o escuro
os sítios nenhuns das imagens 
a ligeira mudança que resgataria
o abandono, todo o abandono 

José Tolentino Mendonça, 

Baldios, Assírio eAlvim, 1999 

© Martine Franck

A vida... espiral e logarítmica...
que nos devolve o expoente à base da potência que a torna exponencial.

agosto 04, 2014



©Elliott Erwitt

PLAY L'Arpeggiata, Music for a While - Oedipus, King of Thebes

"Music for a while
Shall all your cares beguile.
Wond'ring how your pains were eased
And disdaining to be pleas'd
Till Alecto free the dead
From their eternal bands,
Till the snakes drop from her head,
And the whip from out her hands."

Henry Purcell, John Dryden, Nathaniel Lee

As mães não sabem voar porque os pés são o sul e a terra o norte do íman. Por isso, são pesadas, nunca chegam longe. Nunca apanham os filhos no jogo do "não me apanhas". Como são grandes, as mães não jogam às escondidas, em qualquer lugar os filhos descobrem-lhes a sombra.
As mães só sabem jogar à cabra cega. E sem venda, ou olhos fechados. De olhos abertos já nada veem. 
Depois do jogo, calçam luvas para dar colo aos filhos e, quando o esvaziam, colocam-nas a arejar, penduram o cheiro da pele no arame. 

As mães não tiram as cobras das cabeças dos filhos porque não sabem tocar flauta ou encantar.
Na hora do abraço, pesam-no, em gramas, o abraço é caro precisa de ser doseado. As mães marcam a hora das necessidades dos filhos, mas o amor, quando chega, é atrasado.

agosto 03, 2014

Herta Müller


©Irving Penn
"Lola era do Sul do país e via-se-lhe no rosto uma terra que permanecera pobre. Não sei onde, talvez nos ossos da face ou no redor da boca ou mesmo no meio dos olhos. É difícil precisar uma coisa destas, quer se trate de uma terra ou de um rosto. Todas as regiões do país tinham permanecido pobres, também em todos os rostos. Porém, a terra de Lola, e isso era visível nos ossos da face ou em redor da boca ou mesmo no meio dos olhos, era talvez mais pobre. Mais terra que paisagem.
(...)
Mais tarde, li no caderno de Lola: o que se leva da terra, leva-se no rosto."
Herta Müller
A terra das Ameixas verdes

agosto 02, 2014


Circle Limit II         M.C. Escher

1959 Woodcut in red and black, printed from 2 blocks. 378mm x 378mm.

"Quando entrámos achei a casa uma desordem, repassada de cheiro a tabaco e triste. Diana deixou-se cair num cadeirão, acocorou-se, abraçou uma perna, apoiou a cara contra o joelho, ficou de olhar perdido no vazio. Ao vê-la assim disse a mim, juro, que não poderia viver sem ela. Também, levado pelo entusiasmo, concebi pensamentos verdadeiramente extraordinários e dei em pensar: Que é Diana para mim? a sua alma? o seu corpo? Gosto dos olhos, da cara, das mãos, do odor das mãos e dos cabelos dela. Estes pensamentos, assevera-me Zeferina, atraem o castigo de Deus. Eu não creio que haja no mundo outra mulher com essa beleza de olhos. Não me canso de admirá-los. Imagino madrugadas como grutas de água e mergulho na ilusão de descobrir na sua profundidade a verdadeira alma de Diana. Uma alma maravilhosa, como aqueles olhos."
Adolfo Bioy Casares
Dormir ao Sol

agosto 01, 2014

Adolfo Bioy Casares


ROMANIA. 1968. © Josef Koudelka / Magnum Photos


"Uma coisa fiquei a saber: é falso que alguém se entenda falando."

Adolfo Bioy Casares,  Dormir ao Sol
Editorial Estampa

©Robert Doisneau

Crescemos antes de aprender a brincar e os ensaios são desnecessários. 
O baptismo de voo há-de ser sempre infértil.
Nunca aprenderemos a voar. Haverá sempre algo que nos agarra.



©Antoine D'Agata

PLAYTom Waits - Tom Traubert's Blues - 1977 (Waltzig Matilda)


Trocamos a roupa pelo excesso de corpo em peso insuportável.
Distribuímos afectos na medida exacta da retribuição,
na esperança de ficarmos mais leves.
Enquanto aguardamos a data que preenche o espaço,
disfarçamos a incapacidade de amar.
Mas não há mais do que nós, no emaranhado que nos acerca,
de sentidos presos ao corpo.
Não tarda o parêntesis fecha-se com a data,
tão levemente que nem daremos por isso.
A roupa contará uma história,
muito provavelmente inventada,
mas tão verdadeira, tão feita de nós.


Waltzig Matilda música tradicional australiana:

waltzing 

derivada da expressão alemã auf der Walz, que define o antigo costume de artesãos de viajar por 3 anos e 1 dia, aprendendo com outros mestres novas técnicas, um costume ainda hoje praticado por carpinteiros.

Matilda 
um termo mais "carinhoso" para a "trouxa" carregada pelo swagman. Supõe-se que à trouxa foi dado um nome de mulher por esta ser a única "companheira" do swagman durante suas longas jornadas.

julho 30, 2014

Herta Müller

"Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e tornamo-nos ridículos.
Já estávamos há tempo de mais sentados no chão diante das fotografias. Tinha as pernas dormentes de estar sentada.
Espezinhamos tanto com as palavras na boca como com os pés na erva. Mas com o silêncio também."
Herta Müller
Na terra das Ameixas verdes


julho 18, 2014

Albert Camus

"-Já não se deve dizer que Fulano é mau ou feio- afirmava Louise- mas que pretende ser mau ou feio.
A diferença era importante e expunha-se a levar, como notou Rateau, à condenação do género humano. Mas Louise resolveu a dificuldade, provando que o axioma, sendo ao mesmo tempo defendido pelo coração e pelas revistas filosóficas, constituía facto universal e indiscutível.
- Como quiseres - disse Jonas, que depressa esqueceu esta nova descoberta para se entregar todo inteiro à sua estrela."

"Aos amigos juntavam-se às vezes discípulos: Jonas começava a criar escola. A princípio ficara surpreendido, não sabendo o que poderiam lucrar do seu exemplo. Ele que tinha ainda tanto por descobrir! O artista, que laborava no seu ser, tacteava nas trevas, incapaz de ensinar a outrem o caminho. No entanto, compreendeu depressa que um discípulo não é forçosamente alguém que pretende aprender; o mais das vezes, pelo contrário, fazer-se discípulo é sentir o prazer desinteressado de ensinar o mestre. Desde então, pode aceitar, com humildade, aquele acréscimo de honrarias. Os discípulos explicavam-lhe demoradamente o que ele pintara, e porquê. Assim descobriu Jonas nas suas obras muitas intenções que o surpreenderam um pouco, e uma quantidade de coisas que ele não pusera lá. Julgara-se pobre e, graças aos seus alunos, ei-lo rico de repente. Às vezes, perante tantas riquezas até aí desconhecidas, roçava Jonas uma aragem de orgulho.
«Com que então é verdade», dizia com os seus botões. «Aquele rosto, ali no último plano, sobressai como nenhum. Não compreendo bem o que pretendem com isso de humanização indirecta. Todavia, com este esforço, fui bastante longe...»."

"- Que fazes aí Jonas?
- Trabalho.
- Sem luz?
- Sim, por agora.
Não pintava, mas reflectia. Na sombra e naquele meio silêncio (que por comparação com o que conhecera antes, lhe parecia o do deserto ou do túmulo). Jonas escutava o seu próprio coração. Os rumores que o alcançavam dir-se-ia já não lhe respeitarem, se bem que se dirigissem a ele. Jonas era como esses homens que morrem sós, em sua casa, durante o sono, e a quem já não atingem as chamadas telefónicas, insistentes e febris, que retinem durante a manhã seguinte. Ele, porém, vivia, escutava em si mesmo esse silêncio, esperava pela revelação da sua estrela, a qual decerto ia surgir resplandecente sobre a confusão de tantos meses vazios. «Brilha, brilha», implorava Jonas. «Não me prives da tua luz».

O Exílio e o Reino (Jonas)
Albert Camus
PLAY  Gong - Flying Teapot
Obstinados em alma gentil aspiramos, em segredo, ao sopro maternal. Expiramos o medo em escassez. Guardamos algum para alimentar a resignação. Negamos a complexidade e mostramo-nos vivos entre erecções e secreções. Abafamos o ímpeto mais vil. Disfarçamos afectos. Recusamo-nos à humanidade. Parecemos ser de máscara gentil em face, entre deuses, máquinas e bestas, até que a ilusão da felicidade nos baste.

julho 17, 2014

Talvez por essa razão, prenderei até ao último rosto o retrato de um tempo infantil. Guardo-o onde não possa crescer e ser maduro. Na infância habita, distraída, a felicidade. Na vertigem, o oxigénio que alimenta mas envelhece a vida.

King Crimson


PLAY Epitaph King Crimson

The wall on which the prophets wrote
Is cracking at the seams
Upon the instruments of death
The sunlight brightly gleams
When every man is torn apart
With nightmares and with dreams
Will no one lay the laurel wreath
When silence drowns the screams

Confusion will be my epitaph
As I crawl a cracked and broken path
If we make it we can all sit back
And laugh
But I fear tomorrow I'll be crying
Yes, I fear tomorrow I'll be crying

Between the iron gates of fate
The seeds of time were sown
And watered by the deeds of those
Who know and who are known
Knowledge is a deadly friend
If no one sets the rules
The fate of all mankind I see
Is in the hands of fools

Confusion will be my epitaph
As I crawl a cracked and broken path
If we make it we can all sit back
And laugh
But I fear tomorrow I'll be crying
Yes, I fear tomorrow I'll be crying

Bioy Casares

"Disse para si próprio que imediatamente ao chegar à ilha começaria o estudo. Logo ponderou que estava muito cansado, que não seria capaz de se concentrar, que adormeceria sobre as páginas. O mais ajuizado era pôr o despertador para as três e dormir um soninho - isso sim, bem cómodo no catre - e depois, com a cabeça fresca, empreender a leitura. Melancolicamente, imaginou a campainhada, à hora destemperada. "Também não é caso para desanimar", pensou, "já que na ilha não me restará outro recurso a não ser estudar. Quando me apresentar a exame, estarei feito um campeão."
Da forma do mundo,
Bioy Casares

julho 16, 2014

Da doutora para Elisabeth Vogler, Persona (1966)

PLAY Ash Ra Tempel - Reunion (Friendship)
Ao céu puro e à terra limpa respondo com silêncio.
Enterro a palavra, arma que quebra na luta
o sentido para além da meta.
Não me rendo.
Luto apenas sem arma.
E no intervalo areio os dois gumes,
com o grão áspero da não-palavra.

Albert Camus

"Balducci fez o gesto de passar a lâmina no pescoço. O árabe, cuja atenção fora atraída para a conversa, observava-o inquieto, e Daru sentiu uma cólera súbita contra esse homem, contra todos os homens e sua estúpida maldade, contra os seus ódios incansáveis e inextinguível sede de sangue.
Mas a panela chiava no fogão. Tornou a servir Balducci, hesitou, e fez o mesmo com o árabe, que pela segunda vez bebeu avidamente o chá".

O Exílio e o Reino (O hóspede)
Albert Camus

Albert Camus

"O Sol já atingiu metade do céu. Pelas fendas da rocha vejo o buraco que ele faz no metal incandescente do céu, entornando rios de chamas sobre o deserto incolor. No caminho, que se desenrola à minha frente, nada até ao horizonte, nem um grão de pó. Atrás de mim andarão já a procurar-me, ou talvez ainda não, era só de tarde que abriam a porta para eu sair um bocadinho, depois de haver todo o dia arranjado a casa do feitiço, renovando as oferendas. À noite começava a cerimónia. Às vezes batiam-me, outras não, mas eu servia sempre o ídolo, esse ídolo cuja lembrança tenho gravada a fogo, jamais um deus me possuiu tanto. Concedi-lhe os meus dias e as minhas noites. Devi-lhe a dor e a ausência da dor e até o desejo - à força de assistir diariamente àquele acto impessoal e perverso, mas sem o ver, pois tinha de olhar para a parede, sob pena de me espancarem. Mas, com a cara unida ao sal, dominado pelas sombras que se agitavam em volta, eu escutava um grito e, de garganta seca, sentia o desejo queimar-me, um desejo sem sexo que me comprimia as fontes e o ventre. Assim os dias se sucederam aos dias, mal os distinguia uns dos outros, tal como se eles se liquefizessem no calor tórrido da reverberação insidiosa das paredes de sal. O tempo tornara-se uma articulação informe em que rebentavam, com intervalos regulares, os gritos de dor e de posse; tempo sem idade, sobre o qual reinava o feitiço como o sol feroz sobre este abrigo de pedras. E agora, como então, eu deploro a desgraça e o desejo, queimado por uma esperança malévola. Quero atrair, beijo o cano da espingarda e sinto a sua alma lá dentro... a sua alma, porque só as espingardas têm  alma... No dia em que me cortaram a língua, aprendi a adorar a alma imortal do ódio!"
O Exílio e o Reino (O renegado ou um espírito confuso)
Albert Camus

julho 01, 2014

Há pele que não basta no abraço.
Há, no intervalo das palavras,
um mundo em ilusão de inteiro.
Não há metades maiores,
há metades grandes.
Dessas, não há que baste,
mesmo sendo inteiras.


Cervantes

   "Perguntou se trazia dinheiros. Respondeu-lhe D. Quixote que nem branca, porque nunca tinha lido nas histórias dos cavaleiros andantes que nenhum os tivesse trazido.
   A isto disse o estalajadeiro que se enganava; que posto nas histórias se não achasse tal menção, por terem entendido os autores delas não ser necessário especificar uma coisa tão clara e indispensável, como eram o dinheiro e as camisas lavadas, nem por isso acreditar que não trouxessem tal; e assim tivesse por certo e averiguado, que todos os cavaleiros andantes, de que tantos livros andam cheios e rasos, levavam em apetrechadas bolsas para o que desse e viesse, e igualmente levavam camisas, e uma caixinha pequena cheia de ungentos, para se guarecerem das feridas que apanhassem, porque nem sempre se lhes depararia quem os curasse nos campos e desertos onde combatessem, e de onde saíssem escalavrados;"
D. Quixote de la Mancha


junho 24, 2014

Isidore Ducasse (Conde de Lautréamont)

"Nem toda a água do mar chegaria para lavar uma nódoa de sangue intelectual."
Poema I
Isidore Ducasse (Conde de Lautréamont)

Shakespeare


Hamlet: Que obra-prima é o homem! Quão nobre pela sua razão! Quão infinito nas suas faculdades! Na sua forma e movimento quanto é expressivo e maravilhoso! Um anjo em acção! Na sua inteligência é como um Deus! A maravilha do mundo! O arquétipo dos animais! E, contudo, para mim, o que é esta quinta essência do pó? Não me encanta o homem, nem tão-pouco a mulher(...)

(...)


Rei: Então Hamlet, onde está Polónio?
Hamlet: A jantar.
Rei: A jantar! Onde?
Hamlet: Não onde come, mas sim onde é comido. Uma certa assembleia de vermes políticos está agora a devorá-lo. O verme é o único imperador da boa alimentação: nós engordamos todos os restantes animais para nos engordarem a nós e engordamo-nos a nós próprios para os vermes. O gordo rei e o esquálido mendigo não são mais que ementas distintas, dois pratos, embora de uma mesa só. E é tudo.
Rei: Meu Deus, meu Deus!
Hamlet: Um homem pode pescar com o verme que comeu a carne do rei; e comer o peixe que se alimentou daquele verme.
Rei: E que queres dizer com isso?
Hamlet: Nada, a não ser mostrar-vos que um rei pode viajar nas tripas de um mendigo.

ShakespeareHamlet

junho 23, 2014

e talvez seja isso mesmo. a felicidade, a existir, quando muito apenas nos assola aquando distraídos.  como pensar nela e achar-se feliz? felizes serão os pobres de espírito, como se já não lhes bastasse o reino dos céus.

Samuel Beckett

Hamm: A natureza esqueceu-se de nós.
Clov: Já não há natureza.
Hamm; Não há natureza! Que exagero.
Clov: Nos arredores.
Hamm: Mas nós respiramos, mudamos! Cai-nos o cabelo, os dentes! A nossa frescura! Os nossos ideais!
Clov: Então não se esqueceu de nós.
Hamm: Mas tu dizes que não existe.
Clov (tristemente): Nunca ninguém no mundo pensou de uma maneira tão retorcida como nós.
Hamm: Faz-se o que se pode.
Clov: Estamos enganados.
pausa
Hamm: Julgas-te alguém, hã?
Clov: Naturalmente.

_________

Nell: Vou deixar-te.
Nagg: Podes coçar-me primeiro?

_________



Samuel Beckett, Fim de Partida

junho 21, 2014

Nuno Higino

Desenho sobre o espaço
um lugar sem disfarce:
a elipse do vento, por exemplo.
E aí habito entre paredes brancas
e breves muros lisos.
E saio com o vento
e em suas saias me abandono.
E porque o vento nunca tem regresso
habito com ele o tempo sempre novo
aliso com ele os espaços sempre novos
com ele conquisto distâncias e perigo.
Cada lugar é a minha casa
e a minha casa é sempre nova
branca branca breve lisa.

Nuno Higino, No silêncio da terra, Campo das letras, 2000
PLAY Remar Remar Xutos&Pontapés

escolhemos a noite por não haver dia que nasça em silêncio.
e cantamos alto, muito alto,
maiores que o canto das sereias que não nos acolhe, que é chuva no mar.

prostramos nos silêncios, nadamos neles,
e, na inverosímil liberdade do choro,
procuramos a infinita sabedoria, de explodir em matéria de nada.


a noite envolve-nos docemente, por não haver dia que nos queira nascer,
e nós, como o sol que não vem, não somos, nem existimos,
voamos apenas, livremente, noite fora, contra-corrente.

Herberto Helder


quem fabrica um peixe fabrica duas ondas, uma que rebenta floralmente branca à direita,
outra à esquerda só com ar lá dentro,
e o ouro íngreme puxando o comêço da noite e o fim do enorme dia onde todos morremos
como filhos escorraçados ou disso a que chamam demónio da analogia,
quem fabrica um poema curto morrerá muito mais tarde,
só depois de estar maduro, quem
baixa a mão para quebrar um sêlo há-de baixá-la
para quebrar os outros, e há-de fechar os olhos,
e de tanto ter visto não poderá nunca mais abri-los:
e cômo pão e bebo água de olhos fechados como se fosse para sempre,
e assim, adeus a quem me vê, que eu morro inteiro para dentro,
e vejo tudo só de entendê-lo

"Servidões" Herberto Helder, 2013

junho 18, 2014

Harold Bloom

"Emmerson e o antigo gnosticismo concordam que aquilo que é melhor e mais antigo em cada um de nós não faz parte da Criação, da Natureza ou do Não-Eu. Cada um de nós, presume-se, é capaz de identificar o que tem de melhor em si, mas como é que encontramos o mais antigo?"

"Penso que é impossível uma definição materialista do génio, e é por isso que a ideia de génio está tão desacreditada numa época como a nossa, onde dominam as ideologias materialistas. O génio invoca necessariamente a transcendência e o extraordinário, porque tem plena consciência deles. A consciência é que define o génio: Shakespeare, como o seu Hamlet, excede-nos em consciência, vai para além do nível mais alto de consciência que acederíamos sem ele."

"A pergunta que precisamos de colocar a qualquer escritor será a seguinte: Ela ou ele aumentam a nossa consciência? E como é que o fazem? Acho que este teste é grosseiro, mas eficaz: para além de me ter divertido a minha percepção intensificou-se? A minha consciência alargou-se e foi esclarecida? Se não, então deparei-me com talento e não com o génio. Aquilo que há de melhor e mais antigo em mim não foi activado"

Harold Bloom, "Génio", 2014 (Tradução do original de 2002)

Harold Bloom

"Há evidências de vacilação entre os que descartam o génio como sendo meramente um fetiche do século XVIII. O pensamento em grupo é a praga da nossa Era da Informação e é ainda mais pernicioso nas nossas instituições académicas obsoletas, cujo longo suicídio continua desde 1967. O estudo da mediocridade, seja qual for a sua origem, gera mediocridade. Thomas Mann, descendente de fabricantes de móveis, profetizou que a sua tetralogia de José perduraria porque era bem-feita. Nós não aceitamos mesas e cadeiras que tenham pernas a cair, independentemente de quem a fez, mas instamos os jovens a estudar textos medíocres, sem pernas que os sustenham" (Prefácio)

"Qual a relação entre o génio recente e a autoridade estabelecida? Neste momento, no início do século XXI, eu diria: "Pois, nenhuma, absolutamente nenhuma." As nossas confusões sobre padrões canónicos para o génio transformaram-se em confusões institucionalizadas, de modo que todos os nossos julgamentos acerca da diferença entre o talento e o génio estão à mercê dos meios de comunicação e obedecem às políticas culturais e aos seus caprichos".


"O génio literário é difícil de definir e depende de uma leitura profunda para a sua verificação. O leitor aprende a identificar-se com o que sente como uma grandeza que se pode juntar ao eu, sem violar a sua integridade. Talvez a "grandeza" esteja fora de moda, tal como o transcendente, mas é difícil continuar a viver sem esperança de um encontro com o extraordinário."


"O desejo mais profundo do nosso eu solitário é a sobrevivência, quer seja no aqui e agora ou transcendentalmente  algures. Crescer graças ao génio dos outros é aumentar as possibilidades de sobrevivência pelo menos no presente e no futuro próximo."


Harold Bloom, "Génio", 2014 (Tradução do original de 2002)

Herta Müller

   "É uma noite no café, que em plena cidade de se apodera da hora, assim como aqui e ali, como por acaso, uma sombra de dimensões humanas se apodera da sua vida, pondo-lhe fim no rio. Está na cidade um inverno que é lento, senil, que inocula nas pessoas o seu frio. Está ali na cidade um inverno em que até a boca arrefece, em que as mãos, ausentes, o mesmo que agarram deixam cair, porque as pontas dos dedos ficam nas mãos como couro. Está ali na cidade um inverno em que a água nem sequer se resfria em gelo, em que os velhos carregam as vidas passadas como sobretudos. Um inverno em que os novos têm de odiar-se como à infelicidade, quando a suspeita de felicidade lhe sobrevém entre as têmporas. E, contudo, buscam a sua vida, de pupilas nuas. Ronda por ali no rio um inverno onde, em vez de água, só o riso gela. Onde balbuciar é já falar e meia palavra é já um grito. Onde cada pergunta se extingue na garganta e, muda, cada vez mais muda, não pára de bater com a língua contra os dentes." (p. 183)

   "Lá fora, quando se ergue o queixo debaixo da árvore e se olha para o alto, a bola verde amolgada na forquilha dos ramos é tão pequena e escura que parece lá em cima a réplica do olho. Passam sobretudos em lugar de pessoas, é novembro que caminha dentro dos sobretudos. Na segunda semana, ele é tão melancólico e velho que já com a manhã chega o entardecer." (p. 188)


Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012)

junho 17, 2014

Herta Müller

     "O negro no olho do ditador é do tamanho da unha no polegar de Adina, quando o polegar se curva sem nada agarrar. O negro do olho do ditador vê todos os dias o país profundo a partir do jornal." (p. 28)  

   "À janela da cozinha está a lua, tão inchada que não pode demorar-se mais. Está carcomida pelo alvorecer. São seis horas e a lua passou a noite em claro, ainda tem três dedos amarelos, e um é cinzento e segura-lhe a testa. Os autocarros rumorejam matutinos, ou então é lá em cima na fronteira da noite, onde a lua, quando não está redonda, fica dependurada depois de deixar a cidade. Os cães uivam como se a escuridão tivesse uma enorme pele e o vazio das ruas, no crânio, um cérebro tranquilo. Como de os cães da noite temessem o dia em que a fome que busca se encontra com a fome que vadia, quando as pessoas por eles passam. Quando o bocejo se encontra com o bocejo e, na mesma exalação da boca, a fala com o latido.  
       Os colãs cheiram a suor de inverno. Adina enfia-os como um sacolejar de comboio sobre as pernas nuas, enfia o casaco comprido sobre a camisa de noite. No casaco pendem ainda os casaquinhos negros do viaduto e os casacões verdes do autocarro. Nos botões do casaco, ainda presente a pequena estação e o negro do olho. No bolso do casaco está ainda dinheiro da viagem e a lanterna de bolso. A chave está em cima da mesa da cozinha. Os sapatos ainda têm colada a porcaria do pátio da caserna. Ela enfia-se nos sapatos." (p. 161-162)

     "Adina veste os colãs, as suas pernas não estão dentro dos colãs. E veste o casaco, os seus braços não estão dentro do casaco. Só a camisa de noite lhe sai por baixo do casaco comprido. Adina entala a camisa de noite nos colãs. As chaves, o dinheiro, a lanterna estão no bolso do casaco. Na cozinha, o sol repousa sobre a mesa, debaixo da mesa repousa a porcaria dos sapatos, na parede o relógio faz tiquetaque e escuta-se a si mesmo. E quase meio-dia. Adina enfia-se nos sapatos, os seus dedos dos pés não estão dentro dos sapatos, estão dentro do relógio. Adina sai da cozinha em bicos de pés, antes que os dois ponteiros se encontrem no cocuruto do dia, onde são doze horas. A porta abre-se, a porta bate ao fechar-se.

      A respiração de Adina caminha à sua frente, ela estende a mão para a agarrar, já não consegue apanhá-la." (p.166)

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012) 

junho 13, 2014

PLAY  Jocelyn Pook - Bleeding Soles

a raiz está suspensa. o país desventrado de sentido.

repito. a raiz está suspensa num país sem terra e sem colo.

na míngua de espaço que deixe crescer, são-no assim, sem terra afim. são-no assim em raiz que atrofia a forma pura de ser.

são-no nas cordas do piano por martelar. em som incapaz de ser parido na força do toque. são-no na opacidade do verniz em reflexo impuro.

a raiz está suspensa. as cordas sem terra. o país não vibra. a forma pura de ser esvaziou-se, sem sentido.

são-no assim,  sem colo, sem corda, sem som.

são-no em raiz suspensa, sem terra que alimente.

são-no para lá do país, para lá da terra desventrada, onde nem o vazio nem o silêncio se adivinham.

Herta Müller

"Ao oitavo dia, diz o porteiro, ainda sobrou a Deus, de Adão e Eva, um tufo de cabelo. A partir dele fez as aves. E ao nono dia, perante o vazio do mundo, Deus deu um arroto. A partir dele fez a cerveja." 

"São os meses em que as mulheres riem todos os dias à mesma hora. Um riso insonso de inverno, tirado de memória, porque o vapor se mantém cego até à primavera."

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012)